POR HELENA OLIVEIRA
Ozo Ibeziako conhece bem as fragilidades e vulnerabilidades de quem habita o bairro de Alexandra, local onde chegou a viver Nelson Mandela. Com uma licenciatura em Medicina trazida do seu país de origem, a Nigéria, cedo soube que gostaria de contribuir para a recuperação de um país que, não sendo seu, sempre a inspirou. Com a ajuda da Fundação Komati, cujo principal enfoque é “promover projectos que possam contribuir para o desenvolvimento social dos mais desfavorecidos na África do Sul, projectos que possam abordar as necessidades da comunidade, feitos para os africanos e pelos próprios africanos”, lançou o “The Art of Living”, concebido para ajudar jovens raparigas a ter um futuro melhor e mais bem informado. Seis anos passados sobre o início deste projecto, mais de 500 raparigas foram já ajudadas a descobrir e a seguir o seu caminho, e de quatro voluntários iniciais, os actuais já superam a centena. Em conversa com o VER, a médica nigeriana fala das suas raízes, das condições de vida de um dos muitos bairros habitados por negros com profundas carências sociais e económicas e de como tem fé que o futuro da África do Sul seja mais risonho.
Gostaria que me contasse um pouco da sua história pessoal enquanto uma mulher nigeriana, médica de família e como acabou por escolher viver na África do Sul…
A Nigéria é um país bastante diferente da África do Sul. Cada família tem o objectivo claro de enviar as suas crianças para a escola, sendo que a educação primária e secundária são gratuitas. E também a educação terciária [ensino superior] é bastante acessível para a maioria das pessoas no país. O meu pai foi também médico de família, apesar de hoje em dia já estar na reforma; a minha mãe é licenciada em Inglês, trabalhou como professora, mais tarde como directora da escola e terminou a sua carreira numa posição de gestão sénior no ministério da Educação. Com este contexto, a possibilidade de eu completar a minha educação superior nunca foi uma dúvida. Completei o ensino secundário e a minha formação universitária em medicina na Nigéria e ali trabalhei alguns anos antes de ter a oportunidade de viajar para a África do Sul, onde fiz a minha especialização em medicina familiar.
A África do Sul foi um país que sempre me intrigou devido à sua história peculiar, a qual fui seguindo como, suponho, a maioria dos nigerianos na altura. Adicionalmente, tinha já estado envolvida num projecto social enquanto estudante de medicina na Nigéria e quando surgiu a oportunidade de viajar para a África do Sul, pensei que tinha chegado a altura para eu contribuir com a minha parte para a nova fase de reconstrução do país.
Como surgiu a ideia de iniciar o Art of Living Project? Quais são os seus principais objectivos e que tipo de dificuldades tem vindo a enfrentar?
Cheguei à África do Sul em 1999, cinco anos depois da democracia se ter instalado no país. O primeiro governo eleito democraticamente e gerido por Nelson Mandela deixou-nos com o enorme desafio de perdoar o que tinha acontecido no passado, de olhar em direcção ao futuro com optimismo e de ter em mente que a África do Sul era agora um país onde todos poderiam viver em paz – brancos, negros, indianos, asiáticos. E todos tínhamos uma responsabilidade igual, sem discriminação, para contribuir para a sua reconstrução enquanto nação. Com um grupo de outras mulheres demos início à Fundação Komati e começámos a falar com os sul-africanos para pensarmos num possível projecto social na província de Gauteng, onde residíamos. Conhecemos uma jovem licenciada em Arquitectura, que vivia e crescera exactamente na Alexandra Township e que nos informou sobre as duras condições enfrentadas pelos jovens ali residentes.
Conhecida como Alex, é o segundo município mais pobre do país [um subúrbio de favelas muito próximo dos bairros mais ricos de Joanesburgo). As townships são áreas geográficas onde diferentes raças foram segregadas durante o regime de apartheid, neste caso, negros. Em Alex não existia nenhuma forma de desenvolvimento infra-estrutural – água, electricidade, saneamento ou alojamento. A maioria das famílias vive em casas de zinco, em espaços muito limitados e em condições miseráveis, sendo extremamente fria no Inverno e insuportavelmente quente no Verão. É também uma zona com sobrepopulação – estima-se que ali vivam cerca de 700 mil pessoas – graças ao constante fluxo de migrantes provenientes de áreas rurais, bem como de outros países africanos. Tem uma elevada taxa de desemprego – 25% para os homens, 30% para as mulheres e 55% para os jovens -, o que resulta na existência de muitas pessoas a “vadiar” pelas suas ruas, numa elevada taxa de criminalidade, drogas e prostituição. A situação torna-se ainda mais gravosa devido ao facto de o negro sul-africano médio considerar que tem direito a benefícios sem ter de se esforçar para isso. Apesar de a escola primária e secundária serem gratuitas, é frequente os miúdos deixarem de estudar por não verem qualquer futuro para si mesmos ao fazê-lo.
Em África existe um ditado que diz que “educando-se uma mulher, educa-se a nação inteira”. E isto deve-se ao círculo de influência alargada que uma mulher com educação tem: em primeiro lugar, educar bem os filhos, o que terá impacto mais tarde nos netos, na família mais próxima e também na alargada, na comunidade, ampliando-se assim o círculo. Com tudo isto em mente, decidimos lançar um projecto direccionado para a educação de raparigas jovens, futuras esposas e mães, a viver em Alex.
A criação deste projecto foi também possível graças ao apoio de um missionário irlandês que tem vivido em Alex e que ganhou a confiança da comunidade. Não só nos apresentou às primeiras famílias que se envolveram com o projecto como nos forneceu o sítio – uma escola secundária em ruínas que já não estava a funcionar – onde se desenrolam as actividades. Claro que tivemos de fazer um trabalho de reconstrução com a ajuda de donativos.
Em termos práticos, como funciona o projecto?
As actividades do Art of Living têm lugar os sábados (altura em que as raparigas e os voluntários não estão a estudar nem a trabalhar) durante os períodos lectivos, desde as 11 da manhã até às 4 da tarde. Admitimos miúdas a partir dos 9 anos, pré-adolescentes. Para que as raparigas valorizem o programa e se mantenham comprometidas, têm de pagar uma quantia para se registarem e outra mensal, sendo ambas mínimas. É que na verdade nos apercebemos que aquilo que é completamente gratuito não é nem valorizado nem apreciado. E para as que não podem pagar, o programa é financiado por outras mães que estão em melhor situação financeira para o fazer.
As nossas actividades são fundamentalmente direccionadas para ajudar as raparigas a redescobrirem o seu valor, a encontrarem o seu potencial, a desenvolverem os seus talentos, em conjunto com o apoio para terminarem o ensino secundário de forma bem-sucedida para conseguirem ser admitidas no ensino superior. Transmitimos-lhes valores e ensinamo-las a enfrentar as dificuldades que forem encontrando em situações específicas, o que é feito através das aulas, de sessões de trabalho, de acampamentos; elas aprendem a interagir e a lidar com pessoas com diferentes backgrounds culturais bem como a falar em público através de debates, peças de teatro, etc, sendo que lhes ensinamos também técnicas de estudo. As raparigas aprendem também a tratar da casa. E para as que estão a preparar-se para os exames finais do secundário, iniciámos uma actividade que denominámos Encontrar o Caminho. Esta tem como objectivo oferecer-lhes um período intenso de preparação para este exame, o qual aumenta a sua possibilidade de entrar no ensino superior. E integra a ajuda no preenchimento dos formulários de entrada na universidade, a apresentação de várias profissões para que elas possam fazer escolhas informadas sobre a carreira a seguir, uma visita à universidade para que elas possam experimentar o ambiente ali vivido, bem como a atribuição de tutores. Tudo isto resulta numa maior motivação para o estudo e para completarem o ensino secundário.
Na medida em que o projecto é apoiado pela Fundação Komati, o que mais nos pode dizer sobre os objectivos desta fundação?
O principal enfoque da fundação é promover projectos que possam contribuir para o desenvolvimento social dos mais desfavorecidos na África do Sul, projectos que possam abordar as necessidades da comunidade, feitos para os africanos e pelos próprios africanos. Todos os nossos voluntários são profissionais sul-africanos que cresceram em Alexa ou emtownships similares e que oferecem as suas competências e tempo sem qualquer custo, funcionando como modelos e mentores para as raparigas. De quatro voluntários que tínhamos no início, temos agora mais de 100. E é muito edificante testemunhar a sua dedicação.
Num país como a África do Sul, onde os negros ainda lutam para viver uma vida sem miséria, e onde existe ainda uma cultura muito paternalista, quais são as questões mais prementes relativas à desigualdade?
Actualmente, e no despertar de um novo país, a África do Sul é um país onde o contributo de todos que nele vivem é crucial sem qualquer forma de discriminação. A educação é crucial para que atinjamos os nossos objectivos de desenvolvimento.
Foi a vencedora do Prémio Harambee 2019 de Promoção e Igualdade da Mulher Africana. Mediante que formas considera que este galardão a possa ajudar a perseguir os seus objectivos de ajudar as jovens mulheres a “viverem uma vida com dignidade e esperança? Considera que o prémio poderá ajudar a replicar o projecto em outras zonas?
Ter recebido o Prémio Harambee 2019 significa uma afirmação de que as mulheres africanas têm o potencial não só para se desenvolverem a si mesmas, como também para contribuírem para o desenvolvimento da sua comunidade e do seu país. E sim, este prémio irá permitir uma extensão do projecto não só no interior de Alex, mas também em outras townships da província de Gauteng. O projecto foi lançado em 2012. Nestes seis anos testemunhámos o seu impacto nas vidas das raparigas e das suas famílias. As mães têm assistido à forma como as suas filhas cresceram e mudaram, tornando-se responsáveis e trabalhadoras, bem como à influência positiva que têm tido na sua família e comunidade. As mães também pediram para ter sessões de formação para melhorarem o seu papel enquanto mães, professoras e apoiantes dos seus filhos. Estas sessões têm, actualmente, um formato de seminários trimestrais. E, até agora, já tivemos mais de 500 pessoas – entre mães e filhas – que beneficiaram do projecto.
É também uma professora universitária e alguém que trabalha muito próximo do sistema de saúde da África do Sul. Com que tipo de questões de saúde mais complexas é que costuma lidar, particularmente no que respeita às mulheres?
A África do Sul é um país de raças mistas bem como de desenvolvimentos mistos – os muito ricos e os extremamente pobres. Temos o mesmo fardo relativo a condições de saúde crónicas – como a diabetes, a hipertensão ou as doenças coronárias. E sim, também temos o HIV e as doenças sexualmente transmissíveis que não são apenas “comuns” na África do Sul.
Citou o ditado que afirma que “educando-se uma mulher, educa-se a nação inteira”. Como comenta as necessidades educativas do país?
A educação e a saúde são duas prioridades do nosso governo democrático. As políticas de educação gratuita e de acesso à saúde para todos foram implementadas. Com o nosso passado histórico, é um facto reconhecido de que o futuro do país reside na educação. E os pais estão desejosos de enviar os seus filhos para a escola para que estes possam ter melhores oportunidades de vida.
Editora Executiva