Deixar a decisão final sobre a gravidade (ou intolerabilidade) do sofrimento nas mãos do médico, que recorreria a critérios objetivos (o que seria uma forma de limitar a aplicação alargada da lei), contrariaria o primado da autonomia: a decisão de viver ou morrer dependeria não do próprio, mas de um terceiro, não estaríamos perante um exercício de autonomia, mas de heteronomia. E nalguns casos, nem sequer muita objetividade poderia verificar-se, sendo a subjetividade da pessoa doente substituída pela subjetividade do médico
POR PEDRO VAZ PATTO

No motivo que levou o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade de algumas normas do decreto aprovada pelo Parlamento que vem legalizar a eutanásia e o suicídio assistido foi a invocada violação do princípio da determinabilidade da lei, como corolário dos princípios do Estado de Direito e da reserva de lei (reserva de lei no sentido em que determinadas matérias, pela sua relevância, devem ser reguladas por lei e não estar dependentes de decisões casuísticas).

Esse princípio de determinabilidade da lei liga-se a exigências de certeza e segurança: todos devemos saber previamente com o que podemos contar no que à aplicação de uma lei diz respeito. Foi essa, precisamente, a questão levantada pelo Presidente da República no seu pedido de fiscalização, no que concerne a dois conceitos: o de “sofrimento intolerável” e o de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”. O Tribunal (a maioria dos juízes) considerou que este segundo conceito (“lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”) não era suficientemente determinado, mas considerou que o primeiro (“sofrimento intolerável”) já o seria (contra a opinião do próprio relator do acórdão)

Há que referir que o Tribunal não considerou a legalização da eutanásia e do suicídio assistido contrária ao princípio da inviolabilidade da vida humana, lapidarmente consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, artigo que encabeça todo o elenco dos direitos fundamentais. Mas essa é a questão que, mais do que qualquer outra, está em causa nessa legalização. A Constituição portuguesa não limita o princípio da inviolabilidade da vida humana; essa inviolabilidade não deixa de vigorar em fase terminais da vida, quando a vida é marcada pelo sofrimento, a doença ou a deficiência, nem deixa de vigorar com o consentimento do seu titular. Nenhuma dessas limitações a esse princípio está prevista na Constituição, que o consagra de modo absoluto. Nem a ele se sobrepõe a autonomia individual, pois a vida é o pressuposto dessa autonomia (sem vida, não há autonomia).

Há que reconhecer que o uso de conceitos indeterminados em normas jurídicas é algo de frequente, e até inevitável, pois toda a variedade e complexidade da vida real é inabarcável por uma qualquer lei geral, por muito pormenorizada que esta seja. Mas há domínios em que esses conceitos devem ser o mais possível evitados. É o que sucede com o direito penal: precisamente porque está em jogo a aplicação de uma pena, que pode ser a de prisão. Há que saber com precisão e sem incertezas o que pode, ou não, ser considerado crime e levar à aplicação de uma pena.

Convém, porém, salientar uma outra questão. No caso da legalização da eutanásia e do suicídio assistido, o uso de conceitos indeterminados acarreta uma consequência e um risco que vai ainda mais longe do que o uso de conceitos indeterminados noutras normas penais. Não é apenas a aplicação ou não aplicação de uma pena (que pode ser a de prisão) que fica dependente de critérios incertos e subjetivos, é a decisão de provocar, ou não a morte de uma pessoa que fica de dependente de critérios incertos e subjetivos. No fundo, trata-se de uma questão “de vida ou de morte” que ficará dependente desses critérios. É como se a aplicação de uma pena de morte dependesse da interpretação de conceitos indeterminados,

Mas, verdadeiramente, não me parece que seja possível legalizar a eutanásia e o suicídio assistido sem recorrer a conceitos (mais ou menos) indeterminados. Por outro lado, a indeterminação desses conceitos é uma das razões porque também é impossível conter a aplicação da lei e restringir tal aplicação a casos extremos e excecionais. Nunca tal se verificou nos países que enveredaram por esse caminho de legalização. A chamada “rampa deslizante” é inevitável não só pelo uso desses conceitos indeterminados, mas, sobretudo, porque essa legalização representa o derrube de um alicerce de um edifício (esse alicerce é o da inviolabilidade da vida humana, ou a proibição de matar) que, mais tarde ou mais cedo, há-de desmoronar. E isso dá-se através do uso desses conceitos indeterminados, de práticas contrárias à lei mas toleradas, ou de futuras e expectáveis alterações legislativas.

Podemos verificar como o uso de conceitos indeterminados é inevitável e conduz sempre à “rampa deslizante” através da análise da nova versão do projeto de lei que deu origem ao decreto agora aprovado, que se aproxima da lei espanhola também recentemente aprovada. Esta nova versão densifica (isto é, procura tornar menos indeterminados) conceitos como os de “sofrimento intolerável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema”.

Fá-lo deste modo:

«Art. 2.º

(…)

  1. e) Lesão definitiva de gravidade extrema: lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa;
  2. f) Sofrimento: um sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave ou incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa;

(…)»

É evidente que estas definições permitem um vastíssimo alargamento das situações em que será lícita a prática da eutanásia e do suicídio assistido, situações que vão muito para além da fase terminal de uma doença e se enquadram antes em doenças crónicas ou incapacitantes. Será muito desajustado falar a este respeito, como sucede até em alguns projetos de lei, em “antecipação da morte” (outro dos vários eufemismos utilizados pelos partidários da legalização da eutanásia e do suicídio assistido), como se esta morte estivesse próxima (e se tratasse apenas de escolher o modo como essa inevitável morte ocorreria). Pode ser praticada a eutanásia não apenas em situações de doença terminal, mas também em situações de doença incapacitante, e estas seja qual for o tempo de sobrevida (podem ser anos ou décadas), desde que o doente se torne dependente de outra pessoa (um “peso” para os outros).

A indeterminação de conceitos mantem-se nas referidas definições: “lesão grave” (a definição repete a expressão a definir!), “amplamente incapacitante”, “probabilidade muito elevada”, “melhoria significativa”, “doença grave”, “grande intensidade”.

Há que salientar também o seguinte.

De acordo com estas definições, a determinação do conceito de “sofrimento intolerável” depende, em última análise, da própria pessoa que dele padece (“sofrimento… considerado intolerável pela própria pessoa”). Entramos, assim, num campo da absoluta subjetividade. Na verdade, estados de sofrimento semelhantes poderão ser mais ou menos facilmente tolerados por umas pessoas, mas não por outras. O critério é, em última análise, pessoal e subjetivo, não avaliável objetivamente. E o sofrimento que está em causa poderá ser físico, psicológico e espiritual (sem que se esclareça o que poderá significar “sofrimento espiritual”).

Compreende-se este recurso a critérios em última análise subjetivos: se partimos do primado da autonomia individual, é lógico que prevaleçam tais critérios. Deixar a decisão final sobre a gravidade (ou intolerabilidade) do sofrimento nas mãos do médico, que recorreria a critérios objetivos (o que seria uma forma de limitar a aplicação alargada da lei), contrariaria tal primado da autonomia: a decisão de viver ou morrer dependeria não do próprio, mas de um terceiro, não estaríamos perante um exercício de autonomia, mas de heteronomia. E nalguns casos, nem sequer muita objetividade poderia verificar-se, sendo a subjetividade da pessoa doente substituída pela subjetividade do médico. Seja como for, está deste modo escancarada a porta à “rampa deslizante”.

Em suma, somos conduzidos por várias vias a um “beco sem saída” de que só podemos escapar “cortando o mal pela raiz”, isto é, recusando a legalização da eutanásia e do suicídio assistido.

 

Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP)
Juiz Desembargador