Um dos empresários cristãos mais marcantes de sempre e dotado de uma inteligência, uma coragem e uma sensibilidade raras, François Michelin teve na Fé em Deus o grande pilar de toda a sua vida
POR JOÃO RODRIGUES PENA
François Michelin (15 de junho de 1926 – 29 de abril de 2015) foi um herdeiro e empresário francês que marcou uma geração pela sua visão de negócio ambiciosa e profundamente cristã. Presidente da Michelin de 1955 a 1999, a empresa familiar fundada pelo seu avô tornou-se sob a sua liderança o maior fabricante mundial de pneus, introduzindo tecnologias revolucionárias e dominando os mercados chave europeus e norte-americano. Católico praticante, conduz os negócios a partir de sua cidade natal na zona rural de Auvergne. O seu legado fica marcado pelo arrojo e aversão empresarial a hierarquias e pelo profundo espírito católico que imprimiu à sua carreira e, mais do que isso, a toda a sua vida. O livro Et pourquoi pas, que se tornou um best seller, é o melhor testemunho desse legado.
A juventude e o início de carreira
François Michelin nasce a 15 de junho de 1926 em Clermont-Ferrand, França, a poucos quilómetros da pista de corridas de automóveis onde durante décadas foi disputado o Grande Prémio de França de Fórmula 1. E é também nesta vila que nasce a primeira e ainda principal fábrica de pneus da família, inaugurada em 1899 pelo seu avô, o fundador Edouard Michelin (1859-1940). Étienne Michelin e Madeleine Callies, pais de François, morrem cedo e deixam o filho órfão aos dez anos de idade entregue aos cuidados da já extensa família Michelin.
François herda dos avós uma fé católica com raízes profundas que o guia ao longo da vida na sua vida pessoal e, claro, nas suas decisões sociais e empresariais à medida que se torna uma personagem cada vez mais destacada no mundo empresarial francês.
Excelente estudante, François obtém um bacharelado em Ciências em Matemática e inicia a a sua carreira em 1951 na empresa da família. Trabalha ao lado dos operários sob um nome falso para ter a certeza que tem condições para aprender com eles. Começa na linha de montagem, passa a motorista e a seguir entra na equipa de marketing e vendas.
Em 1951, casa-se com Bernadette Montagne, cujo irmão era político e proprietário da Famille chrétienne, uma revista católica francesa. Têm seis filhos. François Michelin sempre foi um católico romano praticante e tem o privilégio de apertar a mão ao Papa João Paulo II em Roma em 2004.
Uma liderança revolucionária e exemplar que alcança a liderança mundial
Em 1955 ascende à posição de Presidente e CEO que ocupa até 1999. Herda a Michelin como décimo maior fabricante de pneus do mundo e com tremendo arrojo leva a empresa ao primeiro lugar mundial. Entre 1960 e 1979 abre vinte e cinco novas fábricas nos cinco continentes. Adquire a Uniroyal Goodrich Tire Co em 1990 e coloca a Michelin na frente do mercado dos EUA. Esta aquisição obrigou a um endividamento relevante, mas François Michelin não vacila e concretiza a operação. Em 1994, prova-se que tem razão quando a dívida é eliminada.
Uma das maiores inovações do século na indústria foi o pneu radial, introduzido pela Michelin e que se tornou o padrão da indústria até hoje. Em 1993, lança o pneu verde vocacionado para redução do consumo dos automóveis.
Mas talvez a maior inovação da marca estava na sua disruptiva promoção. Em 1983 torna-se o primeiro fabricante a ter um acordo com a FIA para ter o pneu Michelin como marca única do Campeonato do Mundo de Fórmula 1, o que confere à Michelin uma enorme exposição mediática.
Na mesma altura, expande ao longo de anos o famoso Guia Michelin, uma brilhante iniciativa lançada pelo fundador em 1910 e ainda hoje a referência em guias de hotelaria e gastronomia cobrindo dezenas de destinos turísticos em todo o mundo. Claro que estas iniciativas não nasceram sós – já em 1888 a Michelin tinha mostrado a sua veia inovadora em marketing dando corpo ao mais famoso mascote do mundo, o Bibendum.
Na fábrica, François Michelin fica famoso pelo seu estilo de liderança avesso a hierarquias. Acredita que todos os funcionários devem participar e ser ouvidos, independentemente do seu nível hierárquico, da sua função ou da sua posição social. E estimula a tomada de riscos para inovar, removendo os tradicionais receios de falhanço. No plano cultural, não esconde a importância da discrição e da confidencialidade.
E tão importante quanto o sucesso empresarial foi a introdução do conceito de “salário digno” para os 132,000 funcionários em todo mundo concebido para satisfazer as necessidades básicas de uma família, uma medida que não era inovadora, mas teve grande impacto. O novo salário Michelin representa em média entre 1,5 vezes e 3 vezes o salário mínimo consoante o país. Acresce o “escudo de proteção social” implementado gradualmente até ao final de 2024, incluindo cobertura de saúde para os trabalhadores e os seus filhos. Estas medidas são coerentes com a história de um grupo com raízes profundas e laços familiares, sempre comprometido em trabalhar pelo bem-estar de seus funcionários. E quando a empresa enfrenta momentos difíceis e tem de libertar funcionários, a consciência cristã dos diretores da empresa fica evidente na ajuda que prestaram com o seu próprio tempo na formação ou revitalização de quem não iria poder continuar.
Esta medida reflete bem o legado do fundador, Édouard Michelin, que sempre fez questão de garantir desde o início que o crescimento da sua empresa fosse acompanhado por uma política social ambiciosa para os seus trabalhadores e modelos de participação dos colaboradores nos lucros, reforçando de forma inteligente o seu apego à empresa. A empresa foi uma das primeiras em França a pagar abonos de família, numa altura em que o Estado prestava pouca atenção a esta questão. A vida de um funcionário da Michelin interessava ao patrão desde o nascimento até à morte. Em Clérmont Ferrand, François Michelin construiu cidades-jardim de moradias que eram famosas na época, assim como escolas, cooperativas, hospitais e a piscina Michelin onde as crianças aprendiam a nadar. E fiel à sua devoção católica, estimulava a que todos os domingos as famílias dos trabalhadores, a grande “família Michelin”, se reunissem para a missa na paróquia do Divino Operário Jesus.
Na carreira como na vida, François Michelin encarna uma visão sacramental, no sentido em que considera que o intercâmbio cooperativo entre Deus e o Homem é uma sinergia omnipresente. Confessa que vê essa sinergia mesmo nas instalações de Clermont-Ferrand, admitindo que cada vez que saía do seu escritório espartano e mergulhava na esfera do operário e do engenheiro ficava tocado pelo orgulho, entusiasmo e entrega que testemunhava. Materializavam a sua visão: “O trabalho de fábrica expressa perfeitamente o que fazemos todos os dias – é essencialmente uma ação que consiste em tomar matérias-primas e fazer delas um produto comercializável. É um ato nobre.”
Aqui é importante sublinhar que François Michelin teve sempre uma relação afastada dos bens materiais, uma atitude que lhe veio da juventude “Guardei muitas coisas do meu avô, especialmente duas: verdade e realidade são maiores do que nós e o dinheiro é nosso servo, nunca o senhor” E será que a fortuna de François Michelin foi de facto dedicada ao serviço dos mais necessitados? Nas suas palavras “Cuidei de muitas coisas, mas mantive-as em sigilo, sem lhes associar sequer o meu nome. E será sempre assim enquanto for vivo e depois da minha morte” E assim é depois de falecer, distribuindo muita da sua riqueza por benfeitorias sociais.
A dramática sina da família Michelin
Há um historial de morte prematura e violenta na família, que assume foros de praga mas que François Michelin sempre contrariou apesar da morte prematura dos pais quando tinha apenas dez anos – mesmo com as consequências na família e na empresa.
Mas a tragédia marcou mesmo muito a família. Em 1932, Étienne Michelin, filho mais velho do fundador da companhia, despenha-se aos comandos do seu avião e põe termo a uma provável sucessão na liderança.
O irmão mais novo de Étienne estava a ocupar lugares de crescente destaque no Grupo e seria certamente o sucessor do fundador na morte de Étienne. Mas a 29 de dezembro de 1937, ao volante do seu Citroen, embate num outro automóvel e mata de imediato todos os seus quatro ocupantes – um casal e os dois filhos. Pierre acabaria por morrer no hospital no dia seguinte durante uma cirurgia de amputação da perna direita. Tinha 34 anos.
Mas as histórias trágicas não se ficaram por aqui. Em 1949, Jean-Luc Michelin, neto do fundador da companhia André Michelin, morre num acidente de viação com os dois filhos. No mesmo ano, o irmão, Daniel, mata a filha de dois anos durante uma manobra de automóvel.
Os últimos anos de François Michelin
Após ter construído e liderado durante 44 anos o maior gigante mundial da indústria a partir da pequena fábrica de Clérmont Ferrand, em 1999 François Michelin inicia a transição para o seu filho Édouard, assumindo ambos o cargo de co-Presidente durante três anos no que se revelou um processo exemplar. Reforma-se em 2002, ainda treze anos antes de falecer.
François Michelin concede em 2003 uma longa entrevista com dois jornalistas que acaba por resultar na obra de 107 páginas Et Porquoi Pas? que se tornou famosa. O livro examina a filosofia de gestão empresarial do industrial, opiniões políticas e fé católica que sente profundamente. A sua publicação é ainda mais notável pelo facto de François Michelin, apesar da sua proeminência social, ter evitado assiduamente jornalistas e entrevistadores durante a maior parte da sua vida. A obra merece aqui neste artigo, mais adiante, uma visita mais atenta, mas há uma citação que deixo aqui pelo que demonstra da sua personalidade assertiva e mesmo intransigente com os outros “Pessoalmente, não acredito no acaso. Isso não existe. Há pessoas que sabem ver e outras que nunca verão nada… O mundo à nossa volta está cheio de coisas à espera de alimentar a nossa liberdade, só temos de estar suficientemente atentos para os descobrir.”
Mas para François Michelin o pior estava para vir.
Aos 76 anos, tinha passado o testemunho ao filho Edouard, bisneto e homónimo do fundador da empresa que fabrica pneus. À frente dos destinos da companhia francesa durante mais de quatro décadas, estava tranquilo. Formara o seu quinto filho (eram seis, rapazes e raparigas) seguindo os seus valores: desempenho, simplicidade, discrição. Acompanhou-o, formou-o e fez toda a transição para o deixar preparado. No entanto, sete anos depois com 46 anos, Edouard morre afogado num acidente de pesca. A empresa nunca mais foi dirigida por um membro da família.
Tudo o que tinham construído juntos desmoronou-se de repente e François partilhou com Deus a sua ira. No entanto, no seu tempo de vida, o cristão profundamente religioso encontra conforto na sua crença numa vida eterna que não conhece a morte, mas apenas mudanças dramáticas. Mesmo após a morte de Edouard, a vida não perdeu de todo o seu sentido; há um significado em tudo e Deus responde a todas as perguntas. “É o mistério da Fé. Edouard não existe mais, mas permanece um significado, a vida cotidiana tem sentido. Rejeitar a bondade infinita de Deus seria um ato de orgulho fenomenal e monstruoso”
A liderança da empresa não volta a passar por um membro da família, mas François Michelin não está preocupado. A questão é tão somente assegurar que o líder contratado fora tem sentimentos pela empresa e uma compreensão de como ela funciona, como e por que o faz. “O líder é secundário, sempre foi do conhecimento geral na Michelin que o patrão da empresa é o cliente”
Um ano depois da mulher e depois de viver no modesto lar Ma Maison, uma comunidade de aposentados administrada por uma instituição de caridade católica romana em Clermont-Ferrand, François Michelin vem a falecer a 29 de abril de 2015, aos oitenta e oito anos de idade, na sua cidade natal. O presidente francês, François Hollande, homenageou-o como “um dos maiores industriais franceses do pós-guerra”.
A importância da Fé Cristã de François Michelin no seu pensamento e no seu legado
A obra Et pourquoi pas é porventura o testemunho público mais marcante do caráter, da visão e do espírito cristão de François Michelin . Nesta série de entrevistas, François Michelin, que toda a vida foi um homem muito reservado e avesso a falar das suas ideias e práticas, abre-se finalmente, partilhando a sua crença de que o trabalho de um líder empresarial reflete de perto o ato criativo de Deus. Para ele o conceito do negócio como uma vocação cristã está clara e lamenta que não receba a atenção que merece. De facto, poucas figuras empresariais retrataram a sua atividade profissional sob essa luz – não viram que podiam e deviam superar a divisão entre os domínios económico e teológico. Mas não François Michelin, para quem o empresário produz um grande bem moral e material à medida que cumpre as inúmeras responsabilidades da sua posição. No fundo, Et Pouquoi Pas defende de forma convincente a valorização de uma profunda dimensão teológica da vida empresarial assim como uma maior valorização do contributo dos trabalhadores nas empresas, em cujos esforços considera que se apoia a saúde de uma nação.
A sua personalidade sempre foi marcada pelo grande otimismo e arrojo que só a força da Fé em Deus pode aportar, como se reflete numa das suas parábolas favoritas “A história dos três portadores de pedras diz muito. Alguém que os vê pergunta: “O que é que está a fazer com essas pedras? O primeiro responde: “Eu trago uma pedra”. O segundo: “Eu faço uma escultura”. O terceiro: “Eu construo uma catedral.”
O seu legado espiritual reflete bem a sua pessoa. Questionado sobre o que de mais importante deixa aos netos, François Michelin diz “As coisas essenciais que recebi: a realidade, a verdade. E que nunca se pode prescindir dos homens e que não se pode deixar de amar o que é feito. E conclui: “O que resta de uma vida é o que você aprende sobre os homens. O homem, isso é o mais importante “.
François Michelin foi um dos mais notáveis e brilhantes empresários cristãos deste século. Com inovação, arrojo e uma inquebrantável Fé em Deus, transformou num império industrial único a pequena fábrica herdada do avô e enfrentou grandes adversidades pessoais olhando sempre para a frente com uma força única. Da sua vida tão inspiradora, destaco três princípios do seu legado para ilustrar o título da nossa coluna, o impacto da fé cristã na criação e gestão empresarial:
- Não acredito no acaso. Isso não existe. Há pessoas que sabem ver e outras que nunca verão nada… O mundo à nossa volta está cheio de coisas à espera de alimentar a nossa liberdade, só temos de estar suficientemente atentos para os descobrir.”
- O que resta de uma vida é o que nós aprendemos sobre os homens. O homem, isso é o mais importante
- Rejeitar a bondade infinita de Deus seria um ato de orgulho fenomenal e monstruoso
A Fé em Deus é a grande lição de vida de François Michelin. A Fé que o fez conquistar o mundo com inovação e arrojo e a mesma Fé com que enfrentou a brutal adversidade que foi para si a morte do seu filho e sucessor Édouard. É o grande pilar da sua vida e mesmo com a morte do filho nunca vacilou – pelo contrário, fortaleceu-se na aproximação ao conforto de Deus. E as suas palavras dizem tudo sobre a sua Fé e o seu íntimo amor a Deus “A Fé leva à noção de vida eterna. Não desaparece depois da morte. Percebes o que isto significa? É formidável.”
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Engenheiro Civil com MBA por Wharton/NOVA e pós-graduação pela Harvard Business School. Depois de uma longa carreira em Consultoria de Estratégia concluida com o lugar de Presidente da AT Kearney Iberia, passa a focar-se no Desenvolvimento de Empresas Familiares, área onde tem sido cronista regular em vários jornais, conferencista e autor do livro “44250 passo até ao Cume”. É Cavaleiro da Ordem de Malta CGM e associado da CCIP e da ACEGE
Fiquei encantado com o artigo sobre Francois Mivchelin, notáveal legado para todos nós.