Para muitas mulheres em todo o mundo, a resposta a esta pergunta poderia ser de assentimento. E não porque não gostem de o ser, mas porque a vida de todos os dias as faz lembrar que estão e provavelmente estarão sempre em segundo plano face aos homens. A verdade é que por muitos “progressos” que existam, os fossos em todas as áreas que dizem respeito à igualdade de género continuam a ser intransponíveis, uns mais do que outros, é certo, mas mesmo assim sem evoluções verdadeiramente dignas de nota. No Dia Internacional da Mulher, assinalado esta semana, assistimos às habituais chuvas de flores e dizeres bonitos. Foi assim este ano, tal como tem sido nos anteriores. E, muito provavelmente, assim continuará a ser nos tempos vindouros, como poderá ler no artigo que se segue.
Uma palavra obrigatória de esperança para as mulheres ucranianas: às que são obrigadas a partir com a mesma coragem das que optam por ficar e lutar não só pelos seus direitos, mas de todo um povo
POR HELENA OLIVEIRA
Sou mulher e afortunada. Cresci com muito amor, tive acesso à educação e à saúde, nunca me senti discriminada no meu local de trabalho e tenho gozado das mesmas oportunidades económicas que os meus pares masculinos. Não sei o que é a fome e muito menos o desespero de não ter comida para alimentar os meus filhos. Nunca tive de suportar o peso dos cuidados e das tarefas domésticas sozinha, nunca fui vítima de violência doméstica, não estive sujeita ao casamento infantil nem à mutilação genital feminina – actos reconhecidos internacionalmente como violações dos direitos humanos – não sei o que é viver com medo de ser violada, nem sei o que é fugir com filhos pequenos no braço num comboio sem destino traçado deixando para trás a minha vida e os que amo porque a guerra invadiu as fronteiras do meu país. Sou, repito, uma afortunada.
Mas, e porque tenho a sorte de saber ler e escrever, tenho conhecimento de que, por exemplo, dois terços dos 781 milhões de adultos iletrados no mundo são mulheres e que este facto se mantém inalterado há décadas; que cerca de 2,4 mil milhões de mulheres em idade activa não têm as mesmas oportunidades económicas que os seus pares masculinos, com 178 países a manterem barreiras legais que impedem a sua plena participação económica; que pelo menos 95 países não garantem salário igual para trabalho igual e que, globalmente, as mulheres têm apenas três quartos dos direitos legais concedidos aos homens (v. Women, Business and the Law 2022). De acordo com as palavras de Mari Pangestu, Directora Executiva da Política de Desenvolvimento e Parcerias do Banco Mundial, embora tenham sido alcançados alguns progressos, o fosso entre os rendimentos esperados dos homens versus o das mulheres ao longo da vida e a nível global é de 172 biliões de dólares – quase o dobro do PIB anual mundial”.
Sei, igualmente, que em média, as mulheres recebem cerca de menos 24% do salário de homens com funções análogas e que, com a ajuda da pandemia, a qual as atingiu de uma forma muito mais dura comparativamente aos homens, o fosso para se alcançar a paridade de género aumentou de 99,5 para 135,6 anos, segundo dados publicados no relatório anual elaborado pelo Fórum Económico Mundial (FEM) em 2021. Este mesmo relatório, cuja nova edição será publicada brevemente, analisa 156 países e estima também que, ao ritmo actual do progresso (?), serão igualmente necessários 145,5 anos para se atingir a paridade de género na política. Já o hiato no que respeita à participação económica e às oportunidades alcançadas por homens e mulheres que, e de acordo com o FEM, registou “uma melhoria marginal desde a edição de 2020” para estas últimas, é estimado que “feche” daqui a 267,6 anos.
Por fim ou infelizmente nem por isso, sei também que apenas em 12 países em todo o mundo, todos eles pertencentes à OCDE e com Portugal incluído nesta lista restrita, a igualdade plena de direitos entre homens e mulheres está legislada. Todavia, e como sabemos também, a legislação por si só não é suficiente para melhorar a igualdade ambicionada, com vários factores em jogo e que incluem não só a sua genuína implementação e aplicação, mas também normas sociais, culturais e religiosas profundamente arreigadas em muitas sociedades.
A “feminização” da pobreza
O termo foi cunhado nos anos de 1970 pela investigadora em questões de género e pobreza Diana Pearce, tendo ganhado estatuto global na Quarta Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, em 1995, e sendo agora amplamente utilizado. E refere-se ao fenómeno de as mulheres (bem como as crianças) estarem desproporcionalmente “representadas” entre os pobres do mundo e serem mais susceptíveis do que os homens a viver abaixo do limiar da pobreza.
As projecções, encomendadas pela UN Women e pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) prognosticavam que a taxa de pobreza das mulheres diminuísse 2,7% entre 2019 e 2021, estimando-se agora um aumento de 9,1% devido à pandemia e às suas consequências. A Statista cita um estudo realizado em 2020 sobre o impacto pandémico na pobreza feminina, o qual concluiu que, a nível global e em 2021, 247 milhões de mulheres (a partir dos 15 anos) viveriam com menos $1,90 por dia comparativamente a 236 milhões de homens, estimando igualmente que esta diferença aumente consideravelmente até 2030 na medida em que as mulheres continuarão a ser a maioria dos mais pobres do mundo.
Com já sublinhou a OXFAM relativamente ao impacto da crise pandémica em particular nos países de baixo rendimento, 92% das mulheres trabalham em empregos informais, perigosos ou inseguros. O coronavírus levou também a uma explosão na carga de trabalho relacionado com os cuidados a terceiros, mal remunerado e não remunerado, que é feito predominantemente por mulheres e, em particular, por mulheres de grupos que enfrentam a marginalização racial e étnica. Mas e na verdade, e seja qual for a região do planeta, raparigas e mulheres continuam com uma maior propensão face aos homens de caírem nas malhas da pobreza, da iliteracia, da fome, da doença, sendo igualmente sub-representadas em posições de liderança, enfrentando mais constrangimentos legais, uma maior marginalização política e ameaçadas por vários tipos de violência.
E se é verdade que existem muitas questões complexas e entrelaçadas que ajudam a perpetuar a pobreza nas mulheres e que constituem barreiras intransponíveis para se alcançar a igualdade, como a já mencionada a disparidade de oportunidades, o acesso limitado à educação, os desafios em matéria de saúde e nutrição, a falta de representação governamental, a violência e os conflitos, existem outras menos tangíveis. Por exemplo e de acordo com um especialista em direitos humanos da ONU, citado num artigo do Fórum Económico Mundial, a violência contra mulheres e raparigas está “ainda tão profundamente enraizada nas culturas de todo o mundo que é quase invisível”. Por exemplo, dados de 2020 divulgados no relatório anual sobre igualdade de género do FEM, demonstram que entre um quinto e quase metade das mulheres a nível mundial sofrem abusos físicos ou sexuais por parte dos seus parceiros masculinos.
Por outro lado, os preconceitos contra as mulheres continuam a subsistir e em grande escala. Um relatório da ONU divulgado em 2021 demonstrou que quase 90% dos homens (e mulheres!) têm algum tipo de preconceito contra as mulheres, depois de os analisar em áreas como a política e a educação em cerca de 80% da população mundial. E as conclusões são claras: globalmente, perto de 50% dos homens afirmaram ter mais direito a um emprego do que as mulheres; metade dos homens e mulheres inquiridos acreditam que os melhores líderes políticos são do sexo masculino e quase um terço considera aceitável que os homens possam exercer alguma violência nas suas parceiras. O estudo concluiu também que não há nenhum país no mundo que tenha alcançado verdadeiramente a igualdade de género.
É sabido que o impacto da desigualdade é mais pronunciado nos países mais pobres do mundo, onde muitas mulheres e raparigas não têm sequer controlo ou acesso aos mais básicos recursos e serviços, vivem em medo constante de sofrerem abusos e vários tipos de violência, é-lhes negada a educação e não têm qualquer palavra a dizer sobre as decisões nas suas próprias casas. Assim, e numa perpetuação deste estado, as famílias que vivem na pobreza decidem frequentemente dar prioridade à educação, enviando os seus filhos para a escola em vez das suas filhas. Ora, menos educação significa menores probabilidades de emprego, o que é ainda mais exacerbado pelo facto de as tarefas domésticas e os cuidados com ascendentes e descendentes recaírem sistematicamente sobre as mulheres e raparigas, criando horários de trabalho mais longos e ainda menos oportunidades de auferirem um rendimento.
As “outras” mulheres e o futuro do trabalho
“Temos de eliminar preconceitos e o estigma em torno da flexibilidade”. Quem o afirma é Sue Duke, vice-presidente e responsável pelas áreas de Política Global e Economia do LinkedIn e que este ano está a participar na realização do próximo Global Gender Gap Report do FEM.
A crise provocada pela COVID-19 não é apanágio apenas das mulheres pobres e sem estudos, tendo atingido igualmente a participação das mulheres nas empresas. Os dados do Gráfico Económico do LinkedIn mostram que, especialmente no início da crise, as taxas de contratação de mulheres caíram a pique em comparação com as dos homens, tendo sido perdido terreno crítico no que respeita ao seu posicionamento em matéria de liderança. Como sabemos, ou deveríamos saber, a representação feminina em cargos de liderança é crítica não só devido ao impacto dos cargos que ocupam, mas também porque os líderes servem frequentemente de modelo para os outros. Mais ainda, a responsável do LinkedIn afirma que hoje em dia, não existe nenhum país e nenhuma indústria no mundo que se possa gabar de ter alcançado a paridade de género nos papéis de liderança.
Um outro aspecto que deve ser tido em consideração traduz-se nos sinais preocupantes de que as mulheres não estão equitativamente representadas nos empregos de amanhã. Ora e sendo estes que estão a moldar o futuro da economia, com áreas críticas para os anos vindouros das nossas sociedades – como o sector tecnológico e a economia verde – não é tempo de perder tempo, devendo-se começar a agir de imediato.
Todavia e apesar dos estragos provocados pela pandemia, esta também demonstrou que há possibilidade de se trabalhar de maneiras distintas, na medida em que, e da noite para o dia, o trabalho remoto se tornou norma para muitos. Dois anos após o surgimento da Covid-19, o trabalho à distância representa quase 15% de todos os empregos anunciados no LinkedIn. E não é de todo surpreendente que sejam as mulheres as que maior propensão têm para se candidatarem a funções que permitam este modelo laboral.
Assim, a flexibilidade pode ser um factor de mudança neste jogo desigual e um factor-chave para se atingir a paridade nos locais de trabalho, uma vez que pode permitir às mulheres (e aos homens) combinar a sua vida profissional com outras tarefas. Medidas simples como o trabalho à distância ou horários de trabalho flexíveis podem fazer uma grande diferença. Mas é necessário eliminar ainda os preconceitos que subsistem em torno da flexibilidade para que seja possível às mulheres alcançar seu verdadeiro potencial e tornar os locais de trabalho mais equitativos. Apesar de alguns progressos, as mulheres continuam a dar dois passos à frente e um atrás. E seja nos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, a verdade é que são os homens que estão na linha da frente e continua a ser necessário trilhar um longo caminho para as mulheres terem o “direito” de caminhar a seu lado.
Editora Executiva