O empreendedorismo é como o sol. Nasce todos os dias. Há aceleradores de negócio, incubadoras e cursos de empreendedorismo em qualquer esquina do país. Cinismo? Pelo contrário. O que assistimos hoje em Portugal tem os ingredientes certos para se poder tornar numa verdadeira revolução cultural na economia e na sociedade portuguesa
A crise das dotcom não trouxe, ao invés do que aconteceu nos Estados Unidos, uma efectiva mudança de paradigma para quem tinha empresas em Portugal. Por ‘quem tinha empresas’, entenda-se, falo de novos empresários (hoje empreendedores), novas PME (hoje startups), já que à excepção das heranças ou de negócios de Estado, nenhuma empresa nasce grande. E a mudança não foi grande, porque, apesar de uma primaveril excitação com a internet, a tecnologia e as novas possibilidades que traziam, a verdade é que em Portugal só meia dúzia de ‘piratas’ tinha, realmente, ideias e capacidade para surfar nessa onda. Os restantes eram figurantes, muitos apenas entusiasmados com o que parecia ser uma ‘onda’ cool da economia. Assim, a nova economia começou e acabou num piscar de olhos, as empresas portuguesas voltaram a preocupar-se com a crise habitual da economia portuguesa, os discursos alinharam-se de novo pelo diapasão de sempre (não há orçamento, estamos em contenção de custos, este ano temos de controlar os investimentos) e os mesmos de sempre continuaram nos seus negócios das grandes obras, das grandes infra-estruturas, dos negócios em que o Estado é padrinho e às vezes padrasto. O que ficou para alguns de nós, desses curtos anos entre finais de década de 90 e arranque de século XXI, foi a possibilidade. E a possibilidade é uma faísca poderosa, capaz de atear um fogo maior. As histórias que nos chegavam ‘lá de fora’, os choques eléctricos das capas da Wired, nomes novos – sim, eram novos – como Bezzos, Jobs, Branson, nomes ainda mais novos, alguns extemporâneos, chicoteavam-nos para que não nos esquecêssemos que havia a possibilidade. Entre 2002 e 2008, muitas PMEs portuguesas, em áreas como media digital, biomedicina, ambiente, tecnologia aeroespacial, apenas para citar algumas, cresceram a pulso com os olhos postos na possibilidade. Que possibilidade? Aquela que move quem verdadeiramente é empreendedor. A de criar algo novo, de encontrar uma nova solução, de traçar um caminho próprio. E, milagrosamente, com muito trabalho, muita persistência e muita competência, algumas destas PMEs tornaram-se elas próprias a possibilidade. Ganharam o seu espaço, conquistaram direito a existir e a ser donas do seu futuro. Nada mais inusual ao Portugal monolítico, dos grandes e dos pequenos, pouco ou mesmo nada habituado a ceder espaço a esse meio que é por onde se passa obrigatoriamente no caminho de pequeno a maior. Nestes anos, recordo, eu fui sócia da minha primeira empresa. Um tempo de aprendizagem, daquela que não se esquece, talvez idêntica à que pais e avós contavam ter feito entre reguadas para aprender a tabuada. Não sabes gerir IVA? Reguada. Estás a contar com pagamentos a horas? Reguada. Dedicas horas a fim a produzir propostas que já são verdadeiros projectos chave-na-mão (não pagos)? Reguada. Nesse tempo, os ditos grandes clientes tinham entre as suas principais preocupações duas perguntas: onde era a sede da empresa e quantas pessoas empregávamos. Uma empresa de garagem não era ‘giro’ nem sinónimo de ‘espírito empreendedor’. Era simplesmente uma empresa pouco sexy ou que ao assumir-se assim falhava o ‘círculo da confiança’. Um amigo e companheiro destas cruzadas contava que nas reuniões de apresentação multiplicava-se sempre (a ele e aos dois sócios) por três. Valemos por três, garantia. (e valiam mesmo, hoje é uma das empresas tecnológicas mais interessantes em Portugal). Até que chegou 2008. Faliram bancos na América. O Portugal forte com os fracos e fraco com os fortes protegeu os seus bancos. Mas, ao lado, uma economia de PMEs dominada por empresas que nunca conseguiram fazer a travessia da ponte que liga o infinitamente pequeno ao consideravelmente maior, soçobrou. O diapasão de 2001 – (não há orçamento, estamos em contenção de custos, este ano temos de controlar os investimentos) – tornou-se substancialmente mais simples. Nada ou afoga-te. Tão simples quanto isso. Os heróis da ‘possibilidade’, os que resistiram e alguns acabados de chegar, perceberam a mensagem. Os monopólios não te vão defender, o Estado não te vai subsidiar, a Europa não te vai salvar. E foi neste clima agreste que empreendedores realmente empreendedores, viram a sua possibilidade. Quem tem de nascer, prepare-se para esbracejar, li há pouco tempo na escrita do padre José Tolentino Mendonça. “Enquanto se esbraceja, a vida vem em nosso socorro, a vida torna-se cúmplice, e não pára de nos surpreender”. Um ano, dois anos, três anos. O Portugal monolítico não se rendeu fácil a esta gente que resiste e que persiste. Gente que vem de origens tão diferentes quanto as universidades, os negócios tradicionais, os empregos monótonos e sem qualquer chama de desafio e, em tantos casos, o desemprego ingrato e inglório. Quando Portugal bateu no fundo, algures entre o fim de 2010 e meados de 2011, o país descobriu estes novos heróis. De então para cá, o empreendedorismo é como o sol. Nasce todos os dias. O empresário que fez fortuna no estrangeiro e regressou milionário é empreendedor e o jovem que tirou um curso profissional e foi trabalhar como barbeiro também.
Há aceleradores de negócio, incubadoras e cursos de empreendedorismo em qualquer esquina do país. Cinismo? Pelo contrário. O que assistimos hoje em Portugal tem os ingredientes certos para se poder tornar numa verdadeira revolução cultural na economia e na sociedade portuguesa. A combinação de factores como o número de licenciados, mestrandos e doutorados, a diluição de fronteiras próximas e longínquas, a intensificação do uso das tecnologias de comunicação e a proverbial natureza dos portuguesas para mostrar o que são capazes quando têm a corda na garganta pode ser a nossa tempestade perfeita. Desde que não nos tire o discernimento e desde que o movimento sincero de pessoas e empresas à procura de novas soluções não seja apropriado pelo ‘establishment’ apenas e tão somente como bandeira. “Tendemos a olhar para os empreendedores como se fossem super-heróis, vestissem fato e gravata e fossem hiper-ricos. O empreendedorismo tem além da evidente função económica, um objectivo social: resolver problemas quotidianos, dar resposta a necessidades. Qualquer pessoa pode faze-lo desde que detecte uma oportunidade e detenha competências básicas: pensamento crítico e criatividade”. A afirmação é de Dana Stangler, da Kauffman Foundation, numa entrevista recente ao Expresso. E o que diz tem tudo a ver com não irmos em modas, não nos atermos à forma, mas sim ao conteúdo. O conteúdo que interessa, neste momento, é criar condições para que as novas empresas, os novos projectos, cresçam. Crescer significa vender mais, fazer boas parcerias, ter boleia para internacionalização, ter reconhecimento de marca. O financiamento é, naturalmente, um tema crítico – há que levar à letra a máxima ‘put your money where you put your mouth’ – mas tudo o resto é tão ou mais importante e não custa dinheiro. Custa compromisso, custa empenho e custa visão de médio e longo prazo. No passado, a ausência destes valores custou-nos caro, como nos custa caro a ausência de uma sociedade civil e de uma comunidade empresarial forte e autónoma do Estado. É a nossa oportunidade de corrigir o rumo. O ambiente que tenho presenciado em várias incubadoras e em vários projectos de parceria faz-me acreditar que o podemos mesmo fazer. Há um país anestesiado e que século após século enraizou fundo a convicção que nada vale a pena no binómio ‘nós’ versus ‘ eles’, mas há outro país decidido a não se deixar abandonar a essa sorte. A expressão ‘companhia’ enquanto designação de empresa surgiu no século XII, em Florença: la compagnia. Do latim cum + panis que significa partir o pão em conjunto. Precisamos deste sentimento de colectivo. Ou nadamos juntos ou o mais provável é que nos afoguemos juntos. Fazer uma empresa é arriscar. Arriscar sabendo que 70% das empresas falham. Sobre as ideias |
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Jornalista e publisher na MadreMedia, uma empresa editorial responsável pelo SAPO24, site de informação do Portal SAPO, pelo The Next Big Idea, programa de televisão em exibição na SIC Notícias desde 2012 e por um conjunto de newsletters, podcasts e séries documentais. Autora de dois livros, “A sorte dá muito trabalho” (2012) e “Banco bom, Banco mau” (2014). Mãe do Miguel e da Margarida. Coisas que adora fazer: ler, escrever, cozinhar e discutir ideias.