O empreendedorismo é como o sol. Nasce todos os dias. Há aceleradores de negócio, incubadoras e cursos de empreendedorismo em qualquer esquina do país. Cinismo? Pelo contrário. O que assistimos hoje em Portugal tem os ingredientes certos para se poder tornar numa verdadeira revolução cultural na economia e na sociedade portuguesa
POR RUTE SOUSA VASCO

.
.

.

Há cerca de 12 anos fiz a minha primeira empresa numa época em que ser empregado por conta de outrem, sobretudo ser bem empregado por conta de outrem, ainda era o melhor que se podia desejar. Viviam-se os primeiros anos do século XXI e, antes disso, os anos 90 tinham sido inebriantes de crédito, casa própria, carro próprio, quase pleno emprego, multinacionais que investiam, marketing em explosão. Eu fiz parte da geração que entrou no mercado de trabalho nessa euforia. As coisas corriam bem, a mim e à maior parte dos que me rodeavam.

A crise das dotcom não trouxe, ao invés do que aconteceu nos Estados Unidos, uma efectiva mudança de paradigma para quem tinha empresas em Portugal. Por ‘quem tinha empresas’, entenda-se, falo de novos empresários (hoje empreendedores), novas PME (hoje startups), já que à excepção das heranças ou de negócios de Estado, nenhuma empresa nasce grande. E a mudança não foi grande, porque, apesar de uma primaveril excitação com a internet, a tecnologia e as novas possibilidades que traziam, a verdade é que em Portugal só meia dúzia de ‘piratas’ tinha, realmente, ideias e capacidade para surfar nessa onda. Os restantes eram figurantes, muitos apenas entusiasmados com o que parecia ser uma ‘onda’ cool da economia.

Assim, a nova economia começou e acabou num piscar de olhos, as empresas portuguesas voltaram a preocupar-se com a crise habitual da economia portuguesa, os discursos alinharam-se de novo pelo diapasão de sempre (não há orçamento, estamos em contenção de custos, este ano temos de controlar os investimentos) e os mesmos de sempre continuaram nos seus negócios das grandes obras, das grandes infra-estruturas, dos negócios em que o Estado é padrinho e às vezes padrasto.

O que ficou para alguns de nós, desses curtos anos entre finais de década de 90 e arranque de século XXI, foi a possibilidade. E a possibilidade é uma faísca poderosa, capaz de atear um fogo maior. As histórias que nos chegavam ‘lá de fora’, os choques eléctricos das capas da Wired, nomes novos – sim, eram novos – como Bezzos, Jobs, Branson, nomes ainda mais novos, alguns extemporâneos, chicoteavam-nos para que não nos esquecêssemos que havia a possibilidade.

Entre 2002 e 2008, muitas PMEs portuguesas, em áreas como media digital, biomedicina, ambiente, tecnologia aeroespacial, apenas para citar algumas, cresceram a pulso com os olhos postos na possibilidade. Que possibilidade? Aquela que move quem verdadeiramente é empreendedor. A de criar algo novo, de encontrar uma nova solução, de traçar um caminho próprio. E, milagrosamente, com muito trabalho, muita persistência e muita competência, algumas destas PMEs tornaram-se elas próprias a possibilidade. Ganharam o seu espaço, conquistaram direito a existir e a ser donas do seu futuro. Nada mais inusual ao Portugal monolítico, dos grandes e dos pequenos, pouco ou mesmo nada habituado a ceder espaço a esse meio que é por onde se passa obrigatoriamente no caminho de pequeno a maior.

Nestes anos, recordo, eu fui sócia da minha primeira empresa. Um tempo de aprendizagem, daquela que não se esquece, talvez idêntica à que pais e avós contavam ter feito entre reguadas para aprender a tabuada. Não sabes gerir IVA? Reguada. Estás a contar com pagamentos a horas? Reguada. Dedicas horas a fim a produzir propostas que já são verdadeiros projectos chave-na-mão (não pagos)? Reguada.

Nesse tempo, os ditos grandes clientes tinham entre as suas principais preocupações duas perguntas: onde era a sede da empresa e quantas pessoas empregávamos. Uma empresa de garagem não era ‘giro’ nem sinónimo de ‘espírito empreendedor’. Era simplesmente uma empresa pouco sexy ou que ao assumir-se assim falhava o ‘círculo da confiança’.  Um amigo e companheiro destas cruzadas contava que nas reuniões de apresentação multiplicava-se sempre (a ele e aos dois sócios) por três. Valemos por três, garantia. (e valiam mesmo, hoje é uma das empresas tecnológicas mais interessantes em Portugal).

Até que chegou 2008. Faliram bancos na América. O Portugal forte com os fracos e fraco com os fortes protegeu os seus bancos. Mas, ao lado, uma economia de PMEs dominada por empresas que nunca conseguiram fazer a travessia da ponte que liga o infinitamente pequeno ao consideravelmente maior, soçobrou. O diapasão de 2001 – (não há orçamento, estamos em contenção de custos, este ano temos de controlar os investimentos) – tornou-se substancialmente mais simples. Nada ou afoga-te. Tão simples quanto isso.

Os heróis da ‘possibilidade’, os que resistiram e alguns acabados de chegar, perceberam a mensagem. Os monopólios não te vão defender, o Estado não te vai subsidiar, a Europa não te vai salvar.

E foi neste clima agreste que empreendedores realmente empreendedores, viram a sua possibilidade. Quem tem de nascer, prepare-se para esbracejar, li há pouco tempo na escrita do padre José Tolentino Mendonça. “Enquanto se esbraceja, a vida vem em nosso socorro, a vida torna-se cúmplice, e não pára de nos surpreender”. Um ano, dois anos, três anos. O Portugal monolítico não se rendeu fácil a esta gente que resiste e que persiste. Gente que vem de origens tão diferentes quanto as universidades, os negócios tradicionais, os empregos monótonos e sem qualquer chama de desafio e, em tantos casos, o desemprego ingrato e inglório. Quando Portugal bateu no fundo, algures entre o fim de 2010 e meados de 2011, o país descobriu estes novos heróis.

De então para cá, o empreendedorismo é como o sol. Nasce todos os dias. O empresário que fez fortuna no estrangeiro e regressou milionário é empreendedor e o jovem que tirou um curso profissional e foi trabalhar como barbeiro também.

Em Portugal, os novos negócios envolvem uma média de 46 mil pessoas e 2.600 novas empresas por ano. Entre 2006 e 2011, nasceram, em Portugal, cerca de 22 mil startups e estrearam-se cerca de 27 mil novos empreendedores

.
.

Há aceleradores de negócio, incubadoras e cursos de empreendedorismo em qualquer esquina do país. Cinismo? Pelo contrário. O que assistimos hoje em Portugal tem os ingredientes certos para se poder tornar numa verdadeira revolução cultural na economia e na sociedade portuguesa. A combinação de factores como o número de licenciados, mestrandos e doutorados, a diluição de fronteiras próximas e longínquas, a intensificação do uso das tecnologias de comunicação e a proverbial natureza dos portuguesas para mostrar o que são capazes quando têm a corda na garganta pode ser a nossa tempestade perfeita.

Desde que não nos tire o discernimento e desde que o movimento sincero de pessoas e empresas à procura de novas soluções não seja apropriado pelo ‘establishment’ apenas e tão somente como bandeira.

“Tendemos a olhar para os empreendedores como se fossem super-heróis, vestissem fato e gravata e fossem hiper-ricos. O empreendedorismo tem além da evidente função económica, um objectivo social: resolver problemas quotidianos, dar resposta a necessidades. Qualquer pessoa pode faze-lo desde que detecte uma oportunidade e detenha competências básicas: pensamento crítico e criatividade”.

A afirmação é de Dana Stangler, da Kauffman Foundation, numa entrevista recente ao Expresso. E o que diz tem tudo a ver com não irmos em modas, não nos atermos à forma, mas sim ao conteúdo.

O conteúdo que interessa, neste momento, é criar condições para que as novas empresas, os novos projectos, cresçam. Crescer significa vender mais, fazer boas parcerias, ter boleia para internacionalização, ter reconhecimento de marca. O financiamento é, naturalmente, um tema crítico – há que levar à letra a máxima ‘put your money where you put your mouth’ – mas tudo o resto é tão ou mais importante e não custa dinheiro. Custa compromisso, custa empenho e custa visão de médio e longo prazo. No passado, a ausência destes valores custou-nos caro, como nos custa caro a ausência de uma sociedade civil e de uma comunidade empresarial forte e autónoma do Estado. É a nossa oportunidade de corrigir o rumo. O ambiente que tenho presenciado em várias incubadoras e em vários projectos de parceria faz-me acreditar que o podemos mesmo fazer. Há um país anestesiado e que século após século enraizou fundo a convicção que nada vale a pena no binómio ‘nós’ versus ‘ eles’, mas há outro país decidido a não se deixar abandonar a essa sorte.

A expressão ‘companhia’ enquanto designação de empresa surgiu no século XII, em Florença: la compagnia. Do latim cum + panis que significa partir o pão em conjunto. Precisamos deste sentimento de colectivo. Ou nadamos juntos ou o mais provável é que nos afoguemos juntos.

Fazer uma empresa é arriscar. Arriscar sabendo que 70% das empresas falham.
Fazer uma empresa é uma coisa difícil: o produto certo, o mercado certo e, sobretudo, as pessoas certas. Na realidade, é semelhante a todas as coisas importantes na vida. Encontrar a pessoa certa para nós é difícil. Criar um filho, provavelmente o acto de maior posterioridade e mais criador das nossas vidas, é difícil. Mas como todas as coisas mais importantes nas nossas vidas, a nossa melhor probabilidade é tentar, fazer bem, não desistir, e resistir até à vitória final que é sempre a próxima. E, como diz a canção, não perder a fé no bem e no certo.

Sobre as ideias
O The Next Big Idea foi apresentado à SIC, ainda em 2010, como um programa de televisão para dar palco às novas ideias e aos novos projectos. Empreendedorismo ainda não era, nessa altura, uma palavra tão mágica quanto se tornou, mas na SIC houve vontade e visão para se apostar num formato inovador em que os protagonistas eram todos eles ilustres desconhecidos. Em comum, tinham o facto de terem uma ideia original e de estarem a construir um projecto com esse ponto de partida. Hoje, o The Next Big Idea já levou ao ecrã da SIC Notícias mais de 150 novas ideias. Nas universidades, já foram realizados mais de 30 eventos, com mais de 500 ideias apresentadas. O programa é parceiro de entidades como o Greenfest, ANJE, Museu Nacional de Arte Antiga, Audax e em breve de duas universidades europeias. A próxima etapa passa por dinamizar uma rede de parcerias que potencie vendas, comunicação de marca e internacionalização. E, claro, todos os dias continua a procurar e a exibir uma boa ideia.

Directora de Conteúdos do SAPO, co-autora do programa televisivo The Next Big Idea e autora do livro recentemente lançado “Banco Bom, Banco Mau”, editado pela Matéria-Prima