Passar a responsabilidade das nossas acções, pensamentos, desejos e ambições para um ser disforme e assustador que nos invade a mente e alma e corrói a nossa bondade e piedade até dela só sobrar pó e ferrugem é algo que nos convém. Vivemos num mundo em que o diabo se esconde nos detalhes, mas não só, parece andar à solta e à vista desarmada mas, no entanto, quase não se dá por ele
POR NUNO GASPAR DE OLIVEIRA

Muitas vezes, confrontados com uma situação inesperada ou estapafúrdia, damos por nós a exclamar a célebre expressão “mas que diabo…?”. E a pergunta é mesmo essa: que diabo? Para um não crente, como é o meu caso, a personagem em causa não se trata de um ser meio caprino a guardar lagos de fogo ou a instruir feitiços a mulheres solteiras, mas sim algo de mais complicado. Trata-se da personificação daquilo que nós somos capazes de fazer de pior uns aos outros…

Ambrose Bierce, no seu célebre e mui satírico volume intitulado ‘Dicionário do Diabo’, dizia sobre o dito-cujo que seria “o autor de todos os nossos infortúnios e proprietário de todas as coisas boas deste mundo”. Ao que parece nós, humanos, temos um sistema curioso de juízo de nós próprios, profundamente assimétrico quando se trata de medir o que fazemos e o que os outros nos fazem. Oscar Wilde foi mais longe ao afirmar “somos o nosso próprio diabo, e fazemos deste mundo o nosso inferno”. Senão, pergunto eu, como justificar as atrocidades cometidas em nome da virtude, da verdade e até do divino? Ao que consta nos livros de história, nunca nenhum exército marchou para o campo de batalha em nome do diabo. Como podemos nós então ser tão cegos a tudo o que há de maleficente em nós e tão atentos em tanto que há de mal nos outros? Será que é mais confortável desculpabilizar o nosso instinto básico de sobrevivência, egoísmo e autodefesa com o argumento da tentação de terceiros mais ou menos sobrenaturais?

William Blake, na sua obra épica ‘O Casamento do Céu com o Inferno’ introduz na lista de provérbios infernais: “a vergonha é a capa do orgulho”. De forma semelhante, já Agostinho da Silva, no genial volume ‘Sete cartas a um jovem filósofo’ assumia que “[de] Entre as palavras e as ideias detesto esta: tolerância. É uma palavra das sociedades morais em face da imoralidade que utilizam. É uma ideia de desdém; parecendo celeste, é diabólica; é um revestimento de desprezo, com a agravante de muita gente que o enverga ficar com a convicção de que anda vestida de raios de sol”. Afinal, precisamos mesmo de um demónio abissal para justificar a facilidade com que o nosso comportamento se extrema perante condições extremas como a riqueza, poder ou luxúria? Santo Agostinho traça o mapa do inferno quando define os sete pecados capitais, sendo que São Tomás de Aquino o redesenhou talvez já recorrendo a uma espécie de GPS medieval mais orientado para o que sabia do homem do que S. Agostinho saberia do diabo. Numa passagem em particular, S. Tomás refere que a filha da inveja chamada Sussurratio (murmuração) é, pura e simplesmente, o rumor de inveja. E tantas vezes Sussurratio se passeia entre nós e nos alimenta fantasias e desejos de vingança que mal damos por ela. O mal está sempre fora de nós, e como tal, pode e deve ser expurgado recorrendo a todos os meios, dos mais clementes aos mais, hummm, chamemos-lhe assertivos, conforme descrito meticulosamente na obra ‘Malleus Maleficarum’, conhecido popularmente por ‘Martelo das Bruxas’, compilado e escrito por dois inquisidores dominicanos, com base na bula Summis desiderantes, emitida pelo Papa Inocêncio VIII em 1484 e que deu fama e louvor a Torquemada. Por sua vez, personagens como Torquemada, Nero, Hitler ou Madoff fazem-me repensar seriamente na existência de algo que transforma o ser humano no que de mais bruto, perverso e vil pode existir sobre este céu. De facto, Shakespeare alertou-nos para a necessidade de estar atento à facilidade com que o homem corrupto pode manipular a verdade a seu favor, escreveu o Bardo um dia: “O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém”.

E como nos convém, passar a responsabilidade das nossas acções, pensamentos, desejos e ambições para um ser disforme e assustador que nos invade a mente e alma e corrói a nossa bondade e piedade até dela só sobrar pó e ferrugem. E mais fácil personificar a perversão maligna nos Black Sabbath, H.R. Giger ou na Casa dos Segredos do que em quem está do outro lado do espelho. Como escreveu Goethe em ‘Fausto’: “um homem vê no mundo aquilo que carrega em seu coração” e nem sempre é claro ou aceitável o que vai no coração de cada um de nós, especialmente sob grande pressão ou stress, ou quando embebido na oportunidade de realizar os seus desejos de poder e ganância.

Oliver Stone em ‘Wall Street’ mostrava-nos um Gordon Gekko (representado magistralmente por Michael Douglas) que sabia o que representava vencer no mundo da alta finança, com o célebre discurso “greed is good”. Será assim tão difícil imaginar que não há anjos caídos nem monstros sulfurosos a sussurrar como colocar activos tóxicos no mercado, especular sobre a dívida soberana de países em desenvolvimento particularmente ricos em recursos, a usar a falácia do crescimento económico para destruir ecossistemas vitais para a vida de todos na Terra, a aceitar como faits-divers e normal o comércio de crianças e mulheres para fins de escravatura e de abuso, a desmistificar a ‘aldrabice’ das alterações climáticas ou a argumentar os pequenos detalhes legais que impedem que os grandes desastres ambientais (como o Deep Horizon no golfo do México) e sociais (como a perda de centenas de vidas humanas em acidentes em fábricas de têxteis no Bangladesh) sejam compensados por quem os provoca (e quem protege quem os provoca)? Vivemos num mundo em que o diabo se esconde nos detalhes, mas não só, parece andar à solta e à vista desarmada mas, no entanto, quase não se dá por ele.

Nietzsche alertava: “Quando o Diabo fica silencioso, até o nome perde”, mas Baudelaire foi muito mais certeiro quando escreveu: “o maior truque do diabo é o de convencer o mundo de que não existe”. Pessoalmente, prefiro seguir os ensinamentos de Fyodor Dostoyevsky, na sua obra magnífica, ‘Os Irmãos Karamazov’: “O mais assustador é que a beleza é misteriosa assim como terrível. Deus e o diabo lutam nela e o campo de batalha é o coração do homem”. Assim queiramos nós escolher um justo vencedor e louvar toda a beleza deste mundo.

Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence