O anúncio do Natal surge sempre inopinado, desajustado, inconveniente até, na primeira vez como em 2023. Estamos todos justamente preocupados com dramas aterradores de pandemias, guerras, inflações, depressões e até modelos de IA. Precisamos urgentemente de um Salvador, do Messias Senhor; e até temos boas ideias de como Ele deve ser: tecnológico, poderoso, produtivo, eficaz. Mas aquilo que nos dão como sinal é sumamente desadequado: um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura…
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Economicamente, o ano de 2023 passou-se à sombra da inteligência artificial (IA). A apresentação pública do ChatGPT, a 30 de novembro de 2022, teve enorme efeito prático, com mais de 100 milhões de utilizadores no primeiro mês, mas ainda maior impacto cultural. Como sempre, desde que se fala em “máquinas que pensam”, a imaginação coletiva entrou em euforia e foram feitas as previsões mais maravilhosas e mais apavorantes.
Inusitado e preocupante, os maiores especialistas na área vieram este ano a público fazer avisos terríveis. A 22 de março de 2023, mil líderes tecnológicos, incluindo Elon Musk, Stuart Russell, Yoshua Bengio, Steve Wozniak e Noah Harari, publicaram uma carta aberta “Pause Giant AI Experiments: An Open Letter”, em seguida subscrita por dezenas de milhar, pedindo uma moratória nos grandes modelos de IA devido aos altos riscos envolvidos. Menos de 70 dias depois, a 30 de maio, outro grupo de eminências, incluindo Bill Gates, Demis Hassabis, Sam Altman e Geoffrey Hinton, apresentaram um documento com menos de 30 palavras avisando para o perigo de extermínio da humanidade: «A mitigação do risco de extinção provocado pela IA deve ser uma prioridade global, juntamente com outros riscos à escala social, como pandemias e guerra nuclear». Entretanto, o trabalho em IA continuou a ritmo acelerado.
Estes acontecimentos, por graves e inesperados que sejam, não representam novidade. O alvoroço é sempre enorme no palácio de Herodes, o Grande. Fervilham notícias, golpes, intrigas. Todos os dias nascem conspirações aterrorizantes, fazem-se cenários catastróficos, antevêem-se ameaças terríveis. Isto não é ilusão, pois o perigo é bem real e é normal correr sangue. Pactos e amizades terminam em assassínios, esperanças brilhantes desaparecem no calabouço. De vez em quando há até matança de inocentes, como no Sudão, Ucrânia, Israel, Gaza.
Isso é terrível, mas comum. A novidade é outra. Entretanto, na mesma região encontravam-se uns pastores que pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite. Um anjo do Senhor apareceu-lhes, e a glória do Senhor refulgiu em volta deles; e tiveram muito medo. O anjo disse-lhes: «Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura.» (cf Lc 2, 8-12).
O anúncio do Natal surge sempre inopinado, desajustado, inconveniente até, na primeira vez como em 2023. Estamos todos justamente preocupados com dramas aterradores de pandemias, guerras, inflações, depressões e até modelos de IA. Precisamos urgentemente de um Salvador, do Messias Senhor; e até temos boas ideias de como Ele deve ser: tecnológico, poderoso, produtivo, eficaz. Mas aquilo que nos dão como sinal é sumamente desadequado: um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura.
Como pode essa criança sorridente ser a resposta aos nossos problemas? Ela nada tem a ver com as grandes preocupações contemporâneas, com os terríveis alarmes que justamente nos assustam. Só que, seja perante as raivas de Herodes, os ataques de Putin, os caprichos de Trump ou os algoritmos de IA, a resposta que procuramos está realmente ali, nas palhas da estrebaria. «Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado; tem a soberania sobre os seus ombros, e o seu nome é: Conselheiro-Admirável, Deus herói, Pai-Eterno, Príncipe da paz.» (Is 9, 5).
De facto, se pensarmos bem, vemos rapidamente que as soluções políticas, económicas ou tecnológicas não estão a par dos horrores que nos assolam. Perante perigos tão gigantescos e assustadores, nenhum ser humano nos conseguirá valer. Só mesmo um Conselheiro-Admirável, Deus herói, Pai-Eterno, Príncipe da paz.
O que Ele faz, porém, não é resolver os nossos dramas recorrentes, que uma vez resolvidos reaparecem com outra forma. A revolução nunca está nas novidades que as inteligências do palácio de Herodes prometem, sejam a inteligência artificial, a inteligência política, a inteligência económica, até a inteligência religiosa, tão presente no palácio de Herodes.
A verdadeira revolução é quotidianamente realizada pelo Menino do Presépio. Porque o que ele faz é mudar completamente o assunto, dizendo-nos em cada dia, nos nossos problemas: «Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária.» (Lc 10, 41-42)
Assim, neste Natal, a única questão que se coloca é onde o queremos passar: no palácio da inteligência, com os nossos sucessos e medos, ou arriscando nos campos frios de Belém, onde existe apenas uma estrebaria, mas onde está o Salvador, que é o Messias Senhor e que, se o deixarmos, mudará completamente a nossa vida.
Santo Natal!
Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas