(…)Todas as relações internacionais, por mais históricas que sejam, ficam, à partida, sujeitas a renegociação se não servirem os interesses do país, quando não do próprio chefe de Estado. Sob esta lógica, o benefício económico sobrepõe-se à tradição multilateral, à cooperação global ou à responsabilidade partilhada
POR MARIA DE FÁTIMA CARIOCA

Na História e na vida, encontramos muitos líderes, políticos e empresariais, prudentes, abertos e com um elevado sentido do bem comum. Líderes que promovem ambientes de liberdade, confiança e desenvolvimento, líderes que sabem criar as condições para que os outros trabalhem bem e cresçam como pessoas e, em conjunto, como organização e como país.

A 21 de junho, os Estados Unidos lançaram um ataque contra três instalações nucleares iranianas… À medida que o mundo se torna geopoliticamente mais instável, os conflitos aumentam em complexidade, duração e quantidade. De acordo com dados da ONU, em 2024, registaram-se 61 conflitos armados em todo o mundo, um terço a mais do que na década anterior e 74% a mais do que a média que prevaleceu no início dos anos 2000, acrescentando que os conflitos se tornaram “mais prolongados e menos sensíveis às formas tradicionais de resolução”. Ou seja, não só a incidência de conflitos parece estar a aumentar, como os desafios que se colocam para os enfrentar são mais complexos.

O que observamos é que as políticas de estabilização e de construção da paz muitas vezes não conseguem lidar com as realidades caóticas dos conflitos modernos. As intervenções de políticos internacionais não se coadunam com as redes transnacionais e as interdependências que sustentam os conflitos. As alianças tornaram-se mais fluidas e multidimensionais, incluindo parceiros em todo o espetro político e ideológico.

As guerras de hoje ocorrem num cenário global em que o pragmatismo e os interesses económicos, superam as tradicionais alianças ou esferas de influência ao estilo da Guerra Fria. Muitas destas novas relações percebe-se serem motivadas pela sobrevivência económica. Outras, porém, são puro pragmatismo, expressão de um crescente “business mindset”, muitas vezes imune à intervenção política internacional. É o regresso da política externa transacional.

Alguns políticos, dos quais Trump é o exemplo mais mediático, mas não o único, parecem tratar a política como um negócio, “liderando” o país como se fosse a sua própria empresa, competindo num cenário global. As suas decisões e estratégias refletem, com frequência, uma mentalidade comercial, que levanta sérias preocupações, porque claramente transacional. A diplomacia transforma-se na arte da negociação comercial, exercitada de forma contundente.

Exemplo disso mesmo foi a ideia apresentada por Trump de comprar a Gronelândia. Não foi apenas uma brincadeira geopolítica, mas uma visão da diplomacia e da soberania como um processo de M&A. Na sua opinião, a Gronelândia é uma terra subdesenvolvida com valor inexplorado, mal gerida pela Dinamarca e aberta a uma melhor oferta. Ponto final.

Outro exemplo, foi o esquema de cidadania acelerado, oferecendo passaportes americanos em troca de um investimento de US$5 milhões. Desta forma, a nacionalidade transformou-se num ativo “premium”, sujeita ao melhor lance. No fim, quer se trate de terra ou da identidade, tudo é negociável, pelo preço certo.

Um terceiro exemplo, ainda, é a sua relação, invulgarmente cordial, com Putin, Xi Jinping, Kim Jong-un e outros. Faz lembrar a mútua admiração entre homens fortes que jogam segundo as suas próprias regras, independentemente da ideologia preconizada ou do historial do respetivo regime. Este novo “clube de jogadores” não está vinculado por tratados políticos, mas pelo respeito mútuo baseado em força e resultados, sobre o princípio subjacente de que a “liderança” não tem a ver com consensos nem princípios, mas com poder e resultado económico.

Todas as relações internacionais, por mais históricas que sejam, ficam, à partida, sujeitas a renegociação se não servirem os interesses do país, quando não do próprio chefe de Estado. Sob esta lógica, o benefício económico sobrepõe-se à tradição multilateral, à cooperação global ou à responsabilidade partilhada.

Na realidade, a responsabilidade global é reformulada e passa a ser vista como uma indulgência dispendiosa e, como tal, se uma iniciativa no estrangeiro não produzir retornos visíveis para o país, fica ameaçada. Muitas iniciativas foram, aliás, já abandonadas. Neste sentido, também a cooperação e a ajuda já não é humanitária, mas transacional.

É o surgir de uma nova (velha) doutrina, uma nova forma de atuar que confunde política e governo com lógica comercial agressiva.

Para que fique claro, nem todas as iniciativas humanitárias são isentas de críticas, muitas são demagógica e ideologicamente discutíveis e muitas outras nem sequer demonstram ser eficientes ou eficazes face ao objetivo de apoiar populações em estado de vulnerabilidade. Contudo, é o critério de análise das iniciativas que está em causa. Em termos de ajuda humanitária, é difícil entender que o único critério seja o de custo-benefício para o país apoiante.

Também não é a questão do pragmatismo que está em causa. O diálogo franco e aberto, orientado para a solução de problemas e para a ação é salutar e, com frequência, base de relações de parceria fortes e resilientes. Pelo contrário, em muitas situações, estamos saturados de discussões estéreis que em nada são construtivas. Contudo, na obsessão pela ação pode perder-se o sentido da verdade, dos valores e da própria ética e, então, todos os meios podem justificar os fins.

Este movimento de retorno a uma “liderança” pelo poder e uma mentalidade transacional está também a impor-se, insidiosamente, em algumas empresas, sob a pressão da fragilidade dos resultados económicos e a complexidade de gerir as novas gerações.

Recentemente, um CEO de uma multinacional falava de “tough love”. Uma vez mais, não é a exigência per si que está em causa. Se o amor não é exigente, não dignifica o ser amado. O que está em causa é o para quê e a adequabilidade da exigência. Como líder, devo exigir ao outro o que o outro pode e deve dar, contribuindo para algo maior. E para isso, necessito de saber o seu nome, de o conhecer, de entender o que o faz ser único, de reconhecer o seu potencial, de investir tempo numa relação pessoal que tem como finalidade o desenvolvimento do outro no sentido da sua plenitude humana. Uma relação que não se baseia na pura transacionalidade, mas no querer o bem do outro, ou, ao nível político, o bem comum.

Na História e na vida, encontramos muitos líderes, políticos e empresariais, prudentes, abertos e com um elevado sentido do bem comum. Líderes que promovem ambientes de liberdade, confiança e desenvolvimento, líderes que sabem criar as condições para que os outros trabalhem bem e cresçam como pessoas e, em conjunto, como organização e como país. Esta é a verdadeira liderança. Não existe outra. A liderança ou se centra nas pessoas ou não é liderança. E, por isso, na AESE, preparamos líderes com esta dimensão humana que impregna a profissional. Também porque acreditamos que se trabalharmos assim, seja na família, na empresa, na comunidade em que vivemos ou no nosso país, então podemos aspirar, com fundamento, à paz e a um mundo melhor.

Artigo originalmente publicado no Jornal de Negócios. Republicado com permissão.

Professora de Factor Humano na Organização e Dean da AESE Business School

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