Quantas civilizações se ergueram das margens dos rios para depois desaparecerem nas correntes sombrias do mudar dos tempos, quantos idiomas, dialetos, ideias, certezas e atitudes arrogantes de tomada do poder se construíram entre ilusões e enganos para se desvanecerem como castelos de areia com a subida das marés? Quantas vezes a humanidade terá de fazer a sua caminhada até ao rio sombrio para conseguir descobrir se somos as margens que nos separam ou as águas livres que correm e dão de beber a quem procurar inspiração para ajudar a tribo a respirar novos ares de primavera?
POR NUNO GASPAR DE OLIVEIRA

Atualmente, conhecemos a existência de 573 línguas que se tornaram extintas. Tratam-se de idiomas que já não são falados nem estudados, muitos eram dialetos locais sem registos de um alfabeto ou palavras, e assim estão perdidos para sempre. Outras eram mesmo línguas principais ou imperiais, que chegaram a ser faladas por milhões de pessoas em vastas áreas, mas que desapareceram com o colapso da sociedade e da cultura que as criou e da qual dependiam. Algumas desapareceram há muitos séculos como o antigo egípcio, o sumério, sânscrito e até o latim, ou nos últimos 500 anos como no caso das centenas de idiomas complexos e dialetos dos povos indígenas de África e das Américas e Oceânia que foram convertidos, dizimados ou escravizados, ou tudo-ao-mesmo-tempo pelos pios e sábios colonos e evangelistas europeus.

Mas outras encontraram o seu fim bem mais recentemente. Entre 1950 e 2010, calcula-se que se tenham calado para sempre 230 línguas. Nos dias de hoje, estima-se que um terço das línguas do mundo tem menos de 1000 falantes e que 50 a 90 por cento das línguas moribundas desapareçam até ao fim deste século. É caso para ficar mudo de espanto.

Junto com o desaparecimento dos idiomas e dialetos, quantas história, lendas, narrativas, poemas, canções, aforismos, metáforas, contos, ditados, anedotas e insultos originais teremos perdido? Afinal de contas, é sabido que quem conta um conto acrescenta um ponto, e esta regra foi durante milénios uma das mais eficazes formas de integrar e passar conhecimento e experiências entre gerações.

Esta coisa da escrita iconográfica ou do alfabeto, além de ser recente na história da humanidade, foi quase sempre apanágio de poucos, acessível a uma minúscula fração das sociedades, fosse por ser exclusiva de uma elite governadora ou dos líderes espirituais e religiosos. Por exemplo, até há bem pouco tempo em algumas sociedades católicas, a missa era dada em latim, com os sacerdotes de costas para os crentes analfabetos. Do lado protestante, a coisa aconteceu de modo bem diferente e ainda nos dias de hoje existem claras evidências no padrão de educação, literacia, cultura e desenvolvimento social das sociedades europeias católicas e protestantes.

Outro aspeto fundamental para a extinção de culturas inteiras ou da sua relegação para o esquecimento e obscurantismo, foi a conquista e submissão pela guerra e a perseguição cultural e religiosa, onde podemos falar de casos recentes como a destruição de obras e legados culturais por parte dos taliban, a censura e repressão exercida sobre povos outrora nações como o Tibete, os Aborígenes Australianos ou os Quíchua, ou os efeitos do ‘Manifesto Destino’ sobre a vastidão de povos ameríndios.

Ou casos mais antigos como a quase aniquilação por parte da cultura clássica grega e romana por parte dos cristãos, que conheceu o seu dia mais negro com a destruição da biblioteca de Alexandria. Curiosamente, se não têm sido os árabes, turcos e persas, hoje poderíamos não fazer ideia de quem teria sido Sócrates, Platão, Arquimedes ou Aristóteles. Como as coisas mudam com o mudar das coisas…

Mas voltando ao mundo da extinção de culturas humanas, imaginem só quantas boas estórias terão ficado por contar… quero acreditar que as memórias esquecidas dos nossos antepassados e parentes remotos ainda estão inscritas em letras miudinhas no nosso DNA e aninhadas algures num complexo límbico ou num mundo dos sonhos. Seja ou não verdade que assim possa ser, verdade é que no outro dia sonhei com uma estória que me pareceu de outras memórias. Quem me a contou num sussurro de transe chamou-lhe ‘O Anjo e o rio sombrio’ e era mais ou menos assim:

No tempo em que a lua e as estrelas partilhavam as suas memórias com os humanos, havia uma tradição em que o homem mais poderoso e reconhecido da tribo deveria fazer uma peregrinação durante a última lua nova de inverno até ao longínquo rio sombrio e beber da sua água para que esta lhe revelasse os segredos dos dias vindouros. Esta missão era perigosa e cheia de mistérios, e sabia-se que este peregrino só poderia regressar à tribo no dia que durava tanto como a noite, nem antes nem depois, ou isso seria uma desgraça para todos. Aí, numa cerimónia ritual ancestral, o viajante poderia partilhar com a tribo o que as águas lhe contaram e esses ensinamentos seriam fundamentais para o progresso e elevação cultural e espiritual de toda a tribo, rumo a uma nova primavera.

Certa vez, ainda a meio do inverno, o líder morreu inesperadamente, deixando um vazio de poder, o que levou alguns dos seus discípulos, que ora o idolatravam com louvor ora o caluniavam entre dentes, a ansiar pela tomada de comando. Ansiosos por saber quem seria o sucessor para fazer a jornada até ao rio sombrio, a população da tribo escolheu 8 candidatos para a demanda e lançou-os a caminho na última lua nova de inverno, aquele que regressasse vitorioso no dia tão longo como a noite iria ser o sucessor do antecipadamente falecido homem do poder. E lá seguiram a sua jornada.

Em vez de se entreajudarem e procurarem formas de cooperar apesar das desavenças, os candidatos insistiram em atacar-se mutuamente, o que foi especialmente intenso entre os mais fortes, quer por acharem que só um poderia ter o direito de beber das águas, quer por considerarem que os outros eram coisa menor ou mesmo deploráveis ou imbecis. As peripécias sucederam-se e entrei naquela fase do sonho em que tudo parece um pesadelo, onde as atitudes e atos eram tão bizarros que eu já achava que era mais uma alucinação febril do que um sonho conturbado. Dei por mim a tentar despertar e sair do trauma, mas lá acalmei e comecei a sonhar com a fase seguinte.

Os 8 chegavam à margem do rio sombrio e preparavam-se para se acercarem da margem e de jogar a mão para levar um gole de água à boca quando um clarão os assustou. Era um estranho ser que mal se revelava, com formas fractais e diáfanas, mas que conseguia entrar na mente dos peregrinos e comunicar claramente através de uma linguagem tão antiga como a lua e as estrelas, mas que, estranhamente, se fazia entender, mas não de forma universal. Cada um escutou a voz deste ser etéreo e interpretou o que ouvira de forma distinta. Esta é a verdade misteriosa da voz universal, tem tantas interpretações como mentes que a escutam. Eu não consigo descrever este ser com palavras antigas ou idiomas extintos, na minha linguagem de hoje chamar-lhe-ia um Anjo. Talvez essa tenha sido a visão de algum dos contendentes, outros terão visto um demónio, um enganador ou uma miragem irrelevante, só cada um saberá. Mas mesmo depois de receberem a mensagem, todos se debruçaram da margem e, com a mão em concha, tentaram retirar um gole da água que corria lenta, profunda e sombria.

Neste momento acordei. Nem sobressaltado, nem descansado, apenas ansioso. Tentei vocalizar, mas faltavam-me as palavras, perdi-me num labirinto de línguas estranhas que me toldavam o pensamento. Vi que a noite ainda ia longa e deitei-me novamente nos braços de Morfeu com esperança de que este me revelasse o fim da história. Adormeci novamente.

De volta ao crepúsculo onírico, vi os pretendentes a tentar regressar à tribo. Uns de cabeça baixa e a murmurarem baixinho, outros meio perdidos a olhar insistentemente em busca de um caminho e outros convencidos de que o seu regresso seria triunfante e que um deles seria o escolhido. Mas um deles estava tão confiante de que as águas o abençoaram que ora queria abraçar aquele que mais água tinha bebido como o mirava com vontade de o afogar na corrente sombria.

Não sei como acabou este regresso, se alguém chegou no dia prometido ou como a tribo acolhei os viajantes, quem escolheu como novo líder ou se a próxima viagem ao rio será antes da próxima última lua nova de inverno. Felizmente acordei com o raiar da manhã e senti conforto ao reconhecer as palavras familiares de bons dias da minha família. E voltei a pensar na épica e conturbada história da humanidade.

Quantas civilizações se ergueram das margens dos rios para depois desaparecerem nas correntes sombrias do mudar dos tempos, quantos idiomas, dialetos, ideias, certezas e atitudes arrogantes de tomada do poder se construíram entre ilusões e enganos para se desvanecerem como castelos de areia com a subida das marés? Quantas vezes a humanidade terá de fazer a sua caminhada até ao rio sombrio para conseguir descobrir se somos as margens que nos separam ou as águas livres que correm e dão de beber a quem procurar inspiração para ajudar a tribo a respirar novos ares de primavera?

Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence