“Acreditamos que, hoje em dia, ninguém – seja um governo, uma empresa ou a sociedade civil – pode agir de forma isolada”, afirma Judith Jakubowicz, da Convergences, uma plataforma europeia que reúne um conjunto diversificado de actores com vista a promover os Objectivos do Milénio. Em entrevista ao VER, a directora executiva da plataforma sublinha a importância da co-criação e apela a um maior envolvimento das empresas para esta cruzada que é de todos
POR HELENA OLIVEIRA

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Judith Jakubowicz, directora executiva
da Convergences
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A plataforma Convergences, sedeada em França, foi lançada em 2008. Tendo em conta a sua missão – a convergência entre atores públicos, privados e organizações da sociedade civil para a promoção dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) – como avalia o trabalho por vós até agora desenvolvido?
A avaliação do impacto social deve ser feita para qualquer projecto e eu acredito que devemos, indubitavelmente, avaliar o nosso próprio trabalho. A Convergences lidera projectos que não têm um impacto directo nos beneficiários finais, pois os nossos objectivos concentram-se nas organizações. Tentamos inspirá-las; estabelecer pontes entre os diferentes sectores; co-criar soluções inovadoras entre várias organizações; estimular o diálogo entre a esfera ambiental e a do desenvolvimento, incluindo no mesmo o sector privado; identificar as melhores práticas para as divulgar no seio das demais organizações; analisar novas formas de financiamento e partilhá-las com o sector social, entre outras actividades. E o que é interessante na sua pergunta é o facto de termos decidido lançar uma avaliação de impacto com base nos nossos objectivos, incluindo os nossos beneficiários – ou seja, todas estas organizações com quem estabelecemos parcerias – e descobrimos que existiam objectivos que não sabíamos ter atingido e alguns outros nos quais podemos melhorar o nosso impacto. E também é isto que acontece, de certa forma, com os próprios ODM.

Com que tipo de organizações, e em que áreas particulares, trabalha a Convergences?
Temos organizações muito variadas que pertencem à nossa rede de parcerias, o que contribui para que esta comunidade seja muito mais comprometida e “poderosa”. Em conjunto com a Convergences, trabalham organizações não-governamentais, empresas, bancos, autoridades regionais e locais, órgãos dos media e instituições académicas. E, em conjunto, aprendemos umas com as outras e a lidar com perspectivas diferentes – e a compreendê-las – sempre com o objectivo de realizar um trabalho conjunto. Todavia, não temos sectores específicos para “arrumar” todos estes stakeholders: acreditamos que agregar os diferentes tópicos (seja a água, a nutrição, a saúde, a igualdade de género ou outros) tem muito mais impacto do que os colocar em silos e discutir questões de sinergias e parcerias no interior destes espectros. A nossa abordagem baseia-se mais em termos geográficos (com enfoque nos países desenvolvidos ou em desenvolvimento) ou no que respeita a ferramentas (por exemplo, temos um grupo que se chama “novas tecnologias para a mudança”).

Na medida em que nos estamos a aproximar da “data limite” estabelecida para os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio [2015] e considerando os oito objectivos definidos, que percepção global tem a Convergences do trabalho que tem sido feito desde a sua adopção em 2000?
Têm sido vários os progressos no que respeita aos objectivos, mas o trabalho, no seu todo, é muito desigual. Alguns objectivos serão atingidos até ao final do ano de 2015, enquanto outros permanecerão “inacabados” até muito além desta data. Por outro lado e como seria de esperar, a recente crise económica em nada contribuiu para que os mesmos fossem atingidos e há que lamentar profundamente a redução da Assistência Oficial para o Desenvolvimento (ODA, na sigla em inglês) nos últimos dois anos. As economias menos desenvolvidas são aquelas que mais preocupadas estão com estes atrasos e muito terão de lutar para “acompanhar” os demais países. E a verdade é que devia ser criada uma parceria global que permitisse um impacto mais eficaz e mais rápido o que respeita à redução da pobreza no geral.

Se pudesse eleger o “melhor” e o “pior” dos oito objectivos estabelecidos, no que respeita a resultados, quais seriam”?
Não é fácil fazer uma avaliação mas, na verdade, acredito que tudo está relacionado com um objectivo em particular, o qual é verdadeiramente irregular: o objectivo número 7 que visa “assegurar a sustentabilidade ambiental”. Na realidade, a humanidade tem vindo a acelerar a degradação do ambiente. E, por causa das suas acções, são cerca de cinco milhões de hectares de floresta que, todos os anos, são destruídos. As emissões de dióxido de carbono não param de aumentar e a exploração excessiva das espécies constitui uma ameaça crescente à nossa biodiversidade. Esta avaliação sombria deve, no entanto, ser contrabalançada por um progresso positivo na gestão de recursos: a redução, para metade, da população sem acesso permanente à água potável [que está no “interior” do objectivo do desenvolvimento sustentável] foi atingida com cinco anos de avanço. Hoje em dia, 90% da população mundial tem acesso a este bem essencial.

Jan Vandermoortele, um dos “arquitectos” dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, tem vindo a demonstrar o seu profundo descontentamento no que respeita à forma como as elites globais têm estado a conduzir todo este processo. Qual a sua opinião sobre esta questão?
A meu ver, a todos os cidadãos e a toda a sociedade civil deveria ter sido dado mais “poder” no que respeita aos objectivos. Não nos podemos esquecer que os objectivos estabelecidos não dizem respeito só às nações: estão, ao invés, relacionados com todos nós e toda a gente deveria fazer parte integrante deste processo, bem como das suas soluções. Todos temos que fazer a nossa parte. É como o colibri, quando a floresta está a arder: até a ave mais pequena faz a parte que lhe compete para extinguir o fogo. A título de exemplo posso-lhe dizer que, em 27 países, a França posiciona-se em 22º lugar no que respeita ao conhecimento que tem face a estes Objectivos do Milénio. Ou seja e a este respeito, penso que as elites mundiais poderiam ter feito um trabalho significativamente melhor.

O mesmo Jan Vandermoortele sublinha que a tão falada “Agenda pós-2015” deveria seguir uma abordagem muito mais inclusiva do que a que tem sido feita até agora. Concorda?
Concordo em absoluto com essa declaração. Muitas pessoas são excluídas do processo de desenvolvimento por variadas razões, seja por questões de género, de deficiência, faixa etária, etnia ou pobreza. Esta exclusão só contribui para agravar o fosso da desigualdade em todo o planeta. Os 10% mais ricos do mundo possuem 85% de todos os activos existentes, enquanto os 50% mais pobres detêm apenas 1% dos mesmos.

O desenvolvimento pode ser inclusivo apenas se todos os grupos puderem contribuir para criar oportunidades, partilhar os benefícios do desenvolvimento e participar no processo de tomada de decisão. E é preciso não esquecer que o desenvolvimento integra as normas e os princípios dos direitos humanos: a participação, a não-discriminação e a responsabilização. E a Agenda pós-2015 deveria, indubitavelmente, incluir uma abordagem desta natureza, se todos quisermos que os nossos esforços sejam bem-sucedidos.

É sabido que alguns progressos foram feitos, na última década, pelo menos no que respeita ao objectivo número 1, o da erradicação da pobreza extrema e da fome para metade. Todavia, todos temos consciência de que muito mais há a fazer. A Grande Recessão que teve início em 2008 teve um impacto significativo não só para o mundo em desenvolvimento, mas também para as economias desenvolvidas. E “desigualdade” é uma palavra que tem estado a ser escrita e ouvida demasiadas vezes, em particular ao longo dos dois últimos anos. Como descreveria o “actual estado” da luta contra a pobreza e o que falta perceber por parte dos líderes globais no que respeita à abordagem que tem vindo a ser feita?
Graças aos esforços da comunidade internacional, o objectivo de reduzir a pobreza extrema no mundo para metade já foi atingido e a redução, em 50%, do número das pessoas que sofrem com fome está prestes a sê-lo também. Ou seja, entre 1990 e 2010, a quota de população mundial a viver com menos de 1,25 dólares por dia baixou de 47% para 22%. Entre 2010 e 2012, as taxas de má nutrição diminuíram, mundialmente, em 15%. Mas se este progresso é, com certeza, encorajador, a pobreza está longe de ser erradicada. Actualmente, aproximadamente 2,5 mil milhões de pessoas vivem com menos de dois dólares por dia e uma em cada oito pessoas sofre de fome.

A Convergences acredita que o sector privado deveria estar mais integrado e ter um papel mais relevante nesta abordagem e por duas razões. Em primeiro lugar, através do envolvimento estratégico crescente das empresas no que respeita a ajudar solucionar os desafios complexos do desenvolvimento mediante formas que tirem proveito das suas capacidades de negócio, competências e interesses e que, de forma explícita, criem valor em simultâneo tanto para os stakeholders como para a sociedade; em segundo lugar, através da emergência de alianças multi-stakeholders entre empresas lucrativas, organizações sociais, organizações não-governamentais, fundações, doadores públicos e governos para começarem a criar soluções a um nível mais sistémico.

No seguimento da sua resposta, a verdade é que os próprios ODM deveriam ter estimulado uma mudança no sentido de um novo paradigma para o desenvolvimento e enfatizado o papel das parcerias entre vários stakeholders – um conceito exactamente defendido pela Convergences. Mas na prática, qual a sua opinião relativamente a esta parceria “a nível mundial e global”?
Sim, a questão das parcerias globais está no centro do trabalho desenvolvido pela Convergences. Acreditamos que, hoje em dia, ninguém – seja um governo, uma empresa ou a sociedade civil – pode agir de forma isolada. Perseguir o curto prazo ou acções isoladas e autocentradas apenas conduz a becos sem saída. As soluções para os problemas de hoje e para os de amanhã residem numa nova parceria global. Todos os stakeholders, sejam de países desenvolvidos ou em desenvolvimento, têm de identificar as suas “partes de interesse comuns” para que possam contribuir para a construção de um futuro melhor. Abordagens partilhadas e novas ideias consistem na única forma possível de resolver as questões mais urgentes que a humanidade está a enfrentar. Através do nosso trabalho, estamos a construir e a difundir esta visão comum entre um significativo número de pessoas e, em especial, entre as organizações.

E o que destacaria como as aprendizagens mais importantes entre as empresas e a sociedade civil nestes últimos 14 anos?
Ambas aprenderam, sobretudo, muito sobre “o outro”: compreenderam que era possível criar alianças para um impacto maior e, em particular, que a sociedade civil não é necessariamente desorganizada e que o sector privado não tem de estar 100% concentrado no lucro sem qualquer consideração pelas suas externalidades.

Um relatório de 2013 publicado pelas Nações Unidas relativamente ao progresso dos ODM [e sobre o qual o VER escreveu] demonstra que, em especial em África, o significativo crescimento económico que ali se está a verificar não tem correspondência alguma com o desenvolvimento social da região. O mesmo é concluído pelo recente Índice de Progresso Social, publicado no início de Abril, e em outros relatórios similares, os quais sublinham, sme excepção, a crescente desigualdade não só em termos de rendimento, mas também no que respeita ao género ou às diferenças existentes entre regiões urbanas e rurais. Estamos a testemunhar uma nova “espécie” de pobreza? E o que deve fazer a comunidade internacional para diminuir este fosso crescente?
Na verdade, estamos a assistir a um novo desafio na actualidade: a urbanização crescente deu origem a novas questões, sem dúvida. Entre 2000 e 2012, os bairros de lata expandiram-se e estima-se que existam mais de 100 milhões de pessoas a viver em favelas. Adicionalmente, o crescimento económico em alguns países não significa, de todo, um aumento no acesso aos bens e serviços essenciais. Na China, por exemplo,  10% dos agregados detêm 58% dos rendimentos totais do país e, na Índia, o fosso de rendimentos criou áreas de excelência, as quais resultaram de um crescimento do PIB, mas que exclui um em cada cinco homens e uma em cada três mulheres devido à iliteracia.

Assim, o desafio afigura-se gigantesco e um esforço colaborativo entre todas as nações, de forma a combater estas diferenças sociais, seria um passo importante.

Que prioridades vislumbra para o período que se seguirá a 2015?
Que haja um verdadeiro equilíbrio, a nível global, entre a redução da pobreza e da fome e a sustentabilidade ambiental. E que não nos esqueçamos das alterações climáticas e do impacto nos recursos naturais.

Objectivo 2030: construir o futuro em conjunto
A 7ª edição do Fórum Mundial da Convergences, que terá lugar em Paris, em Setembro, terá como tema principal a co-criação de um mundo melhor – tendo em conta novos objectivos de desenvolvimento e sustentabilidade – e contará com um conjunto de oradores prestigiados.
Com base em três pilares por excelência, os quais, segundo JudithJakubowicz, servem um ponto em particular, o evento pretende atingir os seguintes objectivos: aumentar o impacto de cada um dos actores através da identificação das suas práticas e formas de financiamento (pilar 2); “porque acreditamos que cada actor ou agente terá maior poder através do estabelecimento de alianças”, afirma a directora executiva da “Convergences, “a ideia é sublinhar a importância da criação de uma parceria global e de uma mudança sistémica nos padrões de produção e consumo” (pilar 1); por último, a Convergences pretende igualmente concentrar-se numa “alavanca” específica que poderá ajudar a “catalisar os esforços de todos os envolvidos através do papel das novas tecnologias enquanto ferramentas poderosas para a mudança”.

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Vejamos os três pilares com maior detalhe.
Pilar I – Uma parceria global pós-2015 para a produção e consumo sustentáveis
A excessiva e crescente exploração dos recursos naturais não pode continuar num mundo em que a população continua a aumentar e onde novos poderes económicos e industriais estão a emergir. Uma mudança sistémica nos padrões de produção e consumo constitui um dos maiores desafios do século XXI, tanto para os países desenvolvidos como para os países em desenvolvimento. O Fórum Mundial da Convergences reúne, desta forma, cidadãos, consumidores, empresas, autoridades locais, media e actores solidários num processo colectivo de pensamento, com o objectivo de vir a estabelecer uma parceria internacional que promova esta necessária alteração de paradigma.

Pilar II Desenvolvimento Sustentável: novas práticas, novos financiamentos
A diversificação de actores envolvidos na construção do bem comum tem vindo a constituir um progresso crucial ao longo dos últimos anos. À medida que o papel destes mesmos actores vai evoluindo, o mesmo acontece com as suas práticas e formas de financiamento: existe uma maior implicação dos beneficiários nos projectos de desenvolvimento, em conjunto com a emergência de modelos diversificados de governança e de negócio, sem esquecer a diversificação dos financiadores de projectos com vista ao desenvolvimento. Assim, de que forma terão estes players de se adaptar ao cenário em evolução, ao nível financeiro, político e social, para continuarem a maximizar o seu impacto?

Pilar III – Novas tecnologias para a mudança
Está comprovado o impacto positivo resultante da combinação entre as novas tecnologias e o desenvolvimento: estas incluem a web social e o crowdfunding, as denominadas tecnologias “verdes”, a inovação “frugal”, entre outras. E longe de serem propriedade exclusiva dos países do norte, as novas tecnologias estão a disseminar-se de forma substancial também no sul: por exemplo, existem agora mais telemóveis em África do que na Europa ou nos Estados Unidos. Estas tecnologias estão a alterar profundamente as estruturas económicas e sociais devido à emergência de novos ecossistemas de valores e práticas. Assim, como se podem transformar novas tecnologias em ferramentas poderosas para uma economia mais inclusiva?

Editora Executiva