POR NUNO GASPAR OLIVEIRA
Ter ouvido para a música
1998, estamos numa fase interessante da música alternativa em Portugal. Algures com o epicentro em Alcobaça surgem de rompante os Silence 4 com o épico ‘Silence Becomes It’ e os The Gift com o som glorioso do álbum ‘Vinyl’. Estas duas bandas, especialmente pelos seus ‘líderes’, irão ser determinantes pelo som do pop rock português nas duas décadas que se seguiriam. Mas a insatisfação post-pop também estava no ar, os já históricos bracarenses Mão Morta e o seu peculiar frontman Adolfo Luxúria Canibal avisavam-nos que “Há Já Muito Tempo que Nesta Latrina o Ar se Tornou Irrespirável”, num registo cínico e amargo sobre como os políticos e os media estavam a entrar em descontrolo manipulativo da opinião pública e, vindos de um cantinho mais escondido da cidade do Porto aparecem os Zen, sem grande alarido e tão depressa apareceram como desapareceram.
Mas ao pé de monstros sagrados da história musical nacional, o que é que interessa falar dos Zen? A chave está no nome do seu primeiro álbum de originais, gravado em Vigo e masterizado em Nova Iorque e com o nome fabuloso de “The Privilege Of Making The Wrong Choice”. Não me recordo de uma única música deste álbum, mas o título, ah, esse ficou-me para sempre na memória, e é sobre o que este título me inspira que vos queria contar.
A vida começa aos 5 anos, entre sopas e enciclopédias
Pelo menos a minha, tanto quanto me lembro. Reza a lenda (i.e., conta a minha mãe) que a melhor forma de me distrair para eu comer a sopa era a ver ‘A Vida na Terra’, uma enciclopédia fantástica da autoria de Sir David Attenborough editada pela mítica Selecções do Reader’s Digest. Eu adorava aquilo, descobrir ali um planeta que tanto pode ter trópicos sufocantes como desertos intermináveis e gelos inóspitos. Pelo meio existiam miríades de seres vivos, únicos, estranhos, belos, fascinantes e … cada vez mais ameaçados. E foi esta última condição que me começou a fazer ‘click’ numa escolha que, certa ou errada, iria condicionar a minha vida. E logo a partir dos 5 anos. De alguma maneira eu precisava de encontrar uma forma de ajudar o meu planeta favorito da maior ameaça sobre a sua beleza e multiplicidade de formas de vida, mas o problema é que eu (tu, ele, nós, vós, eles) era(mos) essa ameaça!
[pull_quote_left]Foi este o nosso maior privilégio até hoje: escolher o caminho da escalada infinita, do crescimento sem limites, do direito ao lucro por parte dos agentes empreendedores, independentemente se isso traria efeitos nefastos sobre o ambiente e a sociedade[/pull_quote_left]
Ouvi falar que os cientistas que estudavam e protegiam a natureza se intitulavam de biólogos. Para mim, eram uma espécie de super-heróis que nos alertavam para um mundo fabuloso onde nós, humanos, tínhamos evoluído até ao que somos hoje e onde poderíamos, assim o entendêssemos, prosperar sem que isso significasse a destruição do mundo natural.
Entravamos agora nos anos 80, falava-se da poluição causada pelos derrames de petróleo, das chuvas ácidas, dos pesticidas como o DDT, da destruição da Amazónia, do desaparecimento de espécies raras por todo o globo, do mercúrio nos peixes, da escassez do bacalhau, da conquista do plástico e do problema que ia ser fazê-lo desaparecer no ecossistema quando deitado fora, do que se falava que podia ser um tal de ‘efeito de estufa’, dos rios que se tornavam autênticos esgotos a céu aberto por todo o mundo ‘civilizado’ e do perigo do inverno nuclear…
O que vale é que passados mais de 20 anos estas ameaças passaram à história. Ah… pois, era bom, não era?
Então o que falhou? Então onde falhámos? Que escolhas foram essas que fizemos que não só perpetuaram alguns dos problemas como a poluição derivada do uso do petróleo, a destruição das grandes florestas tropicais e a perda de biodiversidade e ainda nos arranjaram uns ’novos’ como as alterações climáticas, a acidificação dos oceanos e a perda de milhões de hectares de solos férteis?
Privilégios, presentes envenenados e olhos bem fechados
O que falhou?! Bem, pode-se dizer que foram as nossas más escolhas. Mantivemos a perspectiva medieval de um mundo sem fim onde divindades mais ou menos ocultas teriam dito ao Homem que a Terra e tudo o que havia sobre ela apenas existia para o servir e que isso, diz que ‘era bom’. Glorificou-se a conquista do que havia para além do horizonte e deram-se cargos de poder a quem mais destruía o mundo natural em troca de riquezas e curiosidades que em muito contribuíam para o ‘desenvolvimento’ das sociedades modernas. A tudo foi atribuído um preço, menos ao que é demasiado valioso para a nossa existência como é o caso do sistema planetário que nos criou e mantém vivos.
[pull_quote_left]Fico com a sensação de que sempre que obrigamos as pessoas a tomar a ‘decisão acertada’, ir para um curso com mais saída, a ter um emprego ‘a sério’, a ser subserviente do status quo, a glorificar o poder do sistema financeiro global, a viver sobre a égide do ‘mais é sempre melhor’ e que falhar não é opção, estamos de facto a perder opções válidas, inesperadas, disparatadas e geniais para avançar como sociedade, como humanos, como uma espécie privilegiada por viver num planeta único onde podemos viver todos mais felizes debaixo do sol[/pull_quote_left]
Foi este o nosso maior privilégio até hoje, escolher o caminho da escalada infinita, do crescimento sem limites, do direito ao lucro por parte dos agentes empreendedores, independentemente se isso traria efeitos nefastos sobre o ambiente e a sociedade. A isso chama-se ‘externalidades’ e diz-se que está fora do modelo de desenvolvimento económico e muito menos integra os sofisticados instrumentos de análise financeira que sustentam os ‘mercados’ que nos conduziram a uma situação de profunda desigualdade económica em que menos de 100 pessoas possuem controlo sobre tanta riqueza como metade da humanidade e onde a dívida global somada é superior a 230 triliões de dólares, algo parecido com o triplo do PIB mundial. Resta saber a quem é que devemos isto, será a Júpiter ou a Marte? Certamente a culpa só pode ser de uns extraterrestres.
No entanto, neste momento alega-se que não podemos prejudicar o ‘bom funcionamento’ das instituições financeiras (ah, bom funcionamento…) com questões como a reparação de danos ambientais sobre a atmosfera, os mares e as grandes florestas, afinal há que fazer crescer o PIB, certo? Também não se pode restringir as oportunidades de negócio que existem em explorar mais petróleo mesmo que seja à beira das praias algarvias, retirar água dos freáticos que alimentam campos e cidades para engarrafar e vender com ‘valor acrescentado’, destruir montanhas e vales para de lá retirar carvão ‘barato’ para alimentar a indústria, nem de desmatar mais as magras florestas tropicais de outrora para produzir óleo de palma e carne a preços interessantes.
Pois, se acrescentássemos os custos ambientais e sociais, os preços eram capazes de ser menos interessantes e retirar fontes de lucro aos agentes económicos não é uma escola que possa ser apoiada politicamente.
Este privilégio tem sido obtido à nossa custa, do nosso conforto silencioso e da conivência de quem foi educado que mais é melhor e que estamos acima de quaisquer outras criaturas graças a ordem divina e à boa educação obtida nas melhores business schools do primeiro mundo.
Agora queremos fazer boas escolhas erradas
Aqui é onde podemos, se quisermos, virar o jogo. Nós, cidadãos, ainda podemos escolher, ainda temos direito a ser ouvidos e o dever de ter algo a dizer, não tanto sobre o nosso umbigo mas sobre a nossa vizinhança global e o que podemos fazer para tornar o ‘ar mais respirável’.
Podemos optar por não procurar mais petróleo e gás natural através de métodos como o fracking (o infame gás de xisto) ou a extracção de areias betuminosas dado que já ainda existem grandes quantidades em reservas espalhadas por todo o mundo e apoiar todos as ideias e negócios que nos livrem do fardo fóssil e nos levem a um mundo onde produzir energia não equivale de forma directa a contribuir para a degradação do sistema ecológico global, mesmo que isso seja mau para os accionistas e para a economia.
A isto chamo o “privilégio de fazer as escolhas erradas”. Mais exemplos de abusos de privilégio são:
- Apoiar a transição para uma agricultura livre de pesticidas e herbicidas: não faz sentido continuar a apoiar a intensificação da produção com o aumento de riscos sistémicos para a nossa saúde e com consequências danosas para o meio ambiente;
- Criar modelos descentralizados de gestão do território com incentivos fortes aos empreendedores, inovadores e trabalhadores que queiram criar soluções desafiadoras para gerar riqueza enquanto resolvem problemas ambientais: mesmo que isto signifique ‘perder dinheiro’, ver duas em cada três empresas a falhar sem que isso signifique um estigma de derrota para quem falha, há que enriquecer um ecossistema de inovação que permita que as ideias floresçam e que não estigmatizem a falha, porque é na tentativa-e-erro que se encontram as melhores soluções, sempre;
- Compreender que as áreas naturais e a biodiversidade são o nosso maior ‘asset’, o nosso cofre de capital natura: trata-se de um sistema perfeito que teve 3,8 mil milhões de anos para tentar e errar e acertar e errar e tentar e acertar novamente com escolhas de formas de vida completamente absurdas, erradas e geniais que criaram as condições perfeitas para que hoje tenhamos um excelente ‘business environment’ e ainda por cima uma ‘casa’ para viver. Que luxo! O que podemos aprender com a natureza, como ela resolveu os inúmeros problemas com que se deparou ao longo das eras e como ela gerou milhões de soluções para viver e prosperar em trópicos sufocantes como desertos intermináveis e gelos inóspitos;
- Tantas outras coisas erradas que estão mais do que certas…
O próximo passo
Tentativa-e-erro, exuberância e simplicidade, curiosidade e inteligência, um pouco de parvoíce e muito idealismo, liberdade para fazer as escolhas erradas, foi esse o segredo da vida. Fico com a sensação de que sempre que obrigamos as pessoas a tomar a ‘decisão acertada’, ir para um curso com mais saída, a ter um emprego ‘a sério’, a ser subserviente do status quo, a glorificar o poder do sistema financeiro global, a viver sobre a égide do ‘mais é sempre melhor’ e que falhar não é opção, estamos de facto a perder opções válidas, inesperadas, disparatadas e geniais para avançar como sociedade, como humanos, como uma espécie privilegiada por viver num planeta único onde podemos viver todos mais felizes debaixo do sol.
Como dizem os mestres Zen, não a extinta banda mas os pensadores budistas: a única coisa que é verdadeiramente real sobre a nossa jornada é o próximo passo que escolhermos tomar. E assim sempre será.
Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence