Por que motivo a imigração constitui um problema político tão dramático? Mais significativo, por que anda ela ligada aos recentes recuos de civilização que se sentem em várias zonas sofisticadas do mundo? Como é possível tanta gente educada, inteligente e requintada dizer aleivosias boçais neste tema, cedendo à barbárie em culturas tão ricas e elevadas?
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES

O mundo tem hoje mais migrantes do que alguma vez teve. Segundo a ONU, em 1970 havia mais de 84 milhões de pessoas fora dos seus países, 2,3% da população mundial, mas 50 anos depois, em 2020, esses números subiram para 280 milhões e 3,6%. A maior parte dos deslocados estão em zonas vizinhas, mas aqueles que dão nas vistas são os que atravessam longas distâncias até sociedades muito diferentes, em geral mais ricas que as suas.

As razões desta evolução são muitas, mas as mais significativas provêm do desenvolvimento económico e do avanço da civilização. É porque o mundo está muito mais rico e mais sofisticado que a mobilidade é muito superior. Em sentido inverso, os movimentos das populações são também poderosos motores de desenvolvimento económico e dinamismo cultural.

A generalidade dos estudos científicos mostra que esta circulação gera grandes ganhos para todos os envolvidos: as sociedades que enviam, as sociedades que recebem e as pessoas que viajam. Assim a migração, consequência do progresso, é simultaneamente um dos mais poderosos instrumentos do progresso. Em especial, nos países em decadência demográfica, como são quase todos os países ricos, a chegada de estrangeiros é, não só útil, mas indispensável.

Sendo assim, por que motivo a imigração constitui um problema político tão dramático? Mais significativo, por que anda ela ligada aos recentes recuos de civilização que se sentem em várias zonas sofisticadas do mundo? Como é possível tanta gente educada, inteligente e requintada dizer aleivosias boçais neste tema, cedendo à barbárie em culturas tão ricas e elevadas?

A razão está ligada ao instinto de posse, elemento congénito da humanidade. O ser humano, que nasce nu e pouco tempo depois é reduzido a pó, tem uma tendência insana de se apropriar do que o rodeia. Por isso teme o estranho como um inimigo, não o vendo como colaborador. Achamos que esta terra é nossa, apesar de a termos recebido sem sabermos como, e nunca realmente a conseguirmos controlar.

A verdade é que cada um de nós é apenas administrador temporário daquilo que sempre lhe escapa, e que o mundo se destina com dignidade a todos os que o habitam.

Esquecendo isso, muita gente, que apenas passa um punhado de décadas neste pequeno planeta, diz-se dona do solo onde vive, atacando aqueles que vêm de longe para ajudar a desenvolvê-lo. Os quais, no fundo fazem apenas aquilo que os antepassados dos residentes fizeram há séculos, instalando-se em busca de uma vida melhor. Em particular os europeus, filhos das invasões bárbaras, espalharam-se por todo o mundo, ocupando terras usurpadas aos autóctones, enquanto no torrão de partida recusam aos que chegam aquilo de que se apropriaram noutras paragens.

É verdade que a migração, ao lado dos benefícios económicos, gera sempre problemas complexos e difíceis, que só seriam ultrapassáveis com hospitalidade, diálogo cultural, integração e adaptação social. Mas a fácil resposta automática é despertar os dragões do racismo, xenofobia, crime e violência. Sociedades que se consideram civilizadas, por mais juras de tolerância e solidariedade que façam, não controlam esses instintos telúricos, aproveitados por sicofantas que constroem carreiras políticas capitalizando o descontentamento.

A história mostra como esses ataques nada resolvem, frequentemente terminando em desastre. Muitas vezes só então, no meio dos escombros, as pessoas se lembram das soluções pacíficas e acolhedoras que deviam ter aplicado desde o princípio. Mas esta lição nunca fica aprendida. Os países que há 80 anos quase se autodestruíram com ideologias racistas estão de novo a cair nos mesmos erros.

Em Portugal, a questão adquire elementos caricatos. Porque o nosso país deve grande parte da sua identidade e sucesso histórico precisamente à mobilidade internacional e aos contactos intensos com outras culturas. Somos um povo de viajantes abertos à diversidade. Isso não impede que certas forças políticas, em nome da tradição nacional e do patriotismo, apregoem com sucesso ideologias alheias, que nada têm a ver com a cultura lusitana.

À medida que o progresso se desenrola, a migração vai naturalmente aumentando, tendo excelentes efeitos económicos sobre o mesmo progresso. A questão que se coloca hoje, mais uma vez, é saber se a civilização conseguirá vencer os atavismos seculares, ou se teremos de novo por passar por catástrofes, até compreendermos que este mundo não é nosso, mas do Criador, que o deu a todos.

Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas