Depois da divulgação da “Declaração sobre o Propósito da Empresa”pelo lobby empresarial Business Roundtable, cedo se multiplicaram as dúvidas e as críticas sobre a sua genuína eficácia. O que irão fazer de diferente estes gigantes empresariais para colocarem em prática aquilo que, para já, assumem como um mero compromisso de 300 palavras? Ou mais importante, o que têm de fazer para que não estejamos perante mais uma retórica vazia? Há já quem tenha preparado algumas respostas
POR HELENA OLIVEIRA
Em particular ao longo das duas últimas décadas, a filosofia vigente nas grandes empresas dos Estados Unidos foi a de considerar os interesses dos accionistas acima dos interesses dos demais stakeholders – trabalhadores, consumidores, fornecedores, comunidades onde operam e a sociedade no seu todo.
A 19 de Agosto último, o fortíssimo lobby empresarial Business Rountable (BRT), que reúne 181 CEOs das mais poderosas empresas americanas, divulgou publicamente uma declaração (v. artigo nesta newsletter) na qual se compromete a trabalhar em prol de todos os seus stakeholders, alterando o seu propósito e apostando numa maior consciência social que acrescente valor a todos eles e que “substitua” a maximização do lucro pela maximização do propósito.
A notícia foi muito bem recebida por todos os quadrantes da sociedade, mas a verdade é que transformar palavras em acções é tarefa complexa, em particular para um sem número de gigantes empresariais cujas actividades dificilmente poderão estar em linha com as promessas que constam no papel. Ou seja, “colocar os stakeholders em primeiro lugar” pode soar bem como princípio, mas é fácil perder de vista o que tal realmente significa.
A pressão para que os negócios coloquem um ponto final na primazia dos accionistas tem vindo a crescer, em particular por parte dos trabalhadores mais jovens que desejam trabalhar em empresas “que se importam”, por parte de clientes cada vez mais exigentes e atentos às acções destas face às suas pessoas e ao ambiente – punindo as marcas “mal comportadas” -, e por um número crescente de investidores conscientes que optam por investir o seu dinheiro em produtos financeiros que sejam sustentáveis, responsáveis e que causem um impacto positivo.
No campo político, a causa é igualmente abraçada, em particular pela candidata presidencial democrata Elizabeth Warren, que propôs a denominada Accountable Capitalism Act, a qual exorta as grandes empresas a aprovarem um estatuto sob o qual os executivos de topo estarão obrigados a “considerar os interesses de todos os stakeholders corporativos”. Académicos, vários think tanks e grupos activistas há muito que têm vindo, igualmente, a pressionar o mundo empresarial a abandonar o objectivo do “lucro acima de tudo” e a instarem os seus líderes a preocuparem-se verdadeiramente com os seus stakeholders e com os desafios globais que ameaçam o mundo tal como o conhecemos.
Aparentemente, toda esta pressão está agora a dar os seus frutos, mas existe um cepticismo instalado – e com boas razões – que questiona a exequibilidade destes compromissos e promessas. Um bom exemplo, e sempre mediatizado, é a desigualdade gigantesca entre o salários dos CEOs e o dos seus trabalhadores médios, a qual continua a apresentar percentagens avassaladoras. Um recente estudo abrangente publicado pelo Economic Policy Institutefaz saber que as compensações dos primeiros cresceram 940% desde 1978 comparativamente a 12% para os segundos ao longo do mesmo período e, ao mesmo tempo, os lucros corporativos – que apresentam valores historicamente elevados – estão principalmente a ser utilizados para compensar os accionistas. Ora, e sendo esta apenas uma fatia do bolo da “justiça empresarial” e do propósito de que tanto se fala, para que a declaração do Business Roundtable faça algum sentido e não seja apenas uma retórica vazia, as coisas realmente têm que mudar. Vejamos algumas ideias e críticas que têm vindo a circular depois do anúncio feito por estes 181 CEOs.
Estão os CEOs genuinamente a abraçar o capitalismo a favor dos stakeholders?
Num artigo publicado pela Fast Company exactamente sobre a Declaração sobre o Propósito da Empresa divulgada pelo BRT, foram ouvidos alguns economistas e académicos sobre o que realmente é necessário para que o panorama empresarial mude para melhor e seja consonante com os compromissos agora divulgados.
A restrição da compra de acções – e recompra – é uma das ideias avançadas como forma de acabar com este apelidado “narcótico financeiro” que, ao contrário do que defendem muitos executivos de topo, e muitos deles pertencentes ao BRT, consiste numa forma eficaz de distribuir capital e ajudar a economia a crescer. Mas a verdade é que a recompra de acções favorece em particular os accionistas (e também os CEOs) e “cada dólar de lucro gasto nas mesmas significa um dólar a menos que poderia aumentar os salários dos trabalhadores, contribuir para a sua formação, para a área de I&D, entre outras”. Como defende o economista Bill Lazonick, crítico profundo dos programas de recompra de acções, “devia ser uma obrigação fundamental para todas as empresas ‘reter-e-reinvestir”, ou seja, preservar os lucros e reinvesti-los nas capacidades produtivas dos trabalhadores, e não fazer um downsizing na força laboral, distribuindo o capital corporativo aos accionistas.
Roger Martin, da Universidade de Toronto e considerado um dos maiores pensadores de gestão do mundo é também manifestamente contra o excessivo enfoque no preço das acções. “Em vez de se concentrarem [os executivos de topo]no preço das acções”, diz, “deviam única e expressamente concentrarem-se em servir os clientes, desenvolver os empregados ou colmatar alguma necessidade social através da inovação”. Uma visão semelhante tem Judy Samuelson, directora executiva do Programa Business and Society do Aspen Institute. O que realmente a impressionaria, afirma, seria a coragem dos CEOs em reduzirem o enfoque intenso no preço das acções reflectido nas suas compensações. “Mais de metade das compensações dos CEOs tem como base as acções, sendo que a maioria está estreitamente ligada a medidas financeiras de curto prazo”, diz. Pelo contrário, defende, os executivos deviam ser pagos de acordo com um mix de métricas ambientais, sociais e de governance.
Já Leonore Palladino, economista na Universidade de Massachusetts Amherst, “para que os líderes empresariais demonstrem o seu compromisso legítimo com o capitalismo focado nos stakeholders, precisamos de testemunhar o seu compromisso com a saúde do ambiente como uma prioridade de negócio (…), uma dramática estratégia de reorientação no sentido de inverter os danos actuais para uma reengenharia dos negócios para que estes sejam produtivos a longo prazo”. Palladino afirma mesmo que o que mais a move neste abandono da primazia do accionista é o facto de acreditar plenamente de que “o futuro da raça humana depende disso” e “que não está a exagerar”.
Já para o pioneiro da sustentabilidade e pai do conceito da “triple bottom line”, John Elkington, é tempo de as empresas deixarem de falar a duas vozes, exortando a que os seus líderes “se demitam de todos os grupos comerciais e industriais que fazem lobby para atrasar ou impedir as mudanças sistémicas necessárias”. Só assim, a seu ver, se conseguiria criar, em simultâneo, valor económico, social e ambiental, colocando-se um preço com significado nas emissões de carbono e acabando com os monopólios e os oligopólios.
Para conferir maior conteúdo à declaração emitida pelo BRT, a questão da “organização da força laboral” é igualmente uma prioridade. “Dar as boas-vindas, em vez de lutar contra os sindicatos” é, para Andy Green, director de políticas económicas no Center for American Progress, uma prioridade, em particular porque a pesquisa demonstra que quase metade dos trabalhadores que não pertence a nenhum sindicato, quer pertencer.
Outras medidas passam pela garantia de um salário digno para todos os trabalhadores, a possibilidade de stakeholders de vários tipos, como empregados, especialistas em sustentabilidade e até contribuintes anónimos terem assento nos conselhos de administração e, no que respeita às escolas de gestão, pararem de ensinar que o valor para o accionista é o objectivo primeiro e último do capitalismo.
Mas o que é que há de novo na Declaração do BRT?
Em resposta ao anúncio do BRT e num tom muito crítico, o World Resources Institute (WRI), uma conceituada organização de pesquisa global, presente em 60 países e cujo trabalho é o de trabalhar conjuntamente com líderes para os ajudar a fazer a transição para modelos de negócio mais sustentáveis e inclusivos, considera a Declaração sobre o Propósito da Empresa “um mero plano de responsabilidade social corporativa da geração anterior”, ou seja, “mais do mesmo”.
A organização que há mais de 25 anos trabalha na área da responsabilidade social corporativa e há 12 em sustentabilidade corporativa defende que muitos dos CEOs pertencentes ao BRT, e as suas respectivas empresas, há décadas que falam neste tipo de compromissos agora oficializados e que o que é urgente é uma mudança disruptiva e profundamente transformadora a um nível global. “Não precisamos mais do mesmo, mas sim de modelos de negócios sustentáveis e inovadores” e “precisamos de empresas que estabeleçam metas de sustentabilidade assentes na ciência e no contexto actual “. “Será que tudo o que as maiores empresas têm para oferecer é um plano que seria considerado inovador nos anos de 1990?”, questionam ainda.
Para o WRI, e tendo em conta os diversos pontos contidos na Declaração do BRT, a única forma de este anúncio de boas intenções não passar disso mesmo, de boas intenções, é fazendo com que as suas aspirações sejam acompanhadas por acções ousadas. Nesse sentido, propõem três propostas de melhoria a serem seguidas pelos 181 CEOs signatários.
Por um lado, oferecer aos consumidores produtos e serviços ambiental e socialmente sustentáveis que ajudem a sociedade a perseguir um futuro com sentido, o que significa abraçar os modelos da economia circular, desenhados para a longevidade e para a reutilização.
Por outro, utilizar as marcas corporativas e a influência política para apoiar mudanças sistémicas que assegurem oportunidades equitativas para todos. Tal significa aproveitar o seu poderoso lobby para a existência de uma legislação que tenha em conta as alterações climáticas, aumentando em simultâneo a transparência corporativa e utilizar a marca e a publicidade para alterar os comportamentos dos consumidores, tornando-os mais sustentáveis.
Por fim, o WRI apela às grandes empresas que reconheçam, de uma vez por todas, que os recursos dos quais estas dependem são limitados e que são urgentes modelos de negócio que prosperem “no interior” dos recursos disponíveis no planeta, o que implica o estabelecimento e cumprimento das metas de redução de emissões e outros objectivos sustentáveis que têm como base a ciência e que vão ao encontro das necessidade de toda a sociedade e não só do mundo empresarial.
Só assim, acreditam, será possível perseguir e atingir uma “face” mais inclusiva e sustentável para os negócios.
O anúncio das B Corps
Numa espécie de carta aberta publicada na revista Fast Company e assinada pelos três co-fundadores do movimento B Corporation, Jay Coen Gilbert, Andrew Kassoy e Bart Houlahan, o anúncio feito pelo BRT é saudado e apresentado com um bom exemplo da necessidade de o mundo se afastar da ideologia falhada do primado do accionista e caminhar no sentido de uma nova cultura de prosperidade partilhada. Todavia e como seria de esperar, este movimento, que há já vários anos multiplica a sua filosofia de negócios em vários continentes, não deixa de questionar a futura eficácia da Declaração sobre o Propósito da Empresa e, mais do que isso, não se contém em apontar o dedo à “novidade” que a mesma supostamente encerra. Ou seja, para as mais de 10 mil empresas já certificadas enquanto B Corps – entidades corporativas com fins lucrativos, legisladas como tal em 37 estados e que incluem o impacto positivo na sociedade e no ambiente como complemento ao lucro enquanto objectivos legalmente definidos – o conteúdo do anúncio feito pelo BRT nada tem de novo ou de original.
Todavia, e num tom cortês, os três co-fundadores celebram a nova atitude destes poderosos CEOs, afirmando, no entanto, que é importante reconhecer que as pessoas que estão a pressionar para que esta mudança aconteça e que as empresas sejam alimentadas por uma nova consciência social, são as mesmas que exigem respostas, ou a transformação das palavras em acções.
De acordo com Gilbert, Kassoy e Houlahan, as pessoa querem “comprar de, trabalhar para e investir em … empresas que sirvam um propósito mais elevado do que a maximização do lucro a qualquer custo para as pessoas, para as comunidades e para o mundo natural do qual depende toda a vida”. A seu ver, as pessoas estão a exigir um novo contrato social entre as empresas e a sociedade, mediante o qual os negócios e os mercados de capitais criem valor de longo prazo para todos os stakeholders. E, puxando pelos seus próprios galões, acrescentam ainda que as pessoas estão a fazer este tipo de exigência, em parte porque reconhecem a alternativa credível proposta pelo próprio movimento das B Corps que está a “liderar a transformação do capitalismo para o accionista do século XX para o capitalismo em prol dos stakeholders do século XXI”.
E, como afiançam, as boas notícias residem no facto de existirem novas estruturas e ferramentas que podem ajudar os membros do BRT a transformarem os seus princípios em práticas legítimas.
Aliás, o movimento em causa, não se deixando ficar apenas por esta espécie de carta aberta, decidiu publicar um anúncio, de uma página, na edição de domingo, 25 de Agosto, do The New York Times, uns dias depois do BRT ter oficializado a sua nova posição e, num tom que se pode caracterizar quase como provocativo, instando as empresas que estão nas mãos dos 181 CEOs em causa a “trabalharem em conjunto” [com o seu próprio movimento] e serem certificadas como B Corps, o que tornaria a declaração do BRT juridicamente vinculativa. Com o título “Let’s get to work” e apelando directamente aos “Dear Business Roundtbale CEOs”, o anúncio recorda a ainda vigente resistência por parte dos investidores face a esta nova definição de negócios, propondo esta “junção de esforços” para que o propósito do capitalismo seja o de trabalhar para todos e a longo prazo.
Para este alargado conjunto de empresas que “opera os seus negócios como uma força para o bem”, os 181 CEOs em causa têm a oportunidade de dar o salto para a “stakeholder governance”, tornando as suas empresas legalmente responsáveis pelo equilíbrio dos interesses dos seus accionistas com os interesses dos seus demais stakeholders. Recordam, também, que com a certificação B Corp – que integra uma verificação externa da performance social e ambiental das empresas – as ferramentas existem e que só é preciso ter coragem para serem utilizadas.
Os co-fundadores defendem também que para criar um ambiente económico que favoreça o longo prazo, também os mercados de capitais terão de se conter na sua sobrevalorização relativa ao curto prazo. E recordam igualmente que muitos decisores políticos, pertencentes a todo o espectro ideológico, já identificaram a primazia do accionista como um obstáculo aos empregos de qualidade e à prosperidade partilhada. A seu ver, a América da actualidade tem a oportunidade de alcançar consenso bipartidário que permita que empresas e investidores façam a transição para esta nova cultura, a qual poderá ser traduzida numa alteração de comportamento duradoura que beneficie trabalhadores, comunidades, o ambiente e também os próprios accionistas.
A resposta dos três co-fundadores termina não só com mais um apelo ao trabalho conjunto, mas sublinhando a ideia de que a não ser que se aborde um contexto sistémico no qual todos os CEOs possam operar, celebrar a Declaração do BRT sobre este novo propósito permanecerá “mais como uma esperança do que como uma estratégia”.
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Editora Executiva
Já temos em Portugal algumas empresas com estratégia e posicionamento dirigidas a todos stakeholders.
Espero que esse numero continue a aumentar e cada vez mais depressa.
Ferramentas e evidências de sucesso não faltam.
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Estou disponível para ajudar dando a conhecer ferramentas e bons exemplos.
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