A verdadeira raiz do mal não resulta da degradação da cultura e da democracia, nem sequer da subida dos partidos xenófobos ou totalitários de extrema-direita ou extrema-esquerda. A fonte da iniquidade, que jorra sobre o mundo e já ameaça inundá-lo, vem de dentro do nosso coração
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES
«O país viveu em paz durante quarenta anos; depois, Oteniel, filho de Quenaz, morreu. Os filhos de Israel voltaram a praticar o mal diante do Senhor; o Senhor mandou contra eles Eglon, rei de Moab, por terem praticado o mal diante do Senhor.» (Jz 3, 11-12).
Este é o padrão dominante do Antigo Testamento, sucessivamente repetido ao longo das gerações: o povo é salvo pelo Senhor e vive um tempo de prosperidade; “surge então, depois dela, outra geração que não conheceu o Senhor, nem a obra que o Senhor havia feito em favor de Israel.” (cf. Jz 2, 10) e o país corrompe-se. Esse abandono gera um terrível período de tribulação, até que, no meio da desgraça, o povo se arrepende e o Senhor manda de novo a salvação.
Estes antigos ciclos hebraicos revelam uma linha básica da raça humana e regressam hoje, a nível mundial. Nós séculos XVIII e XIX o Ocidente cristão abandonou a sua fé original e prestou “culto aos ídolos de Baal” (cf. Jz 2, 11), o iluminismo, o liberalismo, o positivismo, o existencialismo. Essas doutrinas, quando se formataram em forças políticos, encarnando Eglon, geraram as desgraças de 1803 a 1815, de 1914 a 1918, e quase incineravam a humanidade na maior catástrofe da história, de 1939 a 1945.
Então, no fundo do abismo da desgraça, o mundo arrependeu-se e prometeu ao Senhor respeitar a abertura, a democracia e os direitos de todos, na Carta das Nações Unidas, e o planeta viveu em paz durante oitenta anos. Hoje é evidente que, mais uma vez, o povo se corrompe.
Por todo o lado vemos sociedades divididas, rachadas ao meio, incapazes de dialogar. As razões da luta são variadas, mas muito mais básicas e profundas que há 100 ou 200 anos. Hoje não se trata de voto das mulheres, da liberdade empresarial ou da superioridade da raça. O que nos divide é aborto e a família, a eutanásia e a imigração, o clima e a tecnologia. Clivagens tão drásticas impedem o consenso, afundam o centro moderado e promovem partidos radicais. No debate social é mais importante a raiva contra o inimigo que a prosperidade comum. Como nos séculos passados, a partir de 2022 começaram a surgir guerras ferozes e corridas aos armamentos que, de novo, ameaçam a sobrevivência da humanidade. Aproxima-se o tempo de Eglon.
O ponto decisivo deste paralelo entre o Povo Eleito e a atualidade é a chave de leitura que tem escapado à maioria dos comentadores que alvoroçam as nossas redes. A mensagem essencial dos livros históricos da Bíblia é que o problema não está em Eglon, mas em Baal.
O drama do nosso tempo não vem, antes de mais, das tolices e agressões de Putin, Netanyahu, Xi ou Trump. A verdadeira raiz do mal não resulta da degradação da cultura e da democracia, nem sequer da subida dos partidos xenófobos ou totalitários de extrema-direita ou extrema-esquerda. A fonte da iniquidade, que jorra sobre o mundo e já ameaça inundá-lo, vem de dentro do nosso coração. Afinal, a raiz da tragédia não se situa em Trump e Netanyahu, Le Pen e Ventura, Putin e Xi, mas nos seus eleitores e partidários. Eglon seria um mero fantoche sem qualquer perigo, se o povo não tivesse feito o mal aos olhos do Senhor.
A origem está, portanto, na adoração dos ídolos de Baal. Onde estão esses ídolos? Em nossa casa, nos nossos telefones, nos nossos planos e desejos. É aí, mais do que em outro lugar, que se vê a origem da desgraça contemporânea. Um povo que vive o quotidiano mergulhado num mundo de ficção plástica, empanturrado de consumo, emoções, prazeres, fama, brilho e boçalidade, vai acabar pondo a sua confiança em palhaços mediáticos ignorantes e perversos. Até pode continuar a ir à missa ao domingo, como os antigos israelitas sacrificavam ao Senhor, mas o seu coração está com Baal.
Que podemos fazer nestas situações? Qual é a saída dos terríveis tempos de Eglon, como de Napoleão, de Hitler, de Trump? «Os filhos de Israel clamaram, então, ao Senhor, e o Senhor enviou-lhes um salvador: Eúde, filho de Guera, filho de Benjamim, que era esquerdino. (…) Foi então que derrotaram Moab, com os seus cerca de dez mil homens, todos robustos e valentes; nem um só escapou. Nesse dia, Moab foi humilhado às mãos de Israel; e o país viveu em paz durante oitenta anos.» (Jz 3, 15, 29-30).
Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas