Igualdade e meritocracia são, na sua definição, coisas boas, excelentes mesmo, mas, de repente, com a pandemia, abriu-se uma janela, que nos permitiu ver a limitação destes conceitos e a necessidade de outro caminho … que não fique no meio, mas entre os dois, como defendia Aristóteles, que seja mais justo e que faça as pessoas mais felizes. Talvez se chame equidade, mas não é fácil perceber onde está
POR HELENA GONÇALVES E ANA ROQUE

Igualdade significa, simplificando, não distinção, tratamento igual para todos – os mesmos direitos e os mesmos deveres, independentemente do género, da idade, da formação, da classe social ou de outras quaisquer condicionantes.

Meritocracia, por seu lado, significa, simplificando também, a distinção (premiação ou punição) em função da ação de uma pessoa, ou seja, baseia-se na justiça, a pessoa tem de merecer1. O mérito, enquanto valor moral, distingue-se da virtude, que pode ser natural e sem esforço. Referimo-nos a meritocracia como a premiação de quem conseguiu melhores resultados, assumindo que será quem teve mais mérito.

Igualdade e meritocracia são, na sua definição, coisas boas, excelentes mesmo, mas, de repente, com a pandemia, abriu-se uma janela, que nos permitiu ver a limitação destes conceitos e a necessidade de outro caminho… que não fique no meio, mas entre os dois, como defendia Aristóteles, que seja mais justo e que faça as pessoas mais felizes.

Esse caminho do meio talvez se chame equidade e foi o tema escolhido para a última sessão do Fórum de Ética da Católica Porto Business School.

Começámos a reflexão sobre o tema com uma história que tinha o mesmo início e dois finais diferentes. A história passa-se numa empresa que, como muitas outras, foi forçada pelo confinamento, a passar para o teletrabalho. Vamos à história:

António é gestor numa empresa de telemarketing, altamente reconhecida pela qualidade das suas pessoas e pela capacidade de interagir com o público em temas complexos.

Por isso, neste contexto Covid, a empresa foi convidada a apresentar uma proposta para dar apoio à Saúde 24 na marcação de exames e testes. Ganhou e não tem mãos a medir.

O atendimento é feito pelos empregados a partir de casa, onde estão em teletrabalho, tendo sido instalado em casa de cada um, um terminal que permite fazer o registo das chamadas realizadas e recebidas, bem como o das marcações. O horário é das 9 às 17 ou das 14 às 22, tendo os trabalhadores em cada turno uma hora de paragem, para almoço ou jantar, que é monitorizada. O rendimento dos trabalhadores varia. Há quem, em casa tenha diminuído a produtividade, há quem em casa ou no escritório mantenha o mesmo ritmo e outros que ainda conseguem ser mais produtivos do que eram antes.

Esta é a parte da história que é igual e a partir daqui ela divide-se em duas histórias. Numa delas o António resolve, no final do período de confinamento – pensávamos que tinha terminado – dar um prémio a todos os trabalhadores pelo esforço de adaptação e pelos resultados que, com o esforço de todos, a empresa tinha conseguido atingir.

Na outra história, o António resolve premiar as pessoas que, mesmo fora do seu ambiente de trabalho habitual, na sua casa, conseguiram aumentar o seu desempenho, contribuindo de forma especialmente relevante para os resultados da empresa (ele sabe que houve pessoas que, mesmo em casa, trabalharam para além do seu horário).

Ou seja, no primeiro caso, o António tomou uma decisão baseada num princípio de igualdade: estavam todos a trabalhar fora do seu ambiente natural e em circunstâncias potencialmente estranhas e difíceis e, por isso, todos mereciam ser premiados. No segundo caso, tomou a decisão seguindo um princípio de meritocracia: quem mais trabalhou, em contexto de teletrabalho, ultrapassando a estranheza da situação, devia ser premiado.

Mas, de facto, qualquer uma das decisões não foi bem recebida pelos trabalhadores.

Do lado em que a escolha tinha sido feita com base no mérito, houve uma colaboradora que se insurgiu e enviou um email a reportar a situação de uma colega e a dizer que não achava a decisão justa.

Disse que a colega (e não era a única) tinha passado o período de confinamento em casa com dois filhos pequenos, um de 3 e outro de 8 anos. Que tinha passado os dias a fazer e receber chamadas, sempre com o coração nas mãos, sem querer deixar o filho pequeno à solta para não se magoar, mas não o podendo prender 7 horas, que tinha feito telefonemas enquanto olhava para o filho de 8 anos, que seguia a escola através de um computador. Disse que era impossível ela conseguir o mesmo desempenho em casa e que era injusto ser penalizada por isso.

Do lado em que a decisão tinha sido tomada com base no princípio da igualdade, houve também um grupo de trabalhadores que se insurgiram e que enviaram um email a protestar, dizendo que a decisão não era justa.

Eram pessoas que tinham até trabalhado mais do que o horário habitual, sentiam que tinham dado o máximo, e que o prémio era a prova de que naquela empresa o que contava não era o mérito. Questionavam a justeza do critério de premiação e diziam que se não fosse uma situação de saúde pública, da próxima vez, não se iam esforçar tanto.

São estes os casos e o que foi discutido.

O que se tentava perceber era qual a atitude mais benéfica para todos os trabalhadores e o que seria uma liderança ética neste contexto. Estas são questões complexas, uma vez que as duas atitudes da chefia são defensáveis e as críticas dos trabalhadores têm também, por sua vez, justificação.

Num caso e no outro sente-se que foi dada pouca atenção à pessoa em concreto e a cada situação em particular. De alguma forma, a chefia deveria ter tentado perceber como é que os trabalhadores tinham vivido, no dia a dia, este tempo de teletrabalho.

Estamos perante uma situação em que potencialmente não há igualdade de oportunidades: a possibilidade de alguém sozinho em casa trabalhar mais, e isso ser até uma forma de combater a ansiedade, não é comparável com a situação de alguém que está com a família (por exemplo com um ou mais filhos, também em casa confinados) ou mesmo de quem tem em casa alguém doente.

Ou seja, para que a meritocracia seja válida necessita de uma igualdade de oportunidades que muitas vezes não existe e, neste caso, não existiu. Então é preciso, cirurgicamente, olhando para o contexto, tentar equilibrar as situações e pôr um foco no esforço e não no resultado ou, então, criar condições para que com um esforço idêntico possa ser possível não comprometer os resultados a atingir. Fazer isso é promover um tratamento equitativo.

É importante que a chefia assuma para si própria que ninguém tem uma visão completa e que evite decisões precipitadas. Para isso é importante perguntar (e ficar a saber) como foi o tempo em teletrabalho, compreender o estado físico, emocional e social de cada pessoa; perguntar se se sentiu a trabalhar mais ou menos e porquê; criar formas de valorizar diferentes e diferenciadas, envolvendo, eventualmente, outros trabalhadores.

No decorrer da reflexão sobre este(s) caso(s), surgiu outro tema: identificar em cada situação que atitude seria melhor para a imagem do António, enquanto chefia. E apesar de ter havido quem defendesse que a imagem não era uma questão a ser considerada, o tema de alguma forma retomou a reflexão da sessão anterior do Fórum onde, com o apoio de Aida Chamiça, especialista em Coaching de alta direção, tinham sido analisados os desafios da liderança de equipas à distância, uma realidade praticamente nova, decorrente do teletrabalho em pandemia.

De facto, e no mesmo sentido dos resultados do estudo a ética nas empresas em tempo de pandemia, que tínhamos realizado, verifica-se que um dos aspetos que de algum modo mina a liderança ética dos líderes e a sua imagem é a atitude demasiadamente controladora. Esta atitude pode estar relacionada com o desconforto de se gerir com insegurança e com medo, aspetos verdadeiramente fora da zona de conforto da maioria das chefias. Como referiu Aida Chamiça, o desafio passa por se assumir a vulnerabilidade de cada um (aliás, característica intrínseca ao ser humano) e prepararmo-nos (todos, com e sem responsabilidade de gestão) para a aceitar, ou seja, incluí-la, na “zona exploratória” do nosso futuro (próximo), individual e coletivo.

Acreditamos que todos estes aspetos – procura da equidade e da liderança ética à distância – são muito relevantes para uma reflexão sobre os novos modelos de avaliação do teletrabalho (que de forma mais ou menos híbrida veio para ficar) e na avaliação por objetivos do trabalho feito a partir de casa.

1 Mérite, Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, André Lalande

Helena Gonçalves e Ana Roque, coordenadoras do Fórum de Ética da Católica Porto Business School