Mesmo o trabalho aparentemente mais simples oferece a quem o faz, além do mero aspecto material, uma possibilidade de sentido. Pode parecer fina a linha que separa um workaholic de um trabalhador altamente motivado e com prestações excepcionais. Mas a distinção é bem real. Quando a actividade profissional se torna o eixo em torno do qual tudo gira, encontramo-nos na presença de uma fuga, um medo, um vazio que se resiste a confrontar
POR JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

Não faz qualquer sentido separar, em nós, o ser humano que pensa ou sente do ser humano que trabalha. Fazer, fazer coisas, produzir activamente, trabalhar com dedicação, é uma maneira de edificar o mundo e de realizar criativamente o encontro com os outros e connosco próprios. Mesmo o trabalho aparentemente mais simples oferece a quem o faz, além do mero aspecto material, uma possibilidade de sentido. Mas isto um workaholic não o sabe.

Pode parecer fina a linha que separa um workaholic de um trabalhador altamente motivado e com prestações excepcionais. Não nos enganemos, porém: a distinção é bem real. O workaholic tornou-se patologicamente dependente do trabalho. A ele sacrifica tudo e todos. E é uma dependência considerada ‘respeitável’ enquanto ainda não é vista socialmente como uma perturbação nem está associada ao sofrimento e a pesados custos humanos. Mas é disso que se trata. Tende-se a tomar por normal uma patologia que está a tornar-se estatisticamente frequente. É uma realidade que nos deve fazer pensar.

Para um workaholic, o trabalho começou por representar a realidade mais importante da vida, e rapidamente passou a ser a vida. Na sua narrativa “A metamorfose”, Franz Kafka traça um quadro impressionante da questão, que é lida inclusivamente do ponto de vista psicológico: «… o pai [de Gregor] não queria tirar o uniforme nem sequer em casa; o pijama permanecia pendurado no armário e ele dormia, cuidadosamente vestido, na poltrona, como se estivesse sempre em serviço e também ali esperasse a voz de um superior». Muitos pais são assim. Evasivos no dia-a-dia, tendencialmente abstractos, prontos a fazer promessas para o primeiro fim-de-semana possível (a não ser que depois estejam demasiadamente cansados ou ocupados). Exibem uma ambição desmesurada e inflexível que mortifica toda a situação que tenha a ver com a gratuidade das relações e com uma efectiva partilha da vida dos outros.

[quote_center]Não faz qualquer sentido separar, em nós, o ser humano que pensa ou sente do ser humano que trabalha[/quote_center]

Os dias do workaholic são cada vez maiores, mas sempre demasiadamente breves, e esgotam-se numa interminável sucessão de tarefas, muitas das quais auto-impostas, sem uma finalidade visível, que reclamam uma actividade frenética e uma velocidade obsessiva, de modo que tudo o resto passa para segundo plano. Os elevados níveis de adrenalina requeridos por esse exercício amplificam uma certa ilusão de omnipotência. A encenação é protegida pela ocupação obsessiva de todos os buracos na agenda. A isto se chama substituição, armadura, escudo protector, compensação, olvido, pretexto: tudo nomes efectivamente coerentes com esse modo de vinculação.

Quando a actividade profissional se torna o eixo em torno do qual tudo, literalmente, gira, encontramo-nos na presença de uma fuga, um medo, um vazio de outra natureza que se resiste a confrontar. O hiperactivismo, o perfeccionismo e o narcisismo ligados à dependência do trabalho são sintomas fulgurantes, mesmo quando não os queremos ver. Naturalmente, tudo isto, mais cedo ou mais tarde, produz consequências: a ruptura com o mundo social e a auto-exclusão. Estar presente diante de outros revela-se, inicialmente, uma coisa difícil de organizar, e bem depressa se torna impossível só de pensar. O horizonte da vida pessoal e familiar reduz-se cada vez mais, até se tornar insignificante. A dimensão afectiva fica capturada pela ideia do sucesso profissional, perseguido de maneira compulsiva, e do aparato exterior de poder que dele resulta.

Como recorda Luigi Ballerini, esta é uma patologia que pode ferir todos, homens e mulheres, em qualquer tipo de profissão: gestores de topo e domésticas, profissionais liberais e administradores, professores ou comerciantes. A ninguém está garantida a imunidade. Com um problema acrescido: nos dias de hoje é o próprio sistema de trabalho que se tornou workaholic. Nas suas expectativas, no que incentiva ou no que premeia. Uma das coisas que devemos rever, como sociedade, é a ética do trabalho.

Publicado originalmente a 28 de Abril de 2016 | Avvenire e Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura