Foi o facto de Cristo ter morrido e ressuscitado há 2000 anos que transformou para sempre a civilização humana. Respeito e amor ao próximo, justiça, solidariedade e tantos outros valores hoje dominantes, devem-se em grande medida à influência espiritual da Igreja na nossa cultura. Isso vê-se facilmente ao constatar que são precisamente os países menos tocados pelo Cristianismo aqueles em que ainda existe pena de morte
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES

Qual a relação entre a Páscoa e o mundo actual? Esta pergunta não é fácil de responder, por causa do nosso enviesamento inato. Normalmente, todas as gerações têm tendência para criticar a época em que vivem. Somos maus juízes de nós próprios.

Por isso, é natural ouvir dizer que ninguém hoje realmente entende a Páscoa, e que ela passa despercebida neste mundo sem fé. Mas houve algum tempo que realmente entendesse a Páscoa? Será que alguma vez ela foi mesmo compreendida? A geração que a viveu foi apelidada por Jesus como «geração perversa» (Mt 12, 45), «geração adúltera e pecadora» (Mc 8, 38). Todas as seguintes não foram muito melhores. Por isso este tempo não contrasta assim tanto com os anteriores.

Analisar a relação entre a Páscoa e a idade contemporânea pode ser feita de várias formas. Uma primeira pode ser considerar a questão d’“O Grande Inquisidor” de Dostoievski: que aconteceria a Jesus se viesse hoje a este mundo? À primeira vista, a situação seria bastante melhor, dado a pena de morte estar abolida em múltiplos países, incluído Israel. Deste modo, hoje a Páscoa não poderia acontecer. No entanto, se Jesus decidisse nascer no mesmo local, era bem capaz de ser morto antes da Páscoa, por alguma intifada ou ataque terrorista. Temos de dizer que, apesar de tudo, há 2000 anos havia menos instabilidade no Médio Oriente, porque os romanos mantinham a ordem.

Esta forma de colocar a questão é, porém, injusta para a nossa geração, porque dificilmente a Palestina pode ser tomada como representativa da actualidade. Por isso, estamos convencidos que se Jesus nascesse hoje na Europa ou América do Norte, a Páscoa nunca aconteceria. A nossa sociedade aceita pregadores de todos os tipos, tolerando as doutrinas mais estranhas. Mas este orgulho que sentimos pela nossa benevolência é subtilmente enganador. Porque uma das principais razões disso é precisamente a Páscoa.

Foi o facto de Cristo ter morrido e ressuscitado há 2000 anos que transformou para sempre a civilização humana. Respeito e amor ao próximo, justiça, solidariedade e tantos outros valores hoje dominantes, devem-se em grande medida à influência espiritual da Igreja na nossa cultura. Isso vê-se facilmente ao constatar que são precisamente os países menos tocados pelo Cristianismo aqueles em que ainda existe pena de morte. Ou seja, a Páscoa hoje não aconteceria no Ocidente simplesmente porque ela aconteceu há 2000 anos. Foi por a Páscoa ter mudado a história, que ela se tornou menos plausível. Ou seja, se Jesus tivesse adiado a sua vinda até 2019, colocando a Páscoa nos nossos dias, a nossa sociedade, desenvolvida sem Igreja, seria certamente bem mais bárbara e intolerante que aquela que O matou há 2000 anos.

Outra forma de analisar relação entre a Páscoa e a idade contemporânea é observar a forma como consideramos os vários elementos que a constituem. Como vê a cultura actual o acontecimento do Calvário? Ao contrário do que se diz tantas vezes, a actualidade hoje realmente entende muito melhor a Páscoa do que parece.

Temos de dizer que a posição de fundo é favorável. A atitude contemporânea concede grande valor e dignidade à situação do inocente injustiçado. Os nossos romances, filmes e discursos estão cheios de situações dessas. Não há dúvidas que a opinião pública actual condena Caifás, Herodes e Pilatos, e simpatiza com Cristo, pela sua entrega. Os paladinos de valores elevados, que sofrem na defesa da sua missão, estão entre os heróis mais exaltados do nosso tempo. Assim, Jesus alinha hoje, no panteão das nossas referências, com figuras como Sócrates, Spartacus, Galileu, Che Guevara, Gandhi ou Nelson Mandela.

Por outro lado, a Ressurreição, o elemento mais decisivo da Páscoa, é menos incompreensível nos nossos dias do que se diz. Hoje assistimos a várias ressuscitações, muito mais que em qualquer época anterior; do Super-homem e Wolverine a Spock e Jon Snow, múltiplas personagens têm regressado da morte nas últimas décadas. Até 007 sabe que «Só se vive duas vezes». É verdade que nenhuma delas teve uma verdadeira Ressurreição, não só por serem figuras fictícias, mas também porque voltaram à vida como ela era, para continuar as tarefas anteriores. Mas não há dúvida que a cultura actual não estranha o regresso da morte, precisamente por ser pós-cristã.

Até a questão da divindade de Jesus não é tão aberrante aos nossos dias quanto parece. Apesar da tese comum do secularismo, segundo a qual vivemos num tempo sem Deus, a verdade é que a esmagadora maioria da população mundial continua a afirmar-se crente no transcendente, e a figura de Deus anda presente em muitos lados, da nota de dólar, com a inscrição «In God we trust», às aventuras de Thor ou Q de Star Trek.

O problema central da Páscoa para o nosso tempo é ela pretender ter um impacto na vida pessoal de cada um. Este Deus, Jesus, não se limita a façanhas cinematográficas ou a ocupar um longínquo trono celestial. Ele incarna neste mundo, encontra-nos no sacrário do nosso bairro, para mudar a nossa existência quotidiana. A Sua primeira mensagem, no início da pregação, foi: «Completou-se o tempo, e o reino de Deus está próximo. Convertei-vos e acreditai no Evangelho» (Mc 1, 15). E esta coincide com a última: «Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, pois, fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto vos mandei. Eis que eu estou convosco, todos os dias, até o fim do mundo» (Mt 28, 18-20). Hoje a mensagem continua igual: o Papa e o senhor prior falaram disto ontem.

A dificuldade que este tempo, como afinal todos os outros, tem com a Páscoa é que ela pretender tocar no âmago mais central da vida de cada um de nós. Jesus morreu na cruz por mim. São os meus pecados que Ele carrega. E o caminho para a salvação é este: «Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.» (Mt 16, 24). Aquilo que dificulta entender a Páscoa é que ela implica, mais do que irmos ver a cruz d’Ele ao Calvário, andarmos atrás d’Ele com a nossa cruz.

Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas