Na sociedade actual, são muitas as pressões para se dar um enfâse maior à minimização do risco do que à maximização do valor. A questão é que esta distorção pode tornar-se um preço demasiado alto a pagar tanto para a economia, como para a sociedade, como para cada ser humano. Afinal, quantas pessoas responderiam que estão a fazer exactamente aquilo que acham que deveriam estar a fazer?
POR MIGUEL COSTA*

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*Miguel Costa é analista financeiro em Corporate Finance do Banco BIG
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Durante um dos habituais convívios de um chegado círculo de amigos, dei por mim a pensar em como, e em não raras vezes, a sociedade e a economia falham na adequada alocação dos seus recursos humanos, de tal forma que prometi a mim mesmo não deixar de escrever sobre o assunto.

Pertenço a um grupo de jovens assalariados que, depois de mais um dia de trabalho, costuma transformar a sala de estar de um deles no palco das horas pós-laborais que sobram ao típico dia útil. Aquelas horas são, para nós, um dos símbolos vivos da independência que posições em áreas como gestão, direito ou engenharia permitem pagar. Aqueles jantares, filmes, jogos de cartas ou playstation ou simples conversas mais ou menos banais, representam, na pior das hipóteses, uma das recompensas de um esforço e de um estilo de vida para o qual nem sempre é fácil estar se verdadeiramente motivado: afinal, o emprego nem sempre é de sonho, às vezes há trabalho a mais, outras a menos, sendo que as perspectivas já foram mais claras.

Eis, em última análise e quando outros argumentos falham e nos fazem questionar o nosso caminho, uma boa razão para continuar e nos agarrarmos com todo o empenho ao que temos: ficar sem o lugar para nos somarmos aos 40% que se encontram perdidos no desemprego significa voltar para casa dos pais e, além de tantas outras coisas, essa é uma ferida no orgulho que preferimos não provocar.

Nesta vez em concreto, e a meio de um filme de animação galardoado, comentava-se um software de edição de imagem que permite criar todo tipo de objectos 3D, criando formas, cores, texturas e relevos dinâmicos, ao ponto de se poder, por exemplo, pôr um cão de pelo farfalhudo às voltas da própria cauda. Não e fácil, claro, e só ao fim de longas horas de utilização se alcança um tal nível de mestria, mas é mais do que perfeitamente possível.

Lembrei-me imediatamente de um dos amigos que estava no sofá ao lado: durante o liceu e nos últimos anos do secundário, ele fazia-se acompanhar regularmente por um bloco de desenho e lápis e canetas onde dava vida aos personagens de BD com que fantasiava. Com o tempo, claro, e como tantas vezes acontece, acabou por ir largando os cadernos. O que os professores, os pais e a sociedade em geral lhe transmitiam, ainda que inconscientemente, é que era suposto depositar o seu esforço e empenho noutras coisas, porque o monstro dos exames nacionais iria aparecer e ele tinha de estar preparado para o enfrentar. Havia que estar atento e estudar, para ter boas médias, que permitissem ter acesso a boas faculdades, a bons cursos, que garantissem boas perspectivas profissionais.

Se é certo que ele hoje é engenheiro civil e está empregado, também é verdade que o conceito de garantido desapareceu do vocabulário e que entretanto houve um talento que não foi devidamente nutrido. A questão é que quando vêem, ou melhor apanham, os alunos desenhar nas aulas, por vezes os professores, e depois os pais, não têm um espírito que os ponha a olhar para os desenhos com olhos de ver, perceber se ali existe potencial e, nesse caso, pensar em formas efectivas de orientar essa vocação e aproveitá-la da melhor forma possível, encarrilhando-a num rumo de sucesso. Pelo contrário, aqueles e outros desenhos desta vida acabam por ser encarados como distracções e barreiras entre o aluno e o caminho formatado que as pressões da sociedade impõem.

A grande verdade é que se na vida deste meu amigo, como nas de tantas outras pessoas que conheço, tivesse existido alguém com visão estratégica e foco na maximização do potencial do ser humano, ele poderia ser bem mais realizado, bem-sucedido profissionalmente e, consequentemente e sobretudo, mais feliz. Não só foi notória a maneira com que os seus olhos brilharam com a mera imagem de passar um dia a criar e a tirar partido de uma ferramenta que, por força das escolhas que foi fazendo, nunca aprendeu a utilizar, abandonado a sua vertente criativa e artística. Não sabemos onde ele poderia ter chegado, e é certo que não saberemos onde chegará, mas foi certamente um caminho não percorrido, pelo menos não numa idade em que a disponibilidade e tempo para arriscar são muito maiores.

Se é um facto que nem sempre isso acontece, também não é mentira que, por vezes, acaba por ser dado um enfâse maior à minimização do risco do que à maximização do valor. A questão é que esta distorção pode tornar-se um preço demasiado alto a pagar tanto para a economia, como para a sociedade, como para cada ser humano. Afinal, quantas pessoas responderiam que estão a fazer exactamente aquilo que acham que deveriam estar a fazer?

Precisamos de líderes, seja em casa, seja na escola, seja na televisão ou nos jornais. Precisamos de pessoas que tenham a visão e a clarividência para parar para pensar e dizer: “tu és bom nisto” e, não menos importante, “tu gostas disto, portanto faz o que tens a fazer, cumpre as tuas responsabilidades, assegura as tuas boas notas, mas faz também mais isto e aquilo. Inscreve-te num curso de desenho ao fim-de -emana. Faz um workshop deste software. Envia os teus desenhos para concursos. Cria um espaço para publicares os teus trabalhos”.

No fundo… alguém que nos inspire e nos faça ousar, alguém que diga: “explora as tuas capacidades e só assim saberás onde elas te poderão levar”.
Dá uma oportunidade a ti próprio.
Nunca é tarde demais.

Nota: Como em qualquer redacção, são vários os pedidos de publicação de opiniões ou análises recebidos. A reflexão acima publicada, de Miguel Costa, com 25 anos e “membro afortunado” de uma geração com escassez de oportunidades, pareceu-nos um bom exemplo de como, muitas vezes, se sacrificam sonhos em prol de “caminhos formatados pelas pressões sociais”, como escreve o próprio. E foi por isso que o VER decidiu partilhar as palavras deste jovem e que podem servir de inspiração para outros jovens leitores que subscrevem não só a nossa newsletter, como a nossa pretensão de ver o mundo com outros olhos. Consequentemente, é nosso dever partilhar esses olhares.

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