In memoriam desses tempos idos em que o sabão até lavava os peixes e em que uma viagem para o Algarve implicava comer sopa de cozido no Canal Caveira, mesmo que estivéssemos enjoados de morte por vir a vomitar desde a Marateca, aqui vai uma pequena selecção de postais de férias (completamente inventados, que isto de fazer pesquisa já não se usa, feique nius é que está a dar) a retratar temas da actualidade, com valores, éticas e sustentablicenas lá pelo meio, que ouvi dizer que este portal era sobre coisas sérias
POR NUNO OLIVEIRA

Eu ainda sou do tempo em que se podia usar a expressão “ainda sou do tempo” sem parecer um anacronismo ambulante ou, como dizem os ‘mileniais’ (sabem, aquela coisa de empacotar duas ou três gerações numa só e chamá-los de malta que não sabem ao que andam, os tais millennials, mas em português, espero que seja assim que se escreve), venho da “era vintage” era onde era relativamente normal enviar postais de férias, daqueles mesmo em cartão com fotografias manhosas de praias cheias de barraquinhas ou meninas em biquíni aos nossos entes queridos, quer fosse porque tínhamos saudades deles e esta era uma maneira simpática de os ter imaginariamente ao pé de nós.

Eram tempos mais simples, recheados de complicações como: 1) começava por escolher o postal certo para o destinatário em vista, nada de hot babes que fossem agitar o avô e levá-lo às urgências, nem de piadas ordinárias para a mãe que ficou a trabalhar enquanto íamos a banhos com os tios e nunca – nunca! – imagens de praias ‘reais’ cheias de gente ‘real’, demasiada realidade iria ferir as suscetibilidades dos nossos amigos, só fotos de areias virgens com coqueiros e palmeiras e coisas do género; 2) ter de escrever – a caneta! – sem erros e com um mínimo de complexidade gramatical sem qualquer apoio de correccorecto corretores hort ortográficos; 3) ter que descobrir onde fica o #”%”#”! marco do correio e, ter que voltar atrás à papelaria mais próxima porque afinal o %(#%”%! do postal precisa de selo, colar o belo do selo a cuspo e, com um ar derrotado, voltar a procurar o tal marco do correio que parecia que era já ali mas afinal era na rua à esquerda depois do largo à direita … e 4) aguardar pela reação ao postal que ou nunca chegava ou só a sabíamos quando em fase de negação e ressaca (emocional, entenda-se) regressávamos ao aconchego do lar e folheávamos com angústia a folha do calendário do mês de setembro, como quem lê a sinopse de um filme de horror escrita na parte de trás da k7 de VHS num videoclube de bairro.

[quote_center]Hoje temos email, facetime, messenger, whatsapp, skype e até aquela coisa obsoleta de que os nossos filhos já ouviram um dia falar, mas não têm a certeza de que não seja um mito, os SMS[/quote_center]

Mas – tcharammmm – hoje temos email, facetime, messenger, whatsapp, skype e até aquela coisa obsoleta de que os nossos filhos já ouviram um dia falar, mas não têm a certeza de que não seja um mito, os SMS. Por estes dias, faz tanto sentido enviar um postal de férias como esfregar paus secos vigorosamente para fazer uma fogueira e enviar sinais de fumo. Por isso, in memoriam desses tempos idos em que o sabão até lavava os peixes e em que uma viagem para o Algarve implicava comer sopa de cozido no Canal Caveira, mesmo que estivéssemos enjoados de morte por vir a vomitar desde a Marateca, aqui vai uma pequena selecção de postais de férias (completamente inventados, que isto de fazer pesquiza já não se usa, feique niusé que está a dar) a retratar temas da actualidade, com valores, éticas e sustentablicenas lá pelo meio, que ouvi dizer que este portal era sobre coisas sérias. Disfrutem e lemo-nos de volta em setembro.

Postal A

Capa: Paisagem genérica serrana, tanto pode ser a Estrela, como o Caramulo ou o Gerês, é escolher oh freguês.

De: Filha adolescente, tipicamente urbano-tecnológica que alinhou com um grupo de amigos ir acampar à montanha e experimentar ligar-se à natureza, como os japoneses fazem com os banhos de floresta ou lá como é, ela vai pespegando umas fotos no insta com uma média de 14 hashtags por post

Para: Pai dolorosamente urbano-analógico, enfiado numa secretária semi-encoberta de papelada algures num escritório sem ar condicionado na zona histórica de uma baixa citadina indeterminada

Reza assim:

Oi Dad, espero que estejas a gostar tanto deste verão como eu 😉 . Aqui está tudo bem, rapazes e raparigas dormem em tendas separadas como te tinha dito e já sei cozinhar esparguete com atum, usei ervas aromáticas que um amigo trouxe e tudo. Vou levar um saquinho delas para tu experimentares. A Bia diz que não se parecem nada com orégãos, mas lá porque é escoteira, o que é que ela sabe? Estou a <3 <3 <3 andar a descobrir a natureza, mas não era bem o que imaginava. Não encontrei florestas como aquelas dos filmes… 🙁 o que se vê é mais matos queimados que me riscam as pernas de preto 😮 (tens razão, devia ter trazido calções menos curtos, era por isso que me estavas a avisar, já percebi!). As aldeias também não são como imaginava, em vez de casinhas tipo como nos Smurfs estas são feitas de pedras escuras e pelo meio veem-se algumas horríveis cheias de azulejos às cores e não há duas casas iguais. Parece que foram feitas num Minecraft todo ‘bugado’. Amanhã vamos à praia fluvial, que fica mesmo ao pé de umas vaquinhas mega fofas. Aposto que a água vai estar o máximo.

Beijiiiiinhoos (com corações nos ‘i’s)

Postal B

Capa: foto a preto, branco e 50 tons de cinzento, super artística com um daqueles barcos de pesca dos avieiros, algures numa praia esquecida no tempo

De: Mãe com síndrome de ‘ninho-vazio’ porque os filhos preferem ir para a garraiada com os amigos e que decide ir passar férias sozinha pela primeira vez desde que se divorciou

Para: Mãe da Mãe, que sempre a avisou que o (ex-)marido não prestava e que havia de ser ela a ter um homem que lhe levantasse a mão, que haveria de ver com quantos paus se faz uma canoa

Reza assim:

Querida mãe, aqui estamos… apesar da nortada, sabe tão bem passear à beira mar, no meio desta gente toda posso finalmente esconder-me sem que ninguém me impeça de respirar, pensar, parar quando me apetece ou de sentir como me sinto. Vejo as velhinhas vestidas de pesado negro sentadas no paredão e lembram-me de ti. Não te estou a chamar velha! Não te zangues… é porque as linhas carregadas dos seus rostos parecem a escrita das ondas por onde se perderam os seus entes queridos. É curioso pensar em vagas e marés no meio desta calma agitação. Mas não consigo deixar de sentir que, mesmo longe de ti e de todos não me sinto mais sozinha do que nos últimos tempos em que ainda estávamos todos debaixo do mesmo teto a lutar por atenção uns dos outros, entre carreiras e corridas, ora para cá ora para lá, só para ficarmos no mesmo sítio. Lá ao fundo, uma barcaça parece desequilibrar-se nas ondas, mas resiste e persiste. Vou ficar aqui mais algum tempo a ver o que acontece e logo te contarei.

Muitas saudades e obrigado por seres sempre o meu porto de abrigo.

Postal C

Capa: Anúncio de marisqueira em língua estrangeira martelada (‘we have understands’ a anunciar pirezinhos de percebes), algures ali para os lados da costa alentejana

De: jornalista exausta de tanta coisa que está numa de comunicar à ‘old school’ com o filho que foi com a namorada coleccionar selfies em capitais da velha Europa

Para: filho em viagem que só vai ver o postal quando voltar do interrail com a namorada

Reza assim:

Não te assustes, é apenas um postal de férias, daqueles em papel mesmo a sério. Sabes, antigamente no tempo dos dinossauros a malta usava estas cenas para dar notícias uns aos outros durante os meses (ahahaha, meses… ai ai) de férias. Dizíamos que era porque tínhamos saudades, mas, em boa verdade, estas coisas só serviam mesmo para fazer inveja quando íamos a sítios à maneira, para impressionar potenciais engates com a nossa escolha criteriosa de postais artísticos ou para sossegar os pais quando íamos em matilha acampar ou para as colónias de férias. O que se escreve aqui só serve para ler no dia em que se recebe o postal e no dia em que escolhemos quais os que vamos deitar fora depois de meses a fio espetados por imanes foleiros (como os que me estás sempre a oferecer, sinto que vêm aí mais uns quantos) na porta do frigorífico. Enfim, não é muito diferente de pregar no deserto da internet com dezenas de artigos a alertar sobre a nossa crise de valores, o descalabro climático ou a desigualdade económica e outras cenas que me partem a cabeça semana-sim-semana-sim e sobre as quais não recebo grande (nem pequeno) feedback, da mesma maneira que não espero receber nenhum postal de resposta. Ficamo-nos pela troca de memes no face.

Porta-te bem miúdo, e não faças nada que eu não fizesse (pois, tu sabes)

Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence