Em dois dos últimos três anos, 2020 e 2022, a lista dos grandes temas do ano novo, apresentada por esta altura, falhou redondamente o prognóstico, por causa de catástrofes inesperadas que aconteceram pouco depois. Por isso é estranho que alguém ainda esteja a ler uma lista dos temas para 2023. Mas isso mostra que, apesar de todas as catástrofes, não faltam jornalistas atrevidos, comentadores disponíveis e leitores optimistas
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Que perspetivas para 2023? A economia apresenta-se bastante lúgubre no ano que aí vem. A razão disto é a sombra das duas catástrofes que dominaram os últimos três anos e ainda não acabaram: a pandemia COVID-19, declarada oficialmente a 11 de Março de 2020, e a invasão russa da Ucrânia, iniciada a 24 de fevereiro de 2022. O mundo, que estava cheio de problemas há três anos, teve de os descartar para acudir a novas emergências que ninguém podia antecipar. E ainda não conseguiu tempo para retomar esses dramas antigos.
O elemento dominante neste arranque do ano é, evidentemente, a devastação na Ucrânia e as consequências que isso gera. Os principais efeitos, como é habitual, são os menos referidos: os impactos sobre a força motriz do desenvolvimento das últimas três décadas, a globalização. Esta, que já andava muito combalida desde a crise financeira de 2008, levou mais uma machadada com o ataque do início de 2022. Pior ainda, o choque militar gerou um aumento de nervosismo em todas as fissuras infetadas do planeta. Por isso, a generalidade dos imperialistas, nacionalistas e paroquialistas rejubilou com o atrevimento de Putin e a abertura da porta fechada há 75 anos, acusando de ingenuidade os defensores da civilização e abertura.
Pode ser que essas aves agoirentas tenham razão e, nesse caso, o elemento mais decisivo de 2023 será a perda de protagonismo da economia face às questões militares e sectárias. Se assim for, estaremos no início de mais “anos do gafanhoto”, como lhes chamou Churchill em 1936, esses períodos terríveis em que a arrogância e a raiva se sobrepõem ao interesse, e a humanidade se destrói a si própria. Em qualquer caso, mesmo que essa catástrofe não venha, as consequências são evidentes no crescente desvio de recursos da manteiga para os canhões.
Perante estes sinais ominosos, é quase refrescante ver o mundo tão preocupado com a inflação, como se tudo continuasse como dantes, e os elementos económicos ainda fossem decisivos. Mas esta, que é o tema dominante nas análises, levanta alguns problemas bicudos. Primeiro, e antes de mais nada, porque a inflação, uma vez deflagrada, costuma ser difícil de dominar. A causa direta esteve, como se disse, na pandemia e guerra, que gerou um choque nos preços de bens essenciais, dos chips à energia e alimentação. A isto tem de se juntar a estranha conjuntura monetária da última década e meia, que injetou mais liquidez nas economias do que alguém poderia imaginar.
Passada e tempestade da crise financeira de 2008, vivemos um longo e estranho período de taxas de juro, desemprego e inflação muito baixos, algo que ninguém até então julgava possível. No centro desta circunstância estava a inundação de dinheiro nas economias, criada pelos bancos centrais para eliminar os riscos de falência. Agora, perante a elevação de preços, toda essa moeda excedentária dificulta muito a gestão da conjuntura.
A soma destes dois elementos, a resiliência da inflação e o excesso de liquidez, recomenda uma acção rápida e corajosa das autoridades monetárias, que devem subir fortemente os preços do crédito e enxugar com rapidez os montantes exagerados de emissão de moeda. No entanto, do outro lado, está a pressão política dos governos, que já protestam pelos riscos recessivos dessa política monetária contracionista, quando ela ainda mal começou. Aqui surge a primeira grande incógnita do ano: irão os bancos centrais cumprir a sua missão e apertar os cordões à bolsa, mesmo que isso reduza a atividade económica? Ou vão ceder às pressões mediáticas e, para poupar uma recessão, deixar a inflação manter a sua trajetória pegajosa? Esta dúvida traça dois cenários muito diferentes, de aperto imediato ou inflação a médio prazo.
Ao lado deste, existem outros elementos de incerteza, sendo o segundo de natureza social. As populações têm sofrido fortes perturbações nos últimos anos, primeiro com o confinamento, depois com a inflação. Ambos os choques foram fortemente regressivos, afetando mais os extratos mais pobres. Agora, com a inflação a agravar também a vida da classe média, é de esperar um aumento da conflitualidade social, ainda maior se chegarmos à recessão. Os aumentos salariais têm ficado muito abaixo das subidas de preço, verificadas e previstas, o que repercute sobre os trabalhadores a carga da crise. Muitas empresas estão também a sofrer efeitos nas suas margens, porque o choque significa um aumento dos custos de produção. Mas a contestação raramente leva isso em conta, e estas ficam sempre como as más da fita.
Um terceiro elemento ligado aos anteriores é de natureza financeira. Terminou o mundo de juros baixos, mas não acabou a razão que o motivava. Apesar de uma década de meio alívio, muitos governos, famílias e empresas continuam a arrastar uma forte carga de dívida, até porque a pandemia impôs a acumulação de novos créditos. Esses vão agora ter de ser geridos com taxas muito mais altas. Alguns (muitos?) serão insuportáveis. Isso levanta de novo o espectro de uma crise financeira, com falências que, aliás, já se estão a verificar em alguns países em desenvolvimento. Os sistemas financeiros tradicionais parecem em condições muito mais saudáveis que há 15 anos. Mas, por outro lado, eles representam uma fatia bastante menor do total do sector, com o desenvolvimento da fintech e de outros segmentos financeiros heterodoxos.
A isto devem juntar-se outras dificuldades mais estruturais, os tais problemas antigos que tivemos de esquecer em 2020. As perturbações climáticas estão a ser crescentemente sentidas, tal como os desequilíbrios internos de vários países, da China ao Irão. Todos estes elementos acrescentam custos e bloqueios à situação do mundo inteiro. Por outro lado, o nervosismo gerado por todos estes elementos está a trazer para a ribalta, um pouco por todo o lado, forças e partidos extremistas que, não só nada resolvem, mas acrescentam dificuldades próprias com as suas tolices e atitudes aberrantes.
Por estas e outras razões, o ano de 2023 apresenta à partida riscos e ameaças que escurecem fortemente a conjuntura. Mas, por outro lado, ele faz parte da época de ouro da humanidade que estamos a viver há 30 anos, com espantosas novidades tecnológicas e grandes melhorias na vida geral do planeta, sobretudo dos mais pobres. Assim, e apesar dos graves contratempos listados, poderemos continuar este ano o espantoso desenvolvimento desta geração. Isto, claro, se conseguirmos evitar o regresso do monstro da violência, o único que até ofusca os temas económicos.
Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas