Todos conhecem a história da pessoa que perde à noite as chaves no meio da rua, mas vai procurá-las debaixo do candeeiro, porque só aí tem luz. Este é o grande problema do Plano de Recuperação e Resiliência, que a União Europeia propôs em 2020, e o Governo português acaba de apresentar na versão nacional. Para compreender a questão é preciso descrever a estranha situação gerada pela pandemia
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES

Portugal, a Europa e o mundo sofreram em 2020 e 2021 a maior crise económica dos últimos 75 anos. O elemento mais estranho é, porém, a sua origem. O colapso deveu-se, não à destruição de capacidade produtiva, subida de custos de recursos ou falta de acesso ao capital, como todas as crises do século passado, mas à simples interrupção de contactos entre os agentes económicos, para evitar contágios. As famílias e as empresas continuam iguais ao que sempre foram, mas os mercados não funcionam.

O grande perigo económico desta circunstância é a espiral depressiva. Sem vender os seus produtos, as empresas vêm-se obrigadas a despedir os trabalhadores, os quais, sem rendimentos, deixam de consumir, o que reduz de novo as vendas das empresas, gerando novos despedimentos, que reduzem mais uma vez os rendimentos e as vendas das empresas.

Sabemos há muito que esta infeção é fácil de tratar. O Estado deve apoiar os rendimentos das pessoas, subsidiando os empregos, apoiando o consumo, para cortar o contágio da depressão. Se quer ter sucesso, tem de o fazer com rapidez, intensidade e abrangência. Foi isso que, melhor ou pior, todos os países fizeram perante a devastação dos seus aparelhos produtivos.

A União Europeia, porém, optou por um caminho insólito. Não deu praticamente nenhuma ajuda durante os meses de confinamento mas, após hesitação inicial, em Julho de 2020 apostou fortemente naquilo que se chamou «Plano de Recuperação para a Europa». Para isso montou aquilo que orgulhosamente anunciou como «o maior pacote de estímulo de sempre», incluindo um fundo com 672 mil milhões de euros.

Assim, assumidamente, a Europa não tratou da crise, mas da recuperação; algo que ninguém ainda sabe se, e quando, acontecerá. Isso significou que durante os longos meses de 2020 e 2021, em que os países, como as populações, necessitavam de liquidez para acudir à falta de receitas, as autoridades comunitárias pouco ou nada desembolsaram. Aliás, em 2020, Portugal recebeu de dinheiros europeus, em termos líquidos, quase metade (menos 45%) do que recebera em 2019. Isso significou que toda a ação de combate à crise se centrou nos Governos nacionais.

Em termos comunitários, mais uma vez, a única ajuda veio do Banco Central Europeu que, com enormes injeções de dinheiro no sistema financeiro da União, manteve as taxas de juro baixas. Os europeus, entretanto viviam da promessa da enxurrada de fundos que haveria de vir, quando começasse a tal recuperação.

O pequeno detalhe decisivo é que a recuperação da pandemia não precisa de ajuda. Como a causa da crise é o bloqueio dos mercados, assim que estes voltarem à normalidade, com o fim de contágios e quarentenas, tudo retomará o crescimento. É verdade que persistem algumas sequelas, sobretudo o enorme peso da dívida que Estados, empresas e famílias tiveram de incorrer durante os meses de emergência. Mas não é a esse aspeto, o único que realmente competiria à política de recuperação, que o programa europeu se dirige. Os temas do tal fundo gigantesco são finalidades políticas muito meritórias, mas totalmente desligadas das causas e consequências da pandemia. Daí a busca das chaves ser no sítio onde elas não caíram.

Aliás, suprema ironia, os propósitos mais centrais, a descarbonização e a digitalização, são aspetos que, em vez de serem exigidos pela crise, foram, pelo contrário, favorecidos pelo vírus SARS-Cov-2. De facto, no meio da torrente de desgraças de 2020, duas das poucas vantagens do confinamento resultaram, precisamente, da redução das emissões poluentes e da promoção da transição digital. Ou seja, o plano europeu, em vez de colmatar os efeitos da epidemia, esforça-se por colaborar com ela.

Se a Europa pretendesse criar um verdadeiro programa de recuperação da pandemia, que orientação devia seguir? Deveria fazer algo que facilitasse a vida aos pobres e às empresas dos setores de contacto físico, as grandes vítimas desta terrível crise. Isso conseguia-se através de redução de impostos e burocracia, crédito bonificados às classes e sectores mais atingidos, apoios a fundo perdido para combater a miséria e pagar dívidas, capitalização da banca e medidas afins. Mas estas abordagens não rendem notícias ou votos. Por isso os dirigentes da Europa e de Portugal apostaram nas linhas que conhecem bem: mais projetos, mais edifícios, mais equipamentos, mais burocracia. Essa é a via que os fundos estruturais seguem há décadas. Não é necessariamente uma via má; mas é preciso dizer que o vírus está totalmente inocente da opção.

Que dizer do Plano de Recuperação e Resiliência que o Governo colocou em discussão pública a 15 de Fevereiro de 2021? Ele inclui uma despesa total de investimento de 16,6 mil milhões de euros, 13,9 dos quais em subvenções, a totalidade do que nos tinha sido concedido, e 2,7 em empréstimos, pequena parte dos 14,2 mil milhões que nos competiam. Isto quer dizer que, no total, poderíamos receber 69% mais do que recebemos. Esta opção de recusar a grande maioria dos empréstimos é curiosa e merecia uma análise, que este local não permite.

O plano está dividido em três «dimensões estruturantes»: Resiliência (66% do total), Transição Climática (19%) e Transição Digital (15%). Estas três dividem-se em 19 componentes, subdivididas em 77 investimentos. Podemos olhar para este enorme elenco de várias formas.

É possível dizer que a grande maioria da dimensão Resiliência vai para duas grandes fatias: Investimento em capital físico e humano (C5 e C6, 37%) e Habitação e Infraestruturas (C2 e C7, 33%). O resto, menos de um terço do total, é distribuído por Saúde (C1, 13%), Recursos florestais e hídricos (C8 e C9, 10%) e, incompreensivelmente neste enquadramento, o Apoio Social (C3 e C4) ocupa menos de 8% da dimensão e 5% do total do Plano. Na dimensão climática a prioridade são os Transportes (C10, 42%), seguida da Produção (C11 e C12, 27%), Habitação (C13, 19%) e Energia (C14, 12%). A terceira dimensão, a digital, vai sobretudo para o Estado (C17, C18 e C19, 52%), seguida das empresas (C16, 26%) e escolas (C15, 22%).

Isto são os propósitos. Mas o que significará realmente para a economia este gigantesco investimento? O plano está muitas vezes escrito em código, ocultando aquilo que se irá realmente fazer. Algumas das rubricas enganam bastante. Por exemplo, boa parte do já diminuto apoio social vai para a edificação de instalações, que realmente não chegará às mãos dos pobres. A maioria da chamada «mobilidade sustentável» significa a expansão das redes do metropolitano; mais obras, em si bastante poluidoras no curto prazo. Não é, pois, fácil entender aquilo em que cada um dos investimentos se traduzirá na prática.

Num esboço tentativo de classificar as despesas, parece que bastante mais de um terço do dinheiro, 36%, irá para o sector da Construção em várias formas, pelo que esta atividade será, mais uma vez, a grande vencedora dos fundos europeus. Terminaremos esta alegada «recuperação», com um empolado sector imobiliário, como aconteceu há 30 anos.

A segunda tranche em dimensão, com 14% do total, pode ser classificada como financeira, num esforço de capitalização das empresas. Mas aí, em vez de colmatar as dificuldades das instituições existentes, incluindo a sua, o Governo opta por criar um novo banco público, o Banco Português de Fomento, capitalizado em 1250 milhões de euros pelo plano. Parece que havia falta de instituições financeiras com ligações à política…

As fatias seguintes dirigem-se à compra de equipamentos variados (de saúde, transporte, energia, etc.) e à área digital, com cerca de 10% do total cada uma, seguidas da formação e investigação que, acumuladas, contam menos de 9%. A renovação da Administração Pública absorve 8% do total, restando mais três pequenas secções que podemos definir como Natureza (7,5%), Saúde (4.5%) e o verdadeiro Apoio Social, que acaba por contar menos de 2%.

Será esta uma real ajuda para o relançamento do desenvolvimento nacional? A resposta não é fácil, até porque aquilo em que se diz que o dinheiro será gasto é, por vezes, muito diferente da realidade, a qual só se verá nos próximos anos. Temos de fatorizar ainda a corrupção, compadrio, desvio de incentivos e desperdício de recursos que esta enxurrada gerará. Mas baseando-nos na experiência histórica, não parece ser aqui que vamos encontrar as chaves do progresso sustentado.

Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas