Na verdade, poucos serão aqueles que desejam verdadeiramente saber a resposta a esta e a outras perguntas inconvenientes que continuam a ensombrar o campeonato Mundial de Futebol no Qatar. Apesar de sinónimo de complexos esquemas de corrupção, de milhares de mortes e de incontáveis violações de direitos humanos, a 21 de Novembro próximo, nos estádios ou nos sofás, ninguém se lembrará dos jogos sujos que antecederam a prova-rainha do futebol. Ao invés, ouvir-se-ão gritos entusiásticos que abafarão o silêncio dos que sofreram e continuam a sofrer por sentirem na pele o abuso de muitos dos mais básicos direitos que lhes têm sido negados. E você, também vai ignorar este texto?
POR HELENA OLIVEIRA

A dois de Dezembro de 2010, o mundo ficou a saber que o Qatar seria, em 2022, o país anfitrião da prova-rainha do futebol. E, 12 anos passados, continua a ser impossível aferir quantos actos de corrupção e seus congéneres deram origem ao facto de o Campeonato Mundial de Futebol ter lugar num país com temperaturas próximas dos 50 graus – daí os jogos serem e, ao contrário do que sempre sucedeu, no final do ano – e sem qualquer cultura futebolística.

Impossível de contabilizar é também a muita tinta que já correu sobre as inúmeras polémicas que rodeiam uma das provas mais importantes do mundo do desporto: corrupção, suborno, lavagem de dinheiro e “trabalho escravo” como muitas associações dos direitos humanos lhe têm vindo a chamar há mais de uma década.

Assim e dadas as condições desumanas dos mais de dois milhões de trabalhadores que ergueram, do nada e com verdadeiro suor e lágrimas – e sangue também – os estádios para a competição e outras infra-estruturas para acolher os adeptos, e apesar de estarmos a poucos meses do início da prova – que se realizará de 21 de Novembro a 18 de Dezembro – o tema da violação de direitos humanos continua longe de ser esquecido.

Ao longo de todo este período, a FIFA realizou várias investigações não só sobre as acusações de corrupção e afins, mas também, e fortemente pressionada por várias organizações, em particular pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre os abusos dos direitos humanos dos trabalhadores migrantes. O resultado, tal como acontece em muitos jogos, nem sempre é justo e o Qatar tem vindo sempre a ser ilibado de qualquer tipo de culpa.

O tema voltou a estar em destaque a 31 de Março último, no 72º Congresso Anual da FIFA, que teve lugar em Doha, a capital do país anfitrião, apesar de estar completamente fora do “guião” que devia ter sido seguido na cerimónia. No evento, a presidente da Federação Norueguesa de Futebol, Lise Klaveness, proferiu um discurso onde mais uma vez a decisão de permitir que o Qatar acolhesse o Campeonato Mundial foi classificada como “inaceitável” e exigindo que a FIFA fizesse mais para defender os direitos humanos, não só no âmbito das condições de trabalho dos migrantes, mas também dos direitos das mulheres (que deles não gozam) e da homossexualidade, proibida no país e que pode resultar numa pena de prisão efectiva de três anos.

Os comentários de Klaveness ocorreram apenas um dia depois da Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol, conhecida pela sigla FIFPro, em conjunto com a Building and Wood Workers’ International (BWI), ter publicado uma carta aberta que criticava o Qatar pelas más condições de trabalho dos migrantes ao longo destes longos 12 anos, apesar de ter observado alguns “sinais encorajadores de progresso”. Um destes sinais foi a abolição do Kafala, um sistema de trabalho considerado pela OIT como análogo à escravidão. O Kafala (que em árabe significa sistema de patrocínio), exige que todos os trabalhadores não qualificados tenham um patrocinador no país, geralmente o seu empregador, que é responsável pelo seu visto e estatuto legal. Ou seja, este sistema “amarra” o trabalhador ao seu “patrocinador” – o kafeel – e este pode, em muito casos, fazer dele o que entender.

“Organizámos o melhor Campeonato do Mundo de sempre”, afirma o presidente da FIFA

Há muito que este sistema tem vindo a ser criticado por organizações de direitos humanos, na medida em que abre caminho a oportunidades fáceis para a exploração dos trabalhadores, com mais de dois milhões de migrantes, no caso do Qatar, subjugados às suas regras.

Uma vez que muitos empregadores confiscam os seus passaportes ficando com campo aberto para a efectivação de abusos de ordem variada e sabendo que são muito raras as hipóteses de repercussões legais, os trabalhadores passam a “pertencer” ao kafeel que tem as suas vidas nas mãos, não lhes permitindo mudar de trabalho ou sair do país sem a sua autorização, o que facilita o aprisionamento dos migrantes num ciclo de abusos inaceitáveis. Uma outra prática comum diz respeito ao facto de os trabalhadores migrantes não poderem, eles próprios, solicitar ou renovar as suas autorizações de residência, na medida em que esta é uma das responsabilidades do kafeel. No entanto, se este último não o fizer, o que tem vindo a acontecer inúmeras vezes, é o trabalhador que enfrenta a punição.

Há muito praticado para monitorizar os trabalhadores migrantes, que trabalham principalmente nos sectores da construção e doméstico nos estados membros do Conselho de Cooperação do Golfo e em alguns países vizinhos, este sistema voltou a ser notícia exactamente em 2010, ano em que teve início a construção dos estádios para o Mundial 2022. Apesar de todas as críticas, só em 2020 é que o país, e com uma enorme pressão da OIT, decidiu terminar com o Kafala. Ou mais ou menos.

Apesar da carta aberta da FIFPro saudar a recente introdução de um salário mínimo e mecanismos legais para proteger os direitos laborais no Qatar, de acordo com a mesma organização os trabalhadores continuam a ser sujeitos a práticas abusivas.

Empregadores sem escrúpulos opõem-se às reformas, não as cumprindo e não sendo responsabilizados por isso, a par de outros factores que contribuem para a persistência das violações dos direitos humanos. Não sendo directamente abordados pelas recentes alterações legais no domínio laboral do Qatar, estes incluem os elevados níveis de endividamento dos trabalhadores causados por práticas de recrutamento ilegais e antiéticas, o pagamento tardio ou mesmo inexistente dos salários, as barreiras à obtenção de justiça quando os direitos são violados, a proibição de sindicatos e o não cumprimento das leis laborais sem penalização dos empregadores, o que perpetua as situações abusivas.

Os trabalhadores nas posições mais vulneráveis de países como a Índia, Bangladeche, Nepal, Filipinas, Paquistão e alguns países africanos continuam a recear retaliações se denunciarem a exploração através de salários não pagos ou de horas excessivas de trabalho. São muitos os relatos de trabalhadores obrigados a trabalhar 20 horas por dia, com intervalos mínimos, e sem água e comida suficiente. Ou seja, aqueles que escaparam à pobreza no seu país de origem receiam perder o seu emprego e os seus salários, continuando a enfrentar a ameaça da exploração e de condições de trabalho inseguras. Adicionalmente, ninguém sabe o que vai acontecer quando o Mundial terminar.

Na sua intervenção “inesperada” no Congress Anual da FIFA, Klaveness relembrou ainda o artigo publicado pelo jornal The Guardian o ano passado, que denunciava a morte de 6500 trabalhadores migrantes ao longo dos 10 anos que se seguiram ao Qatar ter ganho a organização do torneio (simbolizados pelas 6500 bolas vazias que ilustram este artigo), a maioria dos quais devido a condições laborais desumanas – como trabalhar demasiadas horas em ambiente de calor extremo – a par de alojamentos sem o mínimo de dignidade, pouca comida e ausência total de cuidados de saúde.

Na altura, o relatório foi “categoricamente” negado pelo chefe executivo da organização do torneio, Nasser Al Khater e, em resposta a Klaveness e no Congresso em causa, o Secretário-Geral da SC – o comité responsável pela coordenação do Mundial com a FIFA, Hassan Al Thawadi sublinhou que o seu país tinha “(…)passado 12 anos de trabalho contínuo dedicado à realização de um torneio que deixa legados sociais, humanos, económicos e ambientais verdadeiramente transformadores”. Já o presidente da FIFA, Gianni Infantino, afirmou que o Qatar tinha feito um trabalho “exemplar” no que diz respeito a mudanças em questões de direitos humanos, acrescentando que as reformas da legislação laboral no país tinham sido “incríveis”. Infantino acrescentou ainda que “a única forma de provocar mudanças positivas é “através do envolvimento e do diálogo”, e que no Qatar, “organizamos o melhor Campeonato do Mundo de sempre”.

A que custo Infantino não disse, mas se atentarmos a uma panóplia de dados, mesmo que muitos deles sejam contraditórios, é certo, não é difícil encontrar os golos metidos na própria baliza por parte do Qatar em matérias de direitos humanos.

Qatar é já campeão de cartões vermelhos

No dia do sorteio da fase de grupos do Campeonato do Mundo, a sede da FIFA em Zurique, “recebeu” 6500 bolas, inicialmente esvaziadas e depois enchidas com areia, as quais foram despejadas à porta das instalações do organismo que gere o futebol mundial. Esta acção de protesto levada a cabo pelo artista alemão Volker-Johannes Trieb, em conjunto com várias associações dedicadas aos direitos dos trabalhadores corresponde ao número de mortes que, há um ano, e como já mencionado, foram reportadas pelo The Guardian.

Os resultados foram compilados a partir de fontes governamentais dos países de origem dos trabalhadores migrantes da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladeche e Sri Lanka que, desde Dezembro de 2010, iniciaram a construção dos oito estádios e outras infra-estruturas que estão já de pé e praticamente prontas para receberem as equipas e o público em Novembro próximo. Este tem sido o número mais falado de mortes de migrantes que, devido a péssimas condições de trabalho, perderam as suas vidas em prol da “colocação de relva em cima da lama” que caracterizava uma boa parte da paisagem do Qatar há mais de uma década. No entanto, e como alertava também o mesmo artigo, a quantidade total de mortes é significativamente mais elevada, uma vez que estes números não incluem os dados de vários países que enviaram muitos trabalhadores para o Qatar, incluindo as Filipinas e o Quénia.

Segundo uma segunda investigação do The Guardian que se baseou em dados obtidos de fontes oficiais nepaleses e indianos, a causa de morte de 676 de pelo menos 1.025 nepaleses entre 2012 e 2017 e 1.345 de 1.678 indianos que morreram no Qatar entre 2012 e Agosto de 2018 foi atribuída a “causas naturais”. Utilizando dados retirados de certificados de óbito emitidos no Qatar, as causas listadas incluíam paragem cardíaca, ataque cardíaco, insuficiência respiratória, e “doença”, termos que obscurecem a causa subjacente das mortes e tornam impossível determinar se as mesmas podem estar directamente relacionadas com condições particulares de trabalho, de que é exemplo o stress térmico.

As mortes ocorridas nos últimos meses de 2020 também não fazem parte desta contagem. Adicionalmente, uma pesquisa publicada no Cardiology Journal em Julho de 2019 por um grupo de especialistas climáticos e cardiologistas explorou a relação entre a morte de mais de 1300 trabalhadores nepaleses entre 2009 e 2017 e a exposição ao calor, tendo encontrado uma forte correlação entre o stress térmico e aqueles que morreram de problemas cardiovasculares no Qatar.

Se os cálculos efectivos do número de trabalhadores que perderam as suas vidas ao serviço do Qatar ao longo dos últimos 12 anos é muito difícil, se não mesmo impossível, mais complexo é ainda saber quantas situações de violações de direitos humanos têm vindo a sofrer os migrantes.

Por exemplo, e no dia do sorteio para o Mundial, no passado dia 1 de Abril, o Business & Human Rights Resource Centre, uma organização internacional sem fins lucrativos dedicada ao avanço dos direitos humanos nos locais de trabalho e que rastreia mais de 10 mil em todo o mundo, ajudando os mais vulneráveis, divulgou as estimativas feitas por um grupo de activistas no que respeita ao número de trabalhadores que sofreram violações dos seus direitos na construção das infra-estruturas para o Mundial.

E mesmo que o Qatar tenha garantido que normais laborais de excelência (?) tenham sido aplicadas aos trabalhadores migrantes, não só aos que trabalharam na construção dos sete estádios, mas também no novo sistema de metro, hotéis, estradas e aeroportos, o grupo activista em causa afirma ter registados 211 casos de abusos distintos que afectaram 24 mil trabalhadores.

O Business & Human Rights Center tem vindo a acompanhar as violações dos direitos humanos no Qatar desde 2016. A organização tem vindo a rastrear casos de abusos em sete dos oito estádios do torneio, com a grande maioria dos mesmos a estarem relacionados com o não-pagamento de salários – o que, e como consequência, tem efeitos negativos em termos de alimentação, alojamento e saúde -, trabalho forçado, ausência de assistência em caso de doença e enormes falhas na segurança laboral responsáveis por ferimentos de gravidade diversa e, como sabemos, também pelas mortes. A liberdade de expressão e a liberdade de circulação dos migrantes foram igualmente restringidas, diz a organização, sendo que os trabalhadores mais penalizados são provenientes, na sua maioria, do Sul da Ásia e da África Oriental.

Por último, e pouco noticiado, é o facto de a esmagadora maioria dos migrantes ser obrigada a pagar para ter trabalho, endividando-se e continuando à mercê de “recrutadores” sem escrúpulos. Como revelou o The Guardian a 31 de Março último, “os trabalhadores migrantes de baixos salários foram forçados a pagar milhares de milhões de dólares em taxas de recrutamento para garantir os seus empregos no Qatar, nação anfitriã do Campeonato do Mundo, durante a última década”.

Os números, que foram calculados pelo jornal britânico e corroborados por vários grupos de direitos laborais, constituem uma estimativa baseada na prevalência e no custo das taxas de recrutamento e despesas relacionadas relatadas por numerosos grupos de direitos humanos e peritos laborais entre 2014 e 2022.

Apesar de esta prática assumir diferentes formas e ser proibida no Qatar, é frequente a existência de empresas, corretores e agentes de recrutamento em países de envio de mão-de-obra que obrigam os trabalhadores a pagar pelo seu próprio recrutamento. Os honorários são pagos aos agentes nos países de origem dos trabalhadores antes da partida.

Desesperados por não encontrarem trabalho nos seus próprios países, os migrantes aceitam esta cobrança, à custa da contracção de empréstimos com juros elevados ou da venda de terras para pagar as taxas, deixando-os vulneráveis à servidão por dívidas – uma forma de escravatura moderna – uma vez que são incapazes de deixar os seus empregos até que a dívida tenha sido paga.

A contagem decrescente para o Mundial 2022 já começou e no Qatar erguem-se, imponentes, os estádios, os hotéis de luxo, as novas vias ladeadas de palmeiras, em que tudo parece brilhar e apelar à vinda dos que amam o futebol. Quando a prova tiver inicio, ninguém se lembrará de como este milagre de construção e transformação aconteceu. E rapidamente se esquecerá também quantas vidas se perderam, quantas pessoas se sentiram violadas nos seus direitos e o que delas vai ser no futuro.

Afinal, e como em todos os jogos, o que importa é o resultado final.


David Beckam: o embaixador principescamente pago do Mundial

O ex-capitão da selecção inglesa tem sido visita frequente no Qatar. E tem razões para isso. O antigo jogador assinou um contrato no valor de 17,7 milhões de euros por ano, e ao longo da próxima década, para ser a “cara” do Mundial.

Reconhecido por trabalhar com a UNICEF e ser defensor de várias causas humanitárias, o agora embaixador do Mundial 2022 parece ter fechado os olhos à corrupção e às várias violações dos direitos humanos que transformaram a prova-rainha do futebol num jogo completamente sujo desde o seu início.

Considerado um “hipócrita” por muitas organizações de defesa dos direitos humanos, bem como por várias personalidades ligadas ao futebol, Beckam prometeu estar atento ao “desenvolvimento” das leis laborais no Qatar, bem como às violações de outros direitos que grassam no país.

E se há quem afirme que este contrato milionário poderá ser prejudicial para a sua reputação e também para a “marca Beckam”, a lenda do futebol inglês não parece estar minimamente preocupada. Afinal, e enquanto uma das figuras desportivas mais populares do mundo, pelo menos nos próximos dez anos tem um belo salário assegurado, de valor bem diferente dos muitos migrantes contratados por cerca de 200 euros mensais.

Boa jogada, Beckam!


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