POR HELENA OLIVEIRA
Todos os anos, 150 milhões de quilates de diamantes são extraídos da Terra. A indústria há muito que é associada aos emaranhados caminhos dos diamantes de sangue, à guerra, à exploração e ao seu severo impacto ambiental. Mas e mesmo assim, os diamantes continuam a ser um dos produtos de luxo mais procurados do mundo, com um valor estimado de 80 mil milhões de dólares em 2016, de acordo com a brilhante De Beers.
A Human Rights Watch publicou, em meados do passado mês de Fevereiro, o relatório The Hidden Cost of Jewelry: Human Rights in Supply Chains and the Responsibility of Jewelry Companies” sobre a indústria das jóias e dos relógios (de luxo), no qual descrevia as condições abusivas mediante as quais os minerais e metais preciosos são extraídos do ambiente. Trabalho infantil protagonizado por crianças vítimas de acidentes graves, em alguns casos provocando-lhes a morte, comunidades seriamente afectadas em termos de saúde devido à poluição das águas com químicos tóxicos provenientes das minas de diamantes, desastres ambientais de proporções significativas, já para não falar de grupos armados abusivos e perigosos que enriquecem através desta prática, fazem parte dos resultados apurados relativos a 13 grandes marcas de joalharia e relógios que, colectivamente, geram mais de 30 mil milhões de dólares de receitas anuais (cerca de 10% das vendas totais globais deste tipo de produtos). Mas e pesar dos resultados ficarem muito aquém do desejável, alguns passos estão a ser dados no sentido de minorar os prejuízos ambientais e o impacto nos direitos humanos por estas empresas, com a Tiffany and Co. a ser a melhor classificada e a Bulgari, a Cartier, a Pandora e a Signet a assinalarem uma performance “moderada”.
No relatório “Deeper Luxury”, publicado em Janeiro deste ano pela WWF do Reino Unido e que analisa a performance ESG (ambiental, social e de governança) dos maiores conglomerados de produtos de luxo, o máximo de pontuação alcançado, entre A (excelente) e F (péssimo), foi um C+. Dos 10 sumptuosos grupos de luxo, apenas a Hermès, a L’Oréal e a LVMH atingiram esta nota sofrível.
Marcas icónicas como a Chanel, a Dior, a Prada ou a Cartier influenciam cada vez mais os comportamentos de milhares de milhões de pessoas, com lucros resplandecentes para as celebridades que as publicitam, as próprias agências de publicidade, os proprietários dos media e, é claro, as respectivas grandes empresas que as comercializam.
O mercado dos bens de luxo está a expandir-se muito rapidamente, em particular nas economias com classes médias florescentes e com os países asiáticos a marcarem o mais rápido dos ritmos para a sua aquisição. Estima-se que o mercado de luxo na China se torne no maior do mundo até 2024; em Tóquio, no Japão, 94% das mulheres na casa dos vinte anos têm nos seus armários malas Louis Vuiton e Hong Kong alberga actualmente mais lojas Gucci e Hermès do que Nova Iorque ou Paris.
Entre o esplendor e a miséria, as marcas de luxo estão a acusar uma rápida expansão nas sociedades que albergam pessoas muito ricas e pessoas muito pobres. O consumo deste tipo de produtos é já encarado em muitos locais como uma séria ameaça à coesão social, com as autoridades chinesas de Beijing, por exemplo, a banirem a utilização de cartazes e outdoors que publicitem este tipo de bens e serviços.
Por outro lado e como já brevemente aflorado, multiplicam-se os relatórios e estudos que acusam as diferentes marcas de luxo de não cumprirem com os mínimos éticos específicos de cada uma das indústrias em causa, com abuso de direitos humanos, trabalho escravo, degradação ambiental em frentes diversas e ausência de qualquer tipo de responsabilidade pelas comunidades que, na maior parte dos casos, estão no centro da procura desenfreada de materiais que farão as delícias dos mais afortunados.
Estas são as más notícias. Mas nem tudo é sangue, suor e lágrimas e, gradualmente, começa-se a assistir a uma mudança para melhor – se bem que ainda insuficiente – por parte dos fabricantes de produtos de luxo e, mais significativa ainda é a tentativa, por parte de várias start-ups de, através de técnicas inovadoras, produzirem bens tão diferentes como diamantes, seda ou couro “em laboratório”, os quais não ficam de todo aquém da “qualidade” que dita o preço e a ostentação de tais preciosidades.
Adicionalmente, os próprios consumidores estão muito mais atentos à proveniência e aos “bastidores” dos produtos de luxo que adquirem. Pelo menos a geração Millennial, como revela um inquérito publicado em 2017 pelo The Statistics Portal: quando questionados se asseguram que determinada marca de luxo é ética e sustentável antes de a adquirirem, 30,7% dos respondentes afirmaram que “sempre”e 41,3% “às vezes”. A mesma tendência está a ser acompanhada pelo Luxury Institute, em cujo relatório anual é sublinhado que de um universo de 950 americanos com altos rendimentos, 57% admitiram estar dispostos a pagar preços mais elevados por uma marca que seja reconhecida por boas práticas de responsabilidade social e 70% afirmaram procurar marcas com registos ambientais superiores.
Assim e a juntar aos avanços tecnológicos e a inovadores modelos de negócio mais sustentáveis, a evolução do mercado de produtos de luxo tem no seu centro uma mudança significativa nos valores, atitudes, prioridades e expectativas dos próprios consumidores. Que ainda não é suficiente para ir contra os gigantes tradicionais deste apetitoso mercado, mas que já faz uma ligeira mossa nos seus chorudos lucros.
Reproduzir a natureza em laboratório
O desenvolvimento de alternativas à produção e fabrico de bens de luxo com vista ao cumprimento de padrões éticos e ambientais está no centro do negócio de várias start-ups e com resultados promissores, a par de uma boa ajuda de celebridades que, com a sua influência mediática, contribuem para a boa publicidade às mesmas.
É o caso da Diamond Foundry, uma tecnológica de Silicon Valley apadrinhada pelo conhecido actor Leonardo DiCaprio [protagonista do aclamado filme Blood Diamond], a qual tem “uma fundição que recria a forma como a Terra ‘cria’ um diamante” e com zero emissões de carbono. Apostando numa abordagem inovadora que permite “cultivar” diamantes em laboratório através de uma técnica conhecida como “deposição química em fase de vapor”, os investigadores desta start-up passaram os últimos anos a desenvolver este novo processo de fabrico que, em termos muito leigos, começa por uma “fatia muito fina de diamante natural enquanto substrato, aumentando de seguida a dimensão do diamante original com a adição de mais e mais camadas de átomos de carbono”, como explica o The New York Times.
Marin Roscheisen, líder da equipa de engenheiros e cientistas desta tecnológica que começou por produzir painéis solares – e que foi colega na Universidade de Stanford dos fundadores da Google Sergey Brin e Larry Page – afirma que o objectivo da Foundry Diamonds é abrir brechas no controlo da indústria tradicional de diamantes. E é exactamente isso que está a fazer com o mercado online que criou no qual oferece jóias com diamantes desenhados por designers de joalharia reconhecidos, a maioria deles associados à Ethical Metalsmiths, uma organização que encoraja boas práticas éticas e ambientais entre os fabricantes de jóias.
Como não há bela sem senão e apesar da qualidade dos diamantes produzidos em laboratório ser muito similar aos produzidos pela natureza, a indústria tradicional está, por seu turno, a investir dezenas de milhões de dólares para desenvolver tecnologia que possa identificar estas “pedras falsas”, como é o caso da De Beers. A verdade é que o número de empresas que produz diamantes sintéticos está a aumentar significativamente e, mesmo que não seja fácil convencer os seus mais tradicionais e endinheirados consumidores a comprar este tipo de joalharia “inferior”, o conceito está a ser abraçado por clientes mais jovens.
No sector da moda de luxo as alternativas éticas são ainda mais visíveis. A estilista Stella McCartney, conhecida por nunca ter utilizado couro, peles ou penas de animais nas suas criações de alta-costura – e muito antes de a sustentabilidade estar na moda – anunciou recentemente uma parceria com a californiana Bolt Threads. Depois de estudar, ao longo de vários anos, a seda produzida pelas aranhas para compreender a relação existente entre o seu ADN e as características únicas das fibras que estas conseguem produzir, actualmente, e sem utilizar aracnídeos, a tecnologia desenvolvida em laboratório pela Bolt Threads permite a produção de fibras sintéticas exactamente com as mesmas características da seda natural criada pelas aranhas ou pelos bicho-da-seda. E, ao contrário de outras fibras sintéticas, como o nylon ou o poliéster, que derivam de petroquímicos altamente poluentes, estas novas fibras criadas em laboratório não só são 100% sustentáveis, como também biodegradáveis.
Querendo ir ainda mais longe, a Bolt Threads anunciou uma outra parceria com a Mountain Meadow Wool Mill, uma conhecida fábrica de fiação americana, misturando estas novas fibras de seda com lã, o que deu origem a uma nova unidade de produção que já produz 10 mil toneladas deste material anualmente. O que ainda é muito pouco em termos de capacidade de produção não deixa de ser um promissor início para uma nova indústria fundada em valores éticos e sustentáveis.
Os mesmos princípios estão igualmente a ser desenvolvidos por um sector em crescimento acelerado que combina a biologia, a tecnologia e a moda. Como escreve o The Guardian a propósito da Modern Meadow, uma biofábrica que cria couro a partir da produção de colagénio originário de fermento geneticamente modificado. Esta (segunda) empresa de biotecnologia foi pioneira, em 2007, e sob a denominação de Organovo, na “bio-impressão” de tecidos humanos para utilização médica. Em 2011, o seu fundador, Andras Forgac começou a receber pedidos de empresas de produtos de couro, que lhe diziam: “se conseguem criar tecidos humanos, já pensaram em tentar produzir couro?”. Forgac considerou a oportunidade muito interessante, nomeadamente porque o couro, enquanto matéria-prima, constitui um apetitoso mercado avaliado em 100 mil milhões de dólares. E, apesar de ainda não estar a ser comercializado, a empresa espera apresentar a sua gama completa de couro biofabricado – baptizada de Noa – ainda este ano, o que poderá representar o início do fim da poluição e abusos dos direitos dos animais associados à indústria do curtimento.
Estes são apenas alguns exemplos dos esforços que a indústria dos produtos de luxo está a levar cabo para responder às pressões crescentes dos consumidores que, sem quererem abrir mão da sumptuosidade que os seduz, estão também de olhos mais abertos a alternativas que possam dotar o mercado em causa de padrões mais éticos. Mas muito há ainda para e por fazer. De qualquer das formas, a boa notícia, entre as muito más, é que se vislumbra realmente uma alteração positiva de comportamentos nos amantes da opulência, apesar de a indústria tradicional continuar a pautar-se pelos lucros astronómicos e a considerar a ética um luxo para o qual não deseja contribuir.
Nova definição de luxo precisa-se
Apesar dos muitos apelos para mais ética e sustentabilidade em todo o sector empresarial, as marcas de luxo têm sido particularmente lentas a reconhecer as suas responsabilidades e oportunidades. Os cenários acima descritos, entre as más estatísticas e as técnicas inovadoras e promissoras, oferecem um quadro confuso no que ao futuro deste mercado diz respeito.
O co-autor do relatório “Deeper Luxury”, Anthony Kleanthous afirma que as 10 grandes marcas que fizeram parte da análise realizada pelo WWF tiveram uma performance positiva em algumas áreas, mas muito fraca noutras tantas, o que explica os resultados sofríveis gerais alcançados no ranking elaborado.
“Honestamente, fiquei surpreendido por nenhuma das marcas ter conseguido ir mais além do que um C+”, afirma em comentário aos resultados. “E penso que as empresas de luxo não consideram que os seus produtos sejam particularmente nefastos para o ambiente e que existe uma certa complacência no que respeita ao crescimento explosivo de novos mercados. Acredito que pensem que as pessoas não irão questionar as suas actividades, mas a verdade é que estamos perante uma mudança de paradigma [veiculada pelos consumidores] e isso já não é um facto assente”, acrescenta.
Certo é que são cada vez mais as perguntas que se impõem sobre a ética existente – ou inexistente – no mercado dos bens de luxo. Um bom exemplo remonta a 2007, aquando da estreia do filme Blood Diamond, o qual deu origem a uma enorme preocupação e pressão públicas face ao comércio ilícito de diamantes e ao facto do mesmo financiar a sangrenta guerra civil na Serra Leoa: nesse mesmo ano, muito poucas foram as celebridades que se atreveram a ostentar jóias com diamantes na cerimónia da atribuição dos Óscares, o que prova que sensibilizar compensa.
Estes pequenos grandes alertas continuam a ser de importância acrescida numa indústria que não pára de crescer, mas cujo desenvolvimento traz consigo questões éticas variadas às quais não é possível fechar os olhos. Mas existem também alguns mitos que ajudam a “desculpabilizar” a fraca performance dos grandes players deste mercado. Tal como o relatório do WWF enuncia, é possível melhorar o cumprimento de padrões éticos e sustentáveis destas marcas e continuar a marcha da mudança iniciada por consumidores mais sensibilizados para os males que embrulham os bens luxuosos que ostentam.
Um destes mitos prende-se com uma aparente indulgência pessoal que dita a não necessidade de existir moral nesta indústria. O que começa a estar completamente errado. O luxo pode significar o desejo de se ter o que de melhor existe, mas os produtos que causam miséria moral ou danos éticos, agora ou no futuro, já não são considerados pelos consumidores afluentes como “ter o melhor independentemente dos custos”.
Um outro mito que persiste prende-se com a ideia de que os consumidores de bens luxuosos em novos mercados não se importam com questões éticas ou ambientais. Pelo contrário. À medida que os novos mercado amadurecem, mais depressa os seus cidadãos com elevado poder de compra seguem as tendências internacionais, incluindo a sensibilização e preocupação sobre questões sociais e ambientais e um desejo manifesto para que as suas aquisições lhes proporcionem experiências com significado e não manchadas por padrões não éticos.
Persistente é também a ideia de que as marcas de luxo apenas são valorizadas pela qualidade dos seus materiais, design e marketing. Errado. O valor que se traduz em benefícios para as pessoas, comunidades e ambientes afectados pela sua produção, marketing e distribuição ajudam a construir um “valor maior” mesmo que intangível.
Assim, e neste contexto, a credibilidade dos produtos de luxo irá derivar da sua capacidade de gerar bem-estar, não só para os consumidores, mas para todos aqueles envolvidos (e negativamente afectados) pela sua produção e utilização.
E existe finalmente um “business case” para um novo tipo de luxo com valores mais profundos presentes na extracção, produção, marketing e distribuição dos bens em causa. A esperança é que estejamos mais perto de considerar que as verdadeiras marcas de luxo são aquelas que oferecem contributos positivos a todos os que são afectados pela sua criação e que identifiquem os seus consumidores como pessoas não somente abastadas, mas com os meios e a motivação necessários para respeitar tanto as pessoas como o planeta.
Editora Executiva