“Sucessão da liderança ética” foi um dos temas escolhidos para as sessões regulares do Fórum de Ética da Católica Porto Business School e, como habitualmente, partilhamos aqui memória da sessão para a comunidade. Desta vez, contamos com José Bento da Silva, docente na Warwick Business School, que tem vindo a dedicar parte substancial da sua carreira a estudar a forma de gestão de uma das mais antigas (e maiores) organizações do mundo, a Ordem dos Jesuítas
POR HELENA GONÇALVES

Liderança Inaciana – algumas lições para a “ética empresarial” foi o mote que nos ajudou a refletir sobre liderança ética, designadamente a sua conservação e sucessão ao longo do(s) tempo(s), neste caso cinco séculos. Ficamos a saber que o líder/gestor Inaciano é um “guardião” de uma organização que “tem de pagar contas e gerar fontes de rendimento capazes de sustentar uma massa salarial que ascende a cerca de 200.000 funcionários… que tem necessidade de desenhar uma estrutura capaz de realizar a estratégia que a organização delineou … e que interessa pouco se está a salvar almas, a gerir colégios ou a liderar um banco de investimentos”. Fomos também interpelados sobre se a (nossa) empresa “precisa de líderes heroicos e carismáticos ou se precisa de gestores capazes de desenharem processos orientados para a atenção à pessoa/trabalhador na sua plenitude”.

Neste artigo, optamos por não registar a frutuosa reflexão coletiva havida, partilhando antes o texto escrito por José Bento da Silva. Acreditamos que será mais interessante cada leitor fazer também a sua própria reflexão, individual e/ou coletiva.

Liderança Inaciana – algumas lições para a “ética empresarial”

A liderança Inaciana trata da busca, na espiritualidade Inaciana e na forma como os Jesuítas se governam a si próprios, por lições que possam ajudar os líderes e gestores de organizações não religiosas. A liderança Inaciana é já um pequeno corpo teórico, com vários artigos e livros publicados sobre o assunto. A expressão ‘liderança Inaciana’ deriva de Santo Inácio de Loyola, fundador dos Jesuítas, uma Ordem Religiosa Católica.

Conseguimos facilmente perceber que o modo de liderar e gerir uma Ordem Religiosa é necessariamente diferente do que geralmente entendemos por liderança e gestão. Essas diferenças estão intimamente relacionadas com a natureza da pertença a uma Ordem Religiosa e, por essa via, com os três votos religiosos de pobreza, obediência e castidade.

A pobreza remete obviamente para um propósito organizacional que está nos antípodas daquilo a que estamos habituados. Em primeiro, o objetivo do lucro é naturalmente inexistente. Em segundo, mesmo quando comparamos uma ordem religiosa com uma organização sem fins lucrativos, verificamos que um voto de pobreza está muito para lá da mera ausência de objetivos financeiros – a pobreza implica um compromisso evangélico de despojamento, o qual se traduz até em regras contabilísticas muito específicas (como a obrigatoriedade, característica de algumas ordens religiosas, de, no final de cada ano distribuir todo o dinheiro que “sobra”, colocando assim as contas bancárias a zero). O facto de os membros individuais das Ordens Religiosas como os Jesuítas não poderem ter qualquer bem em seu nome implica, naturalmente, um nível de despojamento que não tem paralelo com o que ocorre em organizações sem fins lucrativos.

A obediência e a castidade também distinguem uma Ordem Religiosa de qualquer outro tipo de organização, com ou sem fins lucrativos. A obediência é um compromisso com a missão, não podendo por isso ser confundida com a hierarquia a que estamos habituados noutro tipo de organizações. E a missão de um Jesuíta e da Companhia de Jesus em geral está para lá do que entendemos vulgarmente como missão ou propósito organizacionais – a missão é entendida como algo transcendente, entregue por Deus, tornando assim o membro individual da ordem religiosa num participante ativo de uma obra que está muito para lá dele e do seu entendimento pessoal acerca do que é necessário fazer. Esta entrega à missão é por isso transcendente, estando intimamente ligada à disponibilidade absoluta que decorre do voto de castidade, o qual serve, no caso da liderança (que é o que aqui nos interessa), como complemento do voto de obediência.

Colocado de forma simples, o membro de uma ordem religiosa como os Jesuítas tem uma disponibilidade para a missão sem paralelo noutras organizações: está liberto de interesses financeiros, de compromissos familiares e está totalmente entregue, pela fé e pela hierarquia, à missão. É por isso natural que questionemos qual é a relevância de tentarmos aprender algo com o modo particular de liderar e gerir uma organização como os Jesuítas.

Sucede que os Jesuítas acabam por ser uma organização como outra qualquer, pese embora o que digo acima. Independentemente das características inerentes ao que constitui uma Ordem Religiosa, a forma de organizarmos atores humanos em torno de um objetivo acaba sempre por revelar elementos comuns a qualquer tipo de organização. Com ou sem voto de pobreza, a sustentabilidade financeira é sempre uma premissa (os Jesuítas também têm de pagar contas e gerar fontes de rendimento capazes de sustentar uma massa salarial que ascende a cerca de 200,000 funcionários globalmente, colocando-os entre as maiores organizações do mundo).

Com ou sem voto de obediência, qualquer organização tem necessidade de desenhar uma estrutura capaz de realizar a estratégia que a organização delineou. Interessa pouco se estou a salvar almas, a gerir colégios, ou a liderar um banco de investimentos.

Sucede que os Jesuítas têm de facto várias lições a partilhar com o resto do mundo empresarial. Num texto desta natureza não é possível partilhar todas as lições que podemos extrair dos Jesuítas. Focar-me-ei nalgumas que me parecem mais importantes, fazendo a ponte com uma visão particular da “ética empresarial” que aqui apresento.

Partindo da “ética empresarial”, importa recordar que sempre que, enquanto líder ou gestor, eu penso a ação humana, entro automaticamente no terreno da ética. A ética empresarial não trata por isso daquilo que a organização decide ou não fazer pelo contexto que a rodeia. Por exemplo, quando a empresa decide alocar parte das suas reservas financeiras para apoiar uma causa social, o campo da ética que trata disso é a “ética dos negócios” (que é diferente da “ética empresarial”).

A ética dos negócios trata de coisas como a fiscalidade, o pagamento a tempo a fornecedores, a qualidade do produto e a forma como a minha empresa estabelece relações com os mais variados stakeholders e elementos da envolvente/comunidade. Porque o relacionamento com os stakeholders e a comunidade está intimamente ligado com decisões de negócio (por exemplo, a comunidade onde a empresa se insere e opera é uma decisão de negócio), então a natureza desse relacionamento entra no campo da “ética dos negócios”.

Na conceção que aqui proponho, a “ética empresarial” trata somente daquilo que está relacionado com a natureza da empresa – como se organiza, nomeadamente como organiza a ação humana no seio da empresa. Esta distinção que aqui faço é passível de crítica, como quase tudo na vida. Mas penso que tal distinção permite compreender melhor o que distingue a forma de liderar dos Jesuítas.

A primeira grande lição que obtemos ao analisar o caso dos Jesuítas é a energia colocada na seleção dos líderes. Ao contrário do que estamos habituados, os Jesuítas têm um protótipo de líder bem delineado na parte nona das suas Constituições, escritas no século XVI. O líder Inaciano é definido por Santo Inácio de Loyola como alguém que manifesta, em simultâneo, virtudes espirituais, morais e intelectuais. É também alguém que conhece em profundidade os Jesuítas e que é capaz de lidar com questões mundanas.

Pese embora que a manifestação de virtudes espirituais, morais e intelectuais remeta para o que, na literatura, entendemos por “protótipo do carisma”, a verdade é que nas próprias Constituições dos Jesuítas o que acaba por ser valorizado na liderança é: em primeiro, o seu carácter coletivo (quando os Jesuítas elegem um líder, elegem em simultâneo os seus assessores/consultores); em segundo, o carácter processual e mundano do que o líder faz no seu dia-a-dia.

O que sabemos da liderança Inaciana é, por isso, extremamente interessante pois coloca em causa a visão heroica que temos do que constitui verdadeira liderança e, ao mesmo tempo, desconstrói a própria noção de liderança: mais do que liderança Inaciana deveríamos falar de gestão Inaciana.

O próprio Santo Inácio dedicou a sua vida, enquanto líder dos Jesuítas, a tratar de processos como a seleção, formação e promoção dos Jesuítas. O líder Inaciano está muito longe do herói visionário que a literatura em liderança tende a privilegiar. O líder/gestor Inaciano é discreto, está obrigado pelas Constituições dos Jesuítas a trabalhar e a decidir em equipa, não está mandatado para embarcar em processos de mudança visionários, e muito menos está mandatado para mudar a cultura da organização adaptando-a à moda do momento. O líder/gestor Inaciano aproxima-se do que na literatura académica classificamos como “guardião da instituição”.

A segunda grande lição retirada do caso dos Jesuítas resulta do olhar sobre o que faz o líder/gestor Inaciano. E é aqui que a “ética empresarial” surge em todo o seu esplendor. É impossível num texto desta dimensão detalhar as várias práticas que os Jesuítas desenvolveram para lidar com pessoas. Trata-se de “lidar com pessoas”, não de “liderar pessoas” como vulgarmente entendemos. “Lidar com pessoas” significa, no contexto dos Jesuítas, centrar a atenção do líder na pessoa que lidera, em vez de centrar a atenção no que a pessoa faz (muito menos nos resultados do trabalho da pessoa, os quais são importantes, mas não são o ponto fulcral da liderança Inaciana).

Do ponto de vista da ética, o posicionamento dos Jesuítas recorda-nos a “ética da atenção” (à pessoa e ao local) proposta por Simone Weil. As principais práticas desenvolvidas pelos Jesuítas são a “Conta de Consciência”, a “Correção Fraterna”, as visitas do líder, entre outras. Por exemplo, há bastante literatura histórica sobre o papel das visitas e a sua importância para conhecer a pessoa e o local onde a pessoa vive e leva a cabo a sua missão. Raramente prestamos atenção a este tipo de literatura por ser histórica, mas perdemos imensos pormenores sobre o exercício da liderança escondidos por entre os arquivos históricos.

A “ética da atenção” à pessoa e ao lugar é um traço fundamental da liderança Inaciana e da “ética empresarial”. Desta forma de ética deriva que o que o que o líder dos Jesuítas faz é, literalmente, gerir pessoas – selecionar, formar, promover e, sim, escutar o que a pessoa tem a dizer. A escuta pessoal faz-se no contexto da conversa conhecida por “Conta de Consciência”, a qual permite ao líder colocar cada Jesuíta a fazer aquilo que mais beneficia a pessoa. Mais do que beneficiar a própria organização, o líder está centrado na pessoa, num modo de liderar conhecido nos Jesuítas por “cura personalis”.

Numa organização com uma história de quase 500 anos há, naturalmente, mais lições a retirar. Penso, contudo, que as duas lições acima são suficientes para refletirmos, enquanto líderes, na forma como a) centramos a liderança no heroísmo e b) na forma como pensamos mais a “ética dos negócios” do que a “ética da atenção” (atenção à pessoa que lideramos).

As lições que retiramos do caso dos Jesuítas não são normativas – não se pretende que constituam necessariamente o referencial normativo que todas as empresas devem seguir. A própria natureza distinta dos negócios apela a formas distintas de liderar, o que não é relativismo, mas sim consciência da multiplicidade e complexidade que caracteriza os contextos em que operamos.

Penso, contudo, que as lições que os Jesuítas nos oferecem podem constituir um ponto de interrogação: a minha empresa precisa de líderes heroicos e carismáticos ou precisa de gestores capazes de desenharem processos orientados para a atenção à pessoa/trabalhador na sua plenitude?

Há em Portugal um exemplo muitíssimo bom do que é a “ética da atenção” proposta por Simone Weil e levada à prática pelos Jesuítas: o trabalho feito pela ACEGE para identificar pobreza no seio das empresas, um fenómeno demasiado presente e que ignoramos. Este trabalho feito pela ACEGE é um magnífico exemplo do que verdadeiramente distingue a “ética empresarial” da “ética dos negócios”, centrando a atenção do líder em cada pessoa, na plenitude daquilo que a torna pessoa.

NOTA 1: Os Jesuítas portugueses oferecem, na sua casa de retiros do Rodízio, um curso/retiro centrado na liderança Inaciana. O curso/retiro é dirigido pelo Padre Lourenço de Sousa Eiró (Jesuíta), pelo Bernardo Vasconcelos e por José Bento da Silva.

O leitor que esteja interessado em saber e ler mais sobre liderança Inaciana pode contactar este último diretamente para o seu email profissional ([email protected]).

NOTA 2: Artigo produzido a partir do texto escrito por Jose Bento da Silva – Associate Professor Warwick Business School (wbs.ac.uk)

Ilustração: © Maria Sottomayor

Docente e coordenadora do Fórum de Ética da Católica Porto Business School