O texto que hoje partilho – Tempo(s) de abraços – tem dois propósitos: relembrar a falta que
nos fizeram (e continuam a fazer) os abraços, mas sobretudo homenagear o nosso mais
recente Prémio Pessoa, João Luis Barreto Guimarães, poeta e médico, Pessoa que ensina e
pratica, há muito muito tempo, a humanização, designadamente em instituições que prestam cuidados de saúde… mas não só
POR HELENA GONÇALVES

Há muito tempo, em dezembro de 2019, num tempo em que não se falava de pandemia,
partilhei, aqui no Portal VER, um texto a que lhe chamei Tempo(s) de Humanização. Passado
algum tempo, exatamente em março de 2021, em tempo de pico da pandemia, partilhei outro texto a que lhe chamei Tempo(s) de sofrimento ético.

O texto que hoje partilho – Tempo(s) de abraços – tem dois propósitos: relembrar a falta que
nos fizeram (e continuam a fazer) os abraços, mas sobretudo homenagear o nosso mais
recente Prémio Pessoa, João Luis Barreto Guimarães, poeta e médico, Pessoa que ensina e
pratica, há muito muito tempo, a humanização, designadamente em instituições que prestam
cuidados de saúde… mas não só.

“Mecânica de um abraço” foi precisamente o poema que me inspirou naquele (longínquo)
tempo que precedeu o confinamento e que agora recordo, num tempo em que já podemos
voltar a dar abraços, ou melhor, num tempo em que podemos voltar a “abraçar… o tempo”.

“Mecânica de um abraço”
O que encerras num abraço quando
abraças alguém não é
um corpo: é o tempo. Nesse
demorar suspenso
(enquanto deténs outra vida) há
um corpo que é teu enquanto o reténs
nos braços
(porquanto o tens para ti
suspendendo o movimento)
enquanto páras o tempo pelo
tempo
de um abraço. Mas a
força dos teus abraços é mais fraca
que a do tempo e
tens que ser tu a ceder
(tens que ser tu a largar) porque
o tempo não aceita estar parado tanto tempo e
exige que o soltes para
tornar ao movimento.
João Luís Barreto Guimarães, “Nómada”

Nesse tempo, e tendo este poema como inspiração, dei voz a vozes caladas, partilhando
quatro extraordinárias narrativas de Cuidadores (com letra grande), duas médicas, uma
enfermeira e um padre, que me ensinaram a perceber o que queria dizer “temos que ter em
conta o tempo para humanizar”.

Passado um inimaginável tempo, e quando percebi o impacto da trágica falta de abraços e o
que poderia significar “sofrimento ético”, tentei voltar a dar voz a um profissional de saúde,
desta vez uma médica de Cuidados Paliativos Pediátricos, que escreveu um (quase) diário
sobre o que ia sentindo durante o confinamento, numa tentativa de contribuir para dar futuro
à memória, numa tentativa de contribuir para ir humanizando o tempo “comprimido e
suspenso”, este “tempo congelado no presente”, na gritante voz de Tolentino de Mendonça.

Agora, num tempo em não há, aparentemente, sofrimento ético, corroboro o que escrevi
naquele tempo, embora sem certezas sobre se estávamos, ou se estamos, num tempo de
“abrandamento de sofrimento ético”.

Num tempo de abrandamento de sofrimento ético, nos hospitais, num tempo de necessário
abrandamento de sofrimento mental, (quase) generalizado, num tempo de colher lições, se
queremos contribuir, verdadeiramente, para recuperar a sanidade mental, individual e coletiva, dos que trabalham em hospitais, empresas, organizações ou quaisquer tipos de espaços, se queremos (re)viver uma vida integral, temos que encontrar tempo para (re)conhecermos as nossas vulnerabilidades, temos de encontrar tempo para dar voz ao que sentimos … e temos de encontrar tempo para cuidar de nós próprios. Se não cuidarmos de nós próprios, não poderemos cuidar dos outros, a nível pessoal e profissional, nem cuidar do (muito) “que nos foi dado”.

O tempo comprimido, o eterno presente, terá de novo sentido se for narrado, porque é pela
narrativa que o tempo é efetivamente humanizado. Só haverá espaço para estas narrativas se
não criarmos guetos de silêncio, ou seja, se formos capazes de ser afinadores destas histórias
contadas pelo corpo e pela voz.

Nestes dois textos, escritos em dois tempos absolutamente ímpares do tempo –
imediatamente antes e no pico da pandemia – tentei dar voz a vozes caladas, vozes que me
fizeram querer ficar em silêncio, que me fizeram querer ouvir a(s) voz(es) interior(es), que me
fizeram ver a importância do tempo de ouvir as vozes do Outro.

Agora, no tempo em que (re)conhecemos um novo Prémio Pessoa, uma Pessoa que escreveu,
entre muitos outros, o notável Poema “Mecânica de um abraço”, que nos tem vindo a ensinar,
a muitos, há muito tempo, a compreender a importância do tempo … e dos abraços …
corroboro o que escrevi há uns tempos, agora mais consciente da inadiável necessidade do(s)
tempo(s) de abraços, em qualquer tempo, mas ainda mais consciente da “força do tempo dos
abraços”, em tempo de Natal.

Num tempo em que tanto se fala de desumanização, se queremos contribuir verdadeiramente
para humanizar os nossos hospitais, empresas, organizações ou quaisquer tipos de espaços,
temos que encontrar tempo para dar voz ao que sentimos e dar tempo ao(s) tempo(s) … e às
pessoas. E abraços! À moda de João Luis Barreto Guimarães!

Docente e coordenadora do Fórum de Ética da Católica Porto Business School