O começo do Outono traz-nos muitas coisas e a ansiada rentrée encerra a silly season. Trocam-se os festivais de Verão pelas récitas e a vestimenta acompanha a solenidade da estação que entra. As aulas começam, a sociedade sacode-se da boa letargia que dura há dois meses e penhoram-se juras de melhores eus. É uma época espantosa do ano, tal como todas as outras, e é nesta que se entregam os Prémios Nobel
POR PEDRO COTRIM
Quem for de ideias no papel, nome antigo do word e do écran em muitas instâncias, poderá revisitar os escritos do médico missionário a quem Henry Morton Stanley, após uma errância grande por África, cumprimentou com o Dr. Livingstone, I presume que já deu livros, músicas e filmes. Garante o ilustre encontrado às margens do Tanganica:
«Quanto às qualificações literárias que se adquirem com os hábitos de escrita, a minha vida africana não tem sido favorável ao aumento do que produzo. Tem tornado a redacção fatigante e laboriosa. Creio que prefiro voltar a atravessar o continente africano a escrever acerca disso, pois é muito mais fácil viajar do que escrever».
O Dr. Livingtone não viveu muitos Outonos por se ter escudado em África. Quem quiser saber mais sobre a sua tremenda vida pode ler os relatos das missões. Sabemos que tratar reflexões por escrito dá trabalho e é conforme afiança o bom doutor; recomendamos no VER este hábito, que nos traz bons ensejos de contemplação, raciocínio e paixão, pois com a escrita tudo se tranforma.
Mas é isto tudo o Outono. Traz-nos também os dias outrora suprimidos pelo papa Gregório XIII para acerto das estações: por decreto, mandou os cidadãos deitarem-se no dia 4 de Outubro e acordarem no dia 15. Isto em 1582. A bula papal foi impressa, foi escrita e não difundida pela internet, permitindo que os dias calhassem na altura devida e que não se dispersassem pelo ano; a igreja a impor o rigor da astronomia para benefício de todos. A decisão foi acatada em Portugal, França, Espanha e nas cidades de Itália. Calendário gregoriano. Nos países protestantes, e contestando a autoridade do Vaticano, a conversão ao novo calendário foi mais demorada. Nos países ortodoxos a mudança foi ainda mais tardia, sendo a Revolução Bolchevique de Outubro na realidade a Revolução Bolchevique de Novembro. Ou o contrário?
Outubro que nos traz o Nobel. Conhecemos a história do inventor da dinamite; será que conhecemos?
Alfred Nobel nasceu em Estocolmo em 1833. O pai era arquitecto, inventor e empresário, e Alfred foi uma criança criativa que se tornou num sapiente homem de negócios. Nunca se casou, alegando pouca sorte nos relacionamentos românticos. Ousou a literatura sem sucesso. Era atormentado, sonhador, solitário, hipocondríaco e bipolar. Cosmopolita, viveu na Rússia, na Alemanha e em Paris, antes de se estabelecer na cálida San Remo, onde morreu no dia 10 de Dezembro de 1896. Deixou uma fortuna impressionante.
Gerou-se um mito urbano com Nobel, especialmente em relação ao Prémio da Paz. Ouviremos muitas vezes que nele afincou a vontade para se redimir de ter inventado a dinamite, que patenteou em 1867 e com que fez uma fortuna. Mas talvez não seja inteiramente verdade. Nobel foi um pacifista e a dinamite deveria ser usada, na sua perspectiva, principalmente para fins industriais, o que efectivamente também sucedeu. Alfred sentiu igualmente que tinha inventado uma arma tão terrível que, daí em diante, não mais se ousaria resolver conflitos por meio da guerra. Infelizmente, o tempo mostrou que estava errado.
Muito escreveu Alfred, e ano antes de morrer, Alfred elabrou um testamento em Paris em que pediu aos executores que investissem o seu capital com segurança. Os juros seriam revertidos em prémios, pagos anualmente aos que tivessem, no ano anterior, assegurado os maiores benefícios para a humanidade. Foram concebidos cinco prémios de igual valor. Um prémio em física e outro em química seriam concedidos pela Real Academia Sueca de Ciências; um prémio de fisiologia ou medicina pelo Instituto Karolinska, de Estocolmo; um prémio de literatura pela Academia Sueca; ainda um prémio da paz por um comité de cinco membros eleitos pelo parlamento norueguês, o Storting. A Suécia e a Noruega estavam então unidas sob a mesma coroa, a de Óscar II da Suécia.
O testamento constituiu dificuldades legais, uma vez que a nacionalidade de Nobel estava sujeita a controvérsia e a sua riqueza espalhava-se por Reino Unido, França, Alemanha, Suécia e Rússia. As organizações abordadas por Nobel para conceder os seus prémios estavam relutantes em assumir esse papel.
Os dois executores nomeados por Nobel ultrapassaram estes problemas ao chegarem a acordo com a família do inventor: foi criada a Fundação Nobel para gerir o capital legado. Os prémios começaram a ser atribuídos em 1901 nas modalidades previstas por Alfred, às quais algumas regras foram adicionadas. Hoje em dia, os comités Nobel auxiliam a instituição responsável pela entrega do prémio. Habitualmente, em Setembro abordam-se centenas de pessoas, pedindo-lhes para apresentar três nomes antes de Fevereiro. O comité, sempre acompanhado por especialistas, examina os pedidos para decidir sobre uma escolha que se apresenta no Outono ao órgão designado pelo Nobel para uma decisão final, que quase sempre corresponde à do comité. Um ano e um mês de negociações e opções.
As escolhas são por vezes controversas. Uma vez que a ciência é uma empreitada social e individual, a concessão do Prémio Nobel, dado o prestígio, origina pressões e negociações em que o mérito objetivo não é o único factor em contenda. As deliberações dos comités foram mantidas em segredo durante muito tempo.
Robert Marc Friedman foi quem primeiro trabalhou nestes arquivos abertos em 1980, e no livro The Politics of Excellence – Behind the Nobel Prize in Science (ISBN: 9780716731030) aborda perspectivas pouco conhecidas desta história. Em 300 e muitas páginas, o autor dedica poucas linhas ao Prémio Nobel da Economia. É lapidar:
«Na realidade, não é um Prémio Nobel; antes brotou dos esforços de um grupo de pressão (é um lobby, mas aqui foge-se aos anglicismos a sete pés) dentro da Real Academia Sueca de Ciências. Arranjou-se junto da banca uma forma de financiar o prémio, que rapidamente foi equiparado aos Prémios Nobel. Começou a atribuir-se significado a este evento que constituiu prova de que a economia era a mais importante das ciências sociais. Sem entender as limitações e fraquezas desta génese posterior, os laureados receberam imediatamente prestígio instantâneo como parte do culto ao Nobel».
Surpreende. Ainda, e num registo do jornalista Birger Norman, este garante: «Na correspondência de Alfred Nobel, não há qualquer menção a um prémio em economia. O Banco Real da Suécia financia uma espécie de marca Nobel indevidamente registada». Este argumento foi repetido num artigo no diário sueco Dagens Nyheter em 2004, assinado por um matemático membro da Academia Real de Ciências, um ex-ministro, um ex-parlamentar e um economista. O tour de force de 1969 foi uma forma de tentar encerrar o debate associando o prestígio de certos economistas ao de físicos, químicos e médicos. É diferente, e escrever sobre a descoberta da estrutura do ADN ou de elementos que componham o elo perdido pouco tem que ver com a escrita de teorias sobre hiperinflação.
Algumas questões se suscitam: a manobra estranha pela qual os economistas se apropriaram do prestígio Nobel, a questão da ciência da economia e a da ideologia política dos beneficiários do prémio. Em princípio, os prémios são concedidos sem considerar as ideologias políticas do destinatário. Sucedeu, por exemplo que Konrad Lorenz, Nobel de Medicina em 1973, tenha optado por repudiar alguns comentários racistas que havia feito em 1940. A natureza e o carácter científico de uma disciplina de fronteiras esbatidas e fragmentada entre várias tendências são questões discutidas durante séculos sem nunca se chegar a um consenso. É certo que a entrada forçada de 1969 constitui, seja ou não intenção de quem a intentou, uma forma de tentar encerrar o debate, associando o prestígio de certos economistas com os de físicos, químicos e médicos em áreas em que o consenso é mais fácil de encontrar. Novamente: escrever sobre uma nova via para o tratamento do cancro é diferente de escrever sobre uma nova análise de flutuações económicas.
Em muitos sectores da sociedade sueca mencionam-se os interesses e direitos os investidos e espera-se realmente a abolição do Nobel da Economia. Sustenta-se que a Fundação Nobel e a Real Academia Sueca de Ciências devem reconhecer que se induziram em erro, especialmente após a recusa em laurear os investigadores com um Prémio de Engenharia, uma tentativa que já teve algumas investidas.
Em alternativa, sustenta-se que este Prémio Nobel por associação deva ser designado pelo seu nome real e que o distinga verdadeiramente dos outros cinco. Uma coisa é receber o dinheiro do prémio, outra é pensar que um laureado com este prémio posteriormente engendrado tenha feito o mesmo que Pauling, Crick, Watson, Churchill, Curie ou Einstein.
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