São denunciados os métodos de recrutamento das e dos protagonistas, que invariavelmente se traduzem em formas de exploração da vulnerabilidade e da pobreza. Refere-se como os direitos de uso das imagens são normalmente cedidos de forma ilimitada e só com o pagamento de quantias avultadas poderão essas imagens ser retiradas de circulação. O que significa que para as pessoas em causa, na prática, não existe o chamado «direito ao esquecimento»: ficarão marcadas para sempre com tais imagens, mesmo que venham a mudar de vida, como muitas esperam
POR PEDRO VAZ PATTO 

Ainda não há muito tempo, o acesso livre à pornografia era frequentemente apresentado como sinal de abertura e progresso das sociedades. Os países nórdicos foram pioneiros nesse campo desde os anos sessenta do século passado. O prefácio do diploma que em Portugal legalizou o acesso à pornografia (mesmo assim, sob certas condições que nunca chegaram a ser cumpridas), o Decreto-Lei n.º 254/76, de 7 de abril, chega a mencionar os seus supostos benefícios. Por isso, não deixei de ficar surpreendido quando, mais recentemente, num congresso de uma plataforma de organizações que lutam contra a prostituição, ouvi a um representante do governo sueco de então, um governo de esquerda que se auto-intitulava feminista, afirmar: «Está na hora de colocar na agenda política a luta contra a pornografia».

Não era um pregador ultra-conservador ou um fundamentalista a afirmá-lo. Era um político de um dos países pioneiros da liberalização da pornografia e particularmente sensível aos direitos das mulheres. A razão desta luta contra a pornografia é a mesma que subjaz à política do chamado «modelo sueco» de combate à prostituição, com punição do cliente e apoio à reinserção social das pessoas prostituídas. Num e noutro caso, está em causa a «coisificação» e a «mercantilização» de pessoas particularmente vulneráveis, sobretudo mulheres. 

Nessa mesma linha, é oportuno destacar um relatório recente elaborado por quatro senadoras francesas, uma de centro-direita, outra centrista, outra socialista e outra da esquerda radical, sobre a pornografia como um «cenário infernal» («Porno – L´Enfer du Décor»), que pode ser consultado no sítio do Senado francês (www.senat.fr).

Retrata tal relatório um cenário verdadeiramente dantesco. Salienta, por um lado, como, através da internet, o negócio da pornografia tem crescido exponencialmente, sobretudo através de grandes plataformas que são das mais frequentadas por utentes de todas as idades. A circulação de vídeos pornográficos atinge cerca de um quarto do total da circulação de vídeos na rede.

Mas tal relatório denuncia, sobretudo, a associação da pornografia à violência física e verbal. Uma associação que não representa um simples desvio, mas que se revela sistemática e que se verifica em cerca de noventa por cento dos casos. Os conteúdos pornográficos são cada vez mais violentos e não obedecem a qualquer controlo ou consideração sobre a forma como são produzidos (muitas vezes contra a vontade das e dos protagonistas). Esta violência, nem sempre simulada, não pode deixar de servir de incentivo à prática de crimes sexuais.

São denunciados os métodos de recrutamento das e dos protagonistas, que invariavelmente se traduzem em formas de exploração da vulnerabilidade e da pobreza. Refere-se como os direitos de uso das imagens são normalmente cedidos de forma ilimitada e só com o pagamento de quantias avultadas poderão essas imagens ser retiradas de circulação. O que significa que para as pessoas em causa, na prática, não existe o chamado «direito ao esquecimento»: ficarão marcadas para sempre com tais imagens, mesmo que venham a mudar de vida, como muitas esperam.

Afirma-se no relatório que não é, na prática, restringido o acesso à pornografia por parte de menores. Cerca de um terço dos menores de quinze anos tem acesso à pornografia virtual. A tentativa de regular a pornografia com salvaguarda dos direitos das e dos protagonistas é, para as autoras do relatório, ilusória. Falar, como por vezes sucede, em «pornografia ética» é para elas uma «aberração semântica». Poucas são as situações em que se verifica algum respeito por tais direitos. E como o consentimento no âmbito sexual tem de ser necessariamente reversível, e em qualquer momento, não faz sentido assumir obrigações contratuais a esse respeito.

Este relatório enuncia os efeitos danosos da pornografia no plano pessoal e no social,: a mercantilização do corpo e da sexualidade, a difusão de uma visão deformada e violenta da sexualidade, a erotização da violência e das relações de domínio, as dificuldades no relacionamento com o sexo oposto, a hipersexualização precoce de crianças. Recomenda que seja dada prioridade à luta contra a violência na pornografia, que seja garantido o «direito ao esquecimento», que sejam efetivamente aplicadas as leis que proíbem o acesso de menores à pornografia e que se invista fortemente na educação dos jovens. E chega a questionar, em nome da proteção da dignidade humana e da salvaguarda dos direitos fundamentais, se não deverá ser, pura e simplesmente, proibida a pornografia.

Muito se tem falado nos crimes de abuso sexual de crianças e adolescentes. Sobre ele falou o Papa Francisco na entrevista que deu à jornalista portuguesa Maria João Avillez, aludindo a propósito também à «cultura da pornografia». Tal abuso é particularmente grave quando ocorre em ambientes da Igreja, mas não é específico dela (sei-o bem por experiência profissional). E é particularmente grave porque representa a anulação do auto-domínio no âmbito sexual e a «coisificação» da pessoa, e, por isso, uma afronta à ética sexual cristã e personalista (seria bom que se salientasse mais este aspeto quando se aborda este fenómeno). É essa mesma afronta que se verifica na pornografia. 

Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP)
Juiz Desembargador