As eleições de 10 de março de 2024 deram-nos um parlamento muito frágil. O próximo Governo será minoritário, numa assembleia com a segunda maior pulverização de sempre (nove forças representadas, só inferior às de 2019) e o menor peso para os dois grandes partidos centrais desde 1983. Antes de considerar as consequências sobre o futuro, é importante notar duas características fundamentais que esses números nos revelam sobre o país
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES

O facto mais saliente é o excelente resultado do Partido Socialista. Ao fim de oito anos de poder, dos quais os últimos dois numa maioria desastrosa, o PS esteve mesmo à beira de ganhar estas eleições, e conseguiu eleger mais deputados do que em seis dos 16 sufrágios anteriores (1979, 1980, 1985, 1987, 1991, e 2011). Isto mostra bem o sucesso da tática seguida pelo partido nas últimas décadas.

A estratégia política do PS, desde Guterres há 30 anos, tem sido privilegiar os interesses de grupos poderosos, com destaque para os reformados e funcionários. As grandes questões nacionais ficam omissas, debaixo das promessas de mais pensões, salários e benesses variadas. Isso começou por alimentar uma dívida esmagadora, que estourou em 2011. Recuperado o poder em 2015, a linha foi revista, passando a entupir o crescimento debaixo de uma carga fiscal sufocante, enquanto ao mesmo tempo se degrada a operação dos serviços públicos.

Se em termos nacionais a orientação é calamitosa, tem-se revelado uma excelente técnica política. O principal efeito foi mudar a atitude dos adversários, que se viram obrigados a também enveredar pelas promessas ruinosas. Em segundo lugar, como se vê, após três vitórias consecutivas, ia quase conseguindo uma quarta. O que isto nos mostra é que o país se encontra hoje refém de poderosas forças sociais que, sendo constituídas por cidadãos honestos e decentes, têm um poder desmesurado no nosso sistema eleitoral, asfixiando assim a dinâmica nacional. Isto vai determinar a nossa vida comum no horizonte previsível.

O segundo dado do escrutínio é que os votantes estão evidentemente zangados. Quase 60% dos deputados eleitos são de adversários do poder anterior, e mais de um terço desses foram escolhidos numa plataforma abertamente antissistema. Aliás, até se pode dizer que o peso das forças apostadas em rever o atual regime é o maior de sempre, considerando antidemocrática a extrema-esquerda até à “geringonça” de 2015, e a extrema-direita desde então. Com 20% por cento do parlamento, os populistas têm um poder muito limitado, e ladrarão sempre mais do que mordem, pelo menos até à próxima “geringonça”. Mas não deixam de ser um indicador relevante.

Que situação política nos permitem estes resultados? Antes de mais é preciso dizer que formar e manter Governo é muito mais fácil do que possa parecer. Com a vitória reconhecida pelo adversário e recusando um acordo com os extremistas, a Aliança Democrática criará um executivo minoritário sem dificuldades. No futuro próximo ninguém quererá ser responsabilizado pela repetição de eleições, pelo que a solução é bem capaz de durar vários anos.

Se sustentar um Governo é simples, tudo está montado para que esse executivo falhe. A Oposição, com mais de 60% da Assembleia, não permitirá qualquer reforma significativa e manterá a governação em xeque, e apenas enquanto esta for sofrendo todo o desgaste gerado pelas culpas daquilo que correr mal. Por outro lado, a esquerda ferida e a extrema-direita triunfante facilmente incendiarão as ruas, com greves, manifestações, protestos, assim sabotando o país.

Tudo isto significa que, perante as enormes transformações da presente era, Portugal vai estar uns anos de mãos atadas. As colossais mudanças a que se assiste na situação internacional, ambiental, financeira, tecnológica e sanitária estão a impor, em todo o lado, políticas muito impopulares, exigindo fortes despesas e restrições para levar a cabo as transições militar, energética, bancária, digital e hospitalar. Qualquer governo, mesmo maioritário, como o que tínhamos há poucas semanas, teria muita dificuldade em tomar as medidas indispensáveis, face aos custos que isso inevitavelmente impõe sobre as populações. Com um poder frágil, pouco ou nada se vai avançar.

Por isso, além de Portugal estar há décadas refém de fortes interesses corporativos, e se encontrar crescentemente descontente com a orientação política dos seus maiores, há mais uma coisa que sai evidente do quadro das eleições de 10 de março: vamos ficar bastante pior do que estávamos ainda há pouco tempo.

Pode dizer-se que este plausível cenário negro só será evitado se os responsáveis e o povo usarem três fatores, que se pode dizer serem a especialidade da ACEGE no panorama nacional. Primeiro, seriedade pessoal, pondo o bem comum nacional acima dos interesses mesquinhos de classe. Em segundo lugar, esperança que leve a enfrentar as dificuldades para conseguirmos chegar a um país melhor. Finalmente, oração para que Deus se digne salvar-nos de nós próprios.

Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas

1 COMENTÁRIO

  1. Caríssimo,

    Obrigado pela clareza.
    Obrigado pelo discernimento despolitizado.
    Obrigado pela partilha na forma de aviso a navegação.
    Já pago impostos em Portugal a mais de 35 anos, embora não tenha nascido nem estudado aqui e por isso, tenho um grande amor ao país que me acolheu e desperta minha preocupação com o que se passa ao nosso redor e subscrevo com interesse e preocupação as ideias que expõe.
    Não seria novamente hora de propor um momento de reflexão àqueles que estão na cabine de comando deste pais e num cenário hipotético questionar se estivessem na barriga de uma mulher grávida, qual a opinião que teriam do mundo onde nasceram quando outros “seres humanos” estavam à frente deste grande país depois de comemorar seja lá o que for ao fim de umas eleições?
    Se eu não estivesse motivado dificilmente teria lido o artigo e menos ainda exposto esta opinião, mas se me calar, talvez mesmo tendo razão, amanhã talvez não dê tempo para corrigir algumas coisas.
    Termino em clima de oração: “Senhor Deus, dignai-vos salvar-nos de nós próprios!”

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