No início do encontro presencial da Economia de Francisco em Assis, a pergunta inspirada pelo texto do profeta Isaías – Até quando a noite, sentinela? – ficou a ressoar naquele auditório com cerca de 1.000 pessoas. Esta pergunta reflete muitos cansaços, trabalhos, desânimos, medos e dores de todos aqueles que sofrem com o grito da Terra, mas também de todos os que se gastam a trabalhar por um mundo mais justo e fraterno. Até quando o que parece tantas vezes noite, difícil? Até quando estas ondas que parecem engolir-nos, estes sinais de alerta da Terra e de todos os seres vivos? Até quando esta agenda desafiante que temos em mãos, e que às vezes nos tira o ar?
POR RITA SACRAMENTO MONTEIRO
Estamos a dobrar um cabo exigente, marcado por muitas tempestades e tormentas. Mas esta viagem, que representa uma mudança de tempo, é uma enorme oportunidade de comunhão e de renovação.
Depois destes dias de encontro, que esperávamos desde 2020, percebi que a dificuldade em definir o que é a Economia de Francisco é em si sinal daquilo que ela é, da sua importância e do desafio que representa. Ela é uma economia profética. Que já é mas ainda não é. Que já tem lugar em muitos lugares do mundo, em muitas comunidades, organizações e empresas, mas que ainda precisa de cada um de nós para encontrar novas formas de transformar e construir. Mais, precisa de nós para conseguir, efetivamente, ser o novo paradigma. Um paradigma em que a economia seja a arte de viver e não a arte de fazer dinheiro (Vandana Shiva).
Depois da carta que nos escreveu em 2019, e que apelava ao nosso envolvimento na construção de uma nova economia, o Papa Francisco reconheceu em Assis que a Economia de Francisco despertou algo que já tínhamos e temos dentro de nós. Este apelo criou um espaço de encontro para tantos que partilham os mesmos anseios e desejos, e deu protagonismo aos jovens para que possam trazer a sua criatividade, a sua coragem e a audácia de acreditar que é possível uma nova forma de fazer e de viver. Criou um movimento! E trouxe ainda uma oportunidade de diálogo intergeracional e multidisciplinar que reconhece o que de bom tem sido feito e que, através da partilha e de novas perguntas, enriquece as respostas e abre caminhos.
Precisamos de uma economia que assente em sistemas, modelos e lógicas que considerem que estamos todos ligados, que cuide da casa que habitamos e partilhamos, de todos os seres vivos, da gestão e distribuição dos bens, e que permita uma outra forma de sermos mundo.
Esta economia profética deixa-nos desafios importantes, tais como:
– Pormo-nos à escuta: para sermos capazes de interpretar e responder à profecia no presente e com visão de longo prazo, precisamos de ouvir com profundidade e de estar atentos. Em Assis, o Papa lembrou a importância do capital espiritual de cada um. Precisamos de reconhecer a nossa espiritualidade como uma riqueza, e de procurar ouvir o espírito de novidade e da luz que revela, que fala em cada um de nós e que inspira a nossa ação. O que diz à realidade aquilo que sinto e intuo dos sinais exteriores e interiores?
– Exercitar a nossa capacidade de diálogo: à tentação de respostas rápidas e muito seguras, responder com novas perguntas. Cuidar dessas perguntas. E escutar o outro, conhecer a sua perspetiva, e construir em conjunto. A Economia de Francisco é um exercício de diálogo num tempo em que é tão difícil compreendermo-nos uns aos outros, e em que a incompreensão leva à polarização e à guerra. Em vez de perguntarmos qual é o modelo económico que resolve tudo, perguntarmos que caminhos vamos encontrando para uma economia que dê vida, inclua e cuide? Como posso contribuir para que os menos ouvidos possam participar e liderar a mudança?
– Pormo-nos a caminho: sermos nós os primeiros a ser lugar de transformação. A conversão ecológica de que fala o Papa Francisco pede que cada um faça por si a experiência de habitar esta Terra e a sua terra quotidiana, com todas as ligações e laços. Não bastam exercícios teóricos, e as mudanças de comportamento em si não são suficientes. Para tomarmos decisões fundamentadas enquanto consumidores, gestores, comunidades, temos de passar os nossos critérios pelo coração. Só quem sente amor, gratidão e respeito transforma verdadeiramente o seu modo de ser e fazer. E só assim poderemos ser capazes da radicalidade inspirada por São Francisco de Assis. Porque faço isto? Qual é a importância deste gesto?
– Sermos corajosos: considerando tudo o que estamos a fazer nas nossas organizações, comunidades ou famílias, e como dizia o Papa no seu discurso, perguntar: isto está de facto a transformar, a construir, ou é apenas uma camada de verniz? A estratégia que temos em curso cuida verdadeiramente das pessoas e permite que elas floresçam? A nossa organização enraíza impacto positivo na comunidade ou dá umas pinceladas de impacto aparente? Somos família ou partilhamos uma casa ao fim do dia?
Quanto falta para chegarmos onde queremos chegar? Não sei. Mas sei que já vamos chegando, e como dissemos no pacto que assinámos com o Papa Francisco por uma nova economia, em manhãs particularmente luminosas, já vislumbramos o início da terra prometida. Em Assis vislumbrei essa terra prometida. Essa terra onde pessoas com diferentes perspetivas religiosas, políticas, culturais e económicas, comungam de uma mesma visão. Sim, é possível! Ainda é noite em tantos sentidos, mas já se vê dia em tanto trabalho global conjunto, em tanto trabalho local, muitas vezes invisível e realizado por pessoas que dão a vida nos lugares mais desconfortáveis do mundo. Já é dia em tantos gestos de cada um de nós. O vislumbre enche de esperança e de vida. E é por isso que é preciso continuar a caminhar e a trabalhar.
Mestre em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica. Trabalhou em comunicação, gestão de stakeholders, e nos últimos anos na gestão de projectos de voluntariado e projectos sociais. Faz parte da equipa de coordenação do hub português da Economia de Francisco.