A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou recentemente a criação de uma União Europeia da Saúde, depois de reconhecer várias lacunas, ao longo dos últimos meses, na resposta à crise sanitária provocada pela Covid-19. Uma notícia que, apesar de pecar por tardia, deveria ser saudada, mas que por enquanto não oferece as garantias necessárias de sucesso numa Europa que tem estado mais desunida do que unida na pandemia e que não tem conseguido levar a cabo uma estratégia comum passível de ser seguida pelos países que a integram
POR HELENA OLIVEIRA
“O nosso objectivo é proteger a saúde de todos os cidadãos europeus. A pandemia de coronavírus salientou a necessidade de maior coordenação na UE, de sistemas de saúde mais resistentes e melhor preparação para futuras crises. Estamos a mudar a forma como lidamos com as ameaças transfronteiriças à saúde. Hoje, começamos a construir uma União Europeia da Saúde, para proteger os cidadãos com cuidados de alta qualidade numa crise, e equipar a União e os seus Estados-membros para prevenir e gerir emergências de saúde que afectam toda a Europa”.
As palavras são de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, no seu discurso sobre o Estado da União proferido no passado dia 11 de Novembro e traduzem-se nos “primeiros passos” para a criação de uma União Europeia da Saúde. Passos esses que, e tendo em conta o estado caótico em que se encontra a maioria dos Estados-membros nesta nova vaga de pandemia, parecem pecar por tardios. Afinal, a União Europeia (UE), e em termos de medidas sanitárias e de prevenção contra a crise da Covid-19, tem estado mais desunida do que unida, não tendo conseguido levar a cabo uma estratégia comum passível de ser seguida pelos países que a integram.
Embora os Estados-membros sejam efectivamente responsáveis pela saúde dos seus próprios cidadãos, a Covid-19 veio demonstrar, da pior forma, a ausência de cooperação e coordenação da UE para salvar vidas, com a crise dela decorrente a trazer à superfície desigualdades fundamentais entre os sistemas de saúde mais ricos e os que são sub-financiados, em conjunto com a escassez de mão-de-obra nos cuidados de saúde vital em alguns países, levando a consequências graves à medida que a pandemia se foi disseminando pela Europa. E a verdade é que muitas das competências e poderes existentes a nível europeu para proteger a nossa saúde têm sido limitados ou subutilizados, com a ausência, por parte da EU, de um mandato eficaz para tomar outras acções cruciais para coordenar melhor as respostas dos governos nacionais.
Como alertava à revista Science Hans Kluge, director regional da Organização Mundial de Saúde (OMS) a 29 de Outubro último, “A Europa está mais uma vez no epicentro desta pandemia” e “com a maioria dos países a reagir sem um plano a longo prazo, tentando simplesmente evitar o pior”. Os responsáveis políticos diferem quanto à melhor forma de reduzir novamente os números e, faltando ainda vacinas para salvar o dia, os países podem enfrentar uma série exaustiva de confinamentos “para cima e para baixo e para cima e para baixo”, que poderão arruinar a economia, afirma também Albert Osterhaus, um virologista da Universidade de Medicina Veterinária de Hanôver. “Não há estratégia na Europa”, conclui.
Na página oficial da Comissão Europeia que explica os principais objectivos desta nova União Europeia de Saúde, é reconhecido que a pandemia de coronavírus demonstrou que a UE precisa de melhorar a preparação e resposta para gerir mais eficazmente as graves ameaças transfronteiriças à saúde, tanto a nível da UE como dos seus Estados-membros. “As lacunas observadas nos últimos meses nas nossas capacidades para responder a uma grande crise sanitária exigem uma abordagem mais consistente e coordenada para preparar e gerir tais ameaças na UE”, pode ler-se na mesma página.
De acordo com um estudo recentemente publicado pela Horizon, a revista de investigação e pesquisa da União Europeia, esta ausência de coordenação começou logo por ser vista nos primeiros tempos que se seguiram ao deflagrar da pandemia. “A competição entre países europeus por equipamento, kits de teste e medicamentos necessários para combater a Covid-19 poderá ter dificultado a capacidade da região para responder à pandemia”, pode ler-se no artigo dedicado ao estudo. E, muito provavelmente, foi exactamente a inexistência de solidariedade entre os países que pertencem ao clube europeu uma das grandes responsáveis pelo estado agravado de emergência que agora vivemos.
Mas não só. O estudo em causa e no que respeita ao desigual nível de preparação patente em toda a Europa, recorda que há muitos anos, se não décadas, que os peritos de saúde alertavam para uma provável pandemia global [na verdade, desde o ano 2000], aviso este visivelmente ignorado pelas instâncias europeias, mas com algumas excepções entre os Estados-membros: enquanto alguns países tinham acumulado reservas de equipamento de protecção individual (EPI) de preparação para pandemias, medicamentos antivirais e outro equipamento vital, outros tinham muito pouco ou nada. E como refere o Professor Gyöngyi Kovács, especialista em logística humanitária e gestão da cadeia de abastecimento na Escola de Economia Hanken em Helsínquia, na Finlândia, “os países que tinham esses stocks de preparação, tiveram também a capacidade de formar médicos e enfermeiros para uma melhor resposta a tipos diferentes de pandemias, tendo ganho tempo e saindo-se melhor no início da primeira vaga”. Para o especialista finlandês, este tempo adicional permitiu”a países como a Finlândia e a Alemanha adquirirem fornecimentos adicionais de EPI, por exemplo, e para porem em prática, mais rapidamente, outras medidas, tais como testes Covid-19 e rastreio de contactos, que foram cruciais para ajudar a controlar a propagação do vírus”, pelo menos na primeira vaga.
Kovács é o coordenador do projecto HERoS, o qual tem vindo a avaliar a resposta precoce à crise do Covid-19 na Europa e a fazer recomendações que poderiam melhorar a forma como futuras pandemias são enfrentadas. No final de Outubro, os participantes deste projecto apresentaram as conclusões iniciais do estudo publicado pela Horizon. Através de uma série de inquéritos, entrevistas e questionários realizados com muitos dos actores envolvidos na resposta à pandemia, juntamente com a análise do que aconteceu nos primeiros meses, os investigadores verificaram que, em muitos países, os profissionais de saúde estiveram significativamente sobrecarregados nos primeiros dias da primeira vaga Covid-19, uma vez que os planos de gestão de crises não tinham sido suficientemente detalhados. O pessoal médico foi também, e como todos pudemos testemunhar, forçado a trabalhar longas horas para fazer face à crise. E como refere o coordenador do HERoS, não só não existiu um esforço coordenado de preparação, como até as próprias iniciativas da UE chegaram tarde “ao jogo”.
É que embora o Covid-19 fosse inteiramente novo, o que se traduziu na tentativa de se compreender como se difundia o vírus, o papel dos casos assintomáticos, entre outros problemas complexos, para este responsável “existiam medidas que poderiam ter sido tomadas para ajudar a melhorar a resposta na Europa”.
Entre as recomendações do HERoS sublinhava-se – e sublinha-se ainda – uma maior partilha de recursos como a capacidade hospitalar, equipamento médico e mesmo pessoal de saúde entre os países da UE. “Estamos agora a começar a ver isto a acontecer”, afirma Kovács. Em Março, a Alemanha transportou um pequeno número de doentes de Itália e, entretanto, alargou esta medida a outros países europeus sobrecarregados. No mês passado, os Países Baixos e a Bélgica também iniciaram o transporte aéreo de pacientes para a Alemanha.
Mas esta solidariedade europeia foi menos evidente noutras áreas no início da crise, com alguns países a competir entre si pelos EPI, enquanto outros impuseram restrições no que respeitava à exportação de fornecimentos médicos para os estados vizinhos, acrescenta ainda Kovács. A Alemanha, por exemplo, foi acusada de reter equipamento de protecção vital que poderia ter servido para ajudar a Áustria e a Suíça, enquanto a Polónia também impôs restrições rigorosas sobre o equipamento médico que poderia sair das suas fronteiras.
Inverno: confinamento e descontentamento
Entretanto e com os casos COVID-19 a aumentar e a sobrecarregar a capacidade de cuidados de saúde, grande parte da Europa tomou medidas semelhantes para refrear os contactos humanos. Há dois meses, quando os números começaram a aumentar após uma feliz pausa de Verão, os países ainda alimentavam a esperança de que medidas mais limitadas e orientadas poderiam evitar uma segunda vaga. “Entretanto a onda chegou e com a força de um tsunami.”, reforça o responsável da OMS à revista Science.
Apesar de a Europa ter tido uma resposta pandémica “mais científica” do que os Estados Unidos, ao contrário de muitos países asiáticos, foi incapaz de evitar um ressurgimento. E como acusa um investigador do Centro Helmholtz de Investigação de Infecções, Michael Meyer-Hermann, “em vez de se ter utilizado o Verão para diminuir os casos a praticamente zero, a Europa celebrou, ao invés, a época festiva [de Verão]”. Meyer-Hermann, que esteve envolvido na elaboração dos planos de confinamento na Alemanha, afirma ainda que foi graças a um crescente desrespeito pelas regras relativas ao distanciamento, à utilização de máscaras e aos aglomerados de pessoas que o vírus ressurgiu em força na Europa, o que demonstra, mais uma vez, a inexistência de um estratégia que deveria ter sido coordenada pela UE e estendida aos seus Estados-membros.
Como comenta Grabiel Leung, epidemiologista da Universidade de Hong Kong, “as sementes infecciosas na comunidade permaneceram sempre acima de um certo limiar” e, com o relaxamento do distanciamento físico, a situação voltou a agravar-se. Complementarmente, os números acabaram por sobrecarregar o outro pilar do vírus, acrescenta Leung, com o qual alguns países nunca conseguiram lidar convenientemente: “testar, isolar casos, rastrear e colocar em quarentena os contactos”.
Por outro lado, são cada vez mais os especialistas que consideram que o ar frio poderá vir a favorecer ainda mais o vírus. “Penso que o Inverno tornará as coisas muito mais difíceis”, alerta Adam Kucharski, da London School of Hygiene & Tropical Medicine. “Os países têm provavelmente estado a fazer o controlo em cenários ‘fáceis’ durante o Verão”, acrescenta ainda. Assim, o com o Inverno à porta, e apesar de o cenário não ser partilhado unanimemente pela comunidade científica, muitos são os especialistas que afirmam que os confinamentos são inevitáveis se a Europa quiser evitar o colapso dos sistemas de saúde, com Kucharski a acrescentar que, no entanto, talvez não precisem de ser” tão draconianos como na Primavera”. Nessa altura, “os países estavam a fazer absolutamente tudo ao mesmo tempo”, diz, enquanto agora é possível saltar medidas que restringem severamente a vida das pessoas, mas que não contribuem muito para o controlo do vírus. “Não há razão para trancarmos as pessoas nas suas casas”, por exemplo, desde que se mantenham afastadas no exterior, opina Devi Sridhar, presidente da cadeira de saúde pública global da Universidade de Edimburgo.
Desta forma, as ambições da Comissão para uma União Europeia da Saúde são apresentadas no meio de um ressurgimento generalizado de casos da COVID-19 na Europa e no mundo. E, de acordo com a posição oficial, “a UE e os seus Estados-Membros precisam de continuar a tomar as medidas necessárias para conter e gerir a pandemia no dia-a-dia, para o que continua a ser essencial uma acção coordenada a nível da UE”.
Com base nas lições aprendidas durante os últimos nove meses, a Comissão propõe “um quadro sólido para a preparação, vigilância, avaliação de riscos, alerta precoce e resposta da UE”. As propostas recentemente apresentadas visam conferir à UE e aos Estados-membros instrumentos mais fortes para tomarem medidas rápidas, decisivas e coordenadas em conjunto: nomeadamente “novos mandatos de crise para o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) e para Agência Europeia de Medicamentos (EMA), bem como um quadro jurídico renovado para as ameaças transfronteiriças à saúde”.
Por outro lado, e como se pode ler também no documento disponibilizado pela Comissão Europeia, “embora a UE tenha feito progressos significativos ao abrigo da Estratégia de Vacinas da UE e tenha assinado três [entretanto, assinou outros três] contratos com empresas farmacêuticas para o acesso a futuras vacinas seguras e eficientes, não existe actualmente nenhuma vacina aprovada disponível, e os tratamentos continuam a ser limitados. É por isso que é importante avançar agora para assegurar uma preparação e resposta mais fortes durante a actual e futura crise sanitária”.
No que respeita particularmente às vacinas e depois das notícias divulgadas esta semana sobre a eficácia, nos testes de fase 3, de mais uma candidata, da empresa de biotecnologia Moderna – que não tinha nenhum acordo com Bruxelas – a presidente da Comissão Ursula von der Leyen veio dizer que foram já concluídas “conversações exploratórias com a Moderna”, esperando finalizar um contrato em (sendo este o sexto). Na terça-feira, dia 16, a Comissão fez saber também que fechou um novo acordo com a farmacêutica alemã CureVac, para a compra de mais 405 milhões de doses de vacina contra a Covid-19, sendo este o quinto contrato anunciado. Desde o Verão, foram fechados contratos com a AstraZeneca, com a Sanofi-GSK e com a Janssen Pharmaceutica NV. Depois dos resultados promissores da vacina da Pfizer-BioNTech, anunciados a semana passada – e reforçados esta semana – Ursula von der Leyen também já anunciou que esta é mais uma vacina a contar para o portefólio da UE, com reserva de 300 milhões de doses, e na medida em que será necessária mais do que uma vacina para fazer frente à pandemia.
Todavia, a presidente da Comissão alerta também para o facto de não sabermos ainda e nesta fase, quais as vacinas que acabarão por ser seguras e eficazes e que a Agência Europeia do Medicamento (EMA) só as autorizará após uma avaliação sólida. “É por isso que precisamos de ter uma vasta carteira de vacinas baseada em tecnologias muito diferentes. Paralelamente, estamos a trabalhar com a COVAX para proporcionar acesso às vacinas aos países de baixo e médio rendimento. Assim, queremos assegurar que todos tenham acesso rápido a vacinas seguras e eficazes”, afirmou ainda.
Ou seja e como também o VER tem vindo a alertar, não só todo o cuidado é pouco com a própria eficácia anunciada pelas farmacêuticas, como com a comunicação de possíveis datas para a sua “existência real” e administração. Em resposta à garantia dada pela ministra da Saúde, Marta Temido, na quarta-feira passada de que “o Governo está a preparar tudo para poder ter a distribuição da primeira vacina em Janeiro”, desde que, como diz esperar a Agência Europeia do Medicamento, esta esteja disponível para distribuição, a bastonária da Ordem dos Farmacêuticos reagiu afirmando que “é irresponsável usar a vacina como meio de apontar o caminho”, quando “as várias vacinas, com as suas características, vão exigir uma estratégia nacional que vai levar tempo”, tendo já sido secundada nas suas afirmações por diversos especialistas.
Entretanto, o Público anunciou que foi já criada uma Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19, por despacho assinado pela directora-geral da Saúde, Graça Freitas, a 4 de Novembro, mas apenas divulgado nesta última quarta-feira.
Resta saber qual o papel da anunciada União Europeia da Saúde não só na supervisão da distribuição das vacinas, como nas acções que irá tomar para conter a pandemia numa Europa que continua sem poder contar com uma estratégia coordenada e de maior união entre os seus Estados-membros.
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