A paz que indubitavelmente ganhei durante este ano de confinamento fez muito mais de mim a pessoa que gosto de ser, ao ritmo que sinto pacífico, preenchido com as pequenezas que habitualmente nos escapam
POR JOÃO LUÍS LANDEIRA

Não sei se alguma vez voltaremos a viver o quotidiano com a mesma despreocupação a que sempre nos habituámos sem sequer a questionar. Parece extravagante olhar para trás e lembrar aquele concerto no Coliseu, apinhados de satisfação numa plateia deslumbrada, ou aquela música bestial que nos arrastava para a pista do Incógnito. De repente tudo mudou, o medo e a desconfiança regulam e condicionam qualquer decisão. Ficar em casa é a alternativa, se não mesmo a única solução. Reaprendemos teimosamente a viver, tem mesmo que ser, ainda que por vezes nos surpreenda e incomode ver tanta gente junta e sorridente num qualquer filme na televisão. Como se estes novos hábitos tenham já feito esquecer os antigos.

Comecei a trabalhar a partir de casa em meados de março. Aliás, comecei a fazer quase tudo a partir de casa, o que efectivamente não é complicado, bastando para isso hoje clicar num botão: conversar, pagar, encomendar, comprar. E ao contrário dos amigos que me questionavam nas reuniões virtuais que passaram a ser os novos jantares de fim de semana se não dava em doido, eu respondi sempre convictamente que a pandemia foi o melhor que já me aconteceu. Descontando-se o óbvio sarcasmo, a verdade é que a nossa casa é o ninho de conforto e bem-estar que a azáfama diária nos impede de usufruir. Tanto empenho e tão pouco retorno. Agora passei a gerir o tempo como se, de facto e pela primeira vez, fosse dono dele.

Se é o trabalho que me sustenta, e tendo a sorte de o ter e de o poder continuar a desempenhar, dedico-me às tarefas e atento aos prazos de forma sobranceira: deixei de ser o funcionário das nove às cinco e se me apetecer fico entretido a dar resposta àquilo que me é exigido até à uma ou duas da manhã. Se não me apetecer assim muito, renovo a sala, limpo as estantes e organizo os livros. Leio. Há tanto para ler. Penduro quadros e troco os cortinados. Cozinho. E oiço música de manhã à noite. Regresso sempre mais aliviado ao meu espaço de trabalho, no piso de cima cá de casa, sem trânsito e sem correrias. Sou mais descontraído e mais tranquilo. Da paisagem do terraço poupa-se uma fortuna em psicoterapia.

A paz que indubitavelmente ganhei durante este ano de confinamento fez muito mais de mim a pessoa que gosto de ser, ao ritmo que sinto pacífico, preenchido com as pequenezas que habitualmente nos escapam. Vivemos demasiado para os outros e em função deles, e este pretexto para me poder refugiar saudavelmente na minha individualidade proporcionou-me momentos muito mais marcantes e interessantes que tantos outros que já esqueci, repetidos na sua trivialidade pré-pandémica.

Só sinto falta de viajar, nem que seja a descoberta indolente de cheiros e cores diferentes durante o fim de semana. Mas ainda não tenho a certeza se quero voltar já ao… normal.