As virtudes são a substância do carácter. E o carácter é o garante de uma boa liderança. Estas são duas ideias predominantes na filosofia de Alexandre Havard. Para o criador do sistema “Virtuous Leadership”, que esteve em Lisboa recentemente, “praticamos as virtudes para sermos ‘mais’ seres humanos e não para sermos mais eficazes: apenas podemos fazer mais, porque somos mais”. E há muitos líderes que não compreendem esta evidência
POR HELENA OLIVEIRA

Foi há cerca de 30 anos, na Universidade de Helsínquia, que Alexandre Havard, na altura a exercer a profissão de advogado em Paris, Estrasburgo e também na capital da Finlândia, estava a dar uma aula sobre os pais fundadores da actual União Europeia, e se sentiu interpelado pelas perguntas dos seus alunos relativas a homens “grandiosos” como Alcide De Gasperi, Konrad Adenauer, Robert Schuman ou Jean Monnet, questões estas que iriam mudar a sua vida para sempre. “Como é que nos transformamos em pessoas como estas?” “Como é que sonhamos como estas pessoas?” “Qual a diferença entre uma virtude e um valor?” “O que distingue um temperamento biológico de uma personalidade inspiradora?”

Ao compreender que os alunos o estavam a questionar sobre temas relacionados com a antropologia, Havard decidiu que tinha de desistir do Direito e começar a fazer o que faz desde este encontro com jovens estudantes: dedicar-se a sistematizar o que denominou como “liderança virtuosa”, “porque as universidades dão informação, mas não educação e estes jovens mereciam ter o que estavam a pedir”.

Foi assim que Alexandre Havard, “educador” de líderes por vocação, autor de vários livros traduzidos em 20 línguas e criador do Virtuous Leadership Institute presente um pouco por todo o mundo, deu início à sua história, numa entrevista concedida ao VER, a qual precedeu a conferência “Cultivar o carácter para o sucesso sustentável”, e que teve lugar na Católica Lisbon School of Business and Economics, organizada em parceria com a ACEGE e com a Associação Virtuous Leadership, em Portugal.

Na génese desta liderança virtuosa subjaz a ideia de que a garantia de uma boa liderança reside no carácter do líder, ou seja, nas suas virtudes, constituindo estas a sua substância. Mas de que virtudes falamos?

Em primeiro lugar, Havard afirmou ao VER que as pessoas não sabem o que significa “virtude”. Como explica, “a palavra vem do latim ‘virtus’, que significa ‘poder’ e consiste num hábito que confere a capacidade de se fazer coisas que, à priori, não se pensa serem passíveis de serem feitas”. “É uma sabedoria prática, que nos permite compreender a realidade e nos confere a capacidade de tomar decisões que alimentam essa mesma realidade, convertendo as pessoas em decisores”, acrescenta. “E quanto mais virtudes se tem, mais se é”, sublinha, afirmando igualmente que “praticamos as virtudes para sermos ‘mais’ seres humanos e não para sermos mais eficazes: podemos fazer mais, porque somos mais”, diz.

Definindo em primeiro lugar quatro virtudes fundamentais – a prudência, a coragem, o autodomínio e a justiça – todas elas entrelaçadas entre si, há que as praticar para atingir, por fim, as duas virtudes supremas – a magnanimidade e a humildade – estando a primeira assente no esforço do coração, do intelecto e da vontade e que tem como objectivo atingir a “grandiosidade”, a nossa e a dos outros” e a segunda, complexa, que está relacionada com o autoconhecimento, com a verdade sobre nós próprios e com o serviço aos outros. Como afirma, “a liderança é atingir a grandeza ‘trazendo à tona’ a grandeza dos outros, é um serviço às pessoas”; “a grandeza está relacionada com um sonho sobre mim próprio, sobre as minhas pessoas, sobre os meus amigos, sobre as pessoas que estão ao meu cuidado”, refere também. Ou seja, os traços específicos de um líder são a grandeza e o serviço: “a grandeza é o resultado da prática da magnanimidade; o serviço é o resultado da prática da humildade”.

Em entrevista, o também filósofo especificou melhor os elementos que integram as quatro virtudes cardinais. “A prudência tem o poder de ajudar a tomar as decisões certas; a coragem a de se correr riscos, de se ser persistente, tendo também a ver com a audácia, com a capacidade de se fazer o que se diz. O autodomínio é o poder de direccionar as paixões e as emoções no sentido da realização da missão que escolhemos ter para a vida. E a justiça é a capacidade de comunicar com as pessoas, de as compreender, de dizer a verdade, de praticar a empatia e a misericórdia, de perdoar”.

Para Havard, e em particular no que respeita aos líderes políticos da actualidade, mesmo conhecendo estas virtudes, “existe o medo de correr riscos, o que os faz optar pela segurança na acção, não desenvolvendo a virtude da audácia, não sendo eficazes”. E, recorrendo ao que os gregos antigos denominavam como arete – perfeição na natureza – volta a sublinhar que “quanto mais virtudes tivermos, mais somos”.

“95% do que conseguimos fazer é feito através das nossas virtudes e não das nossas competências”

Tendo em conta o facto de muitas organizações darem prioridade aos lucros de curto prazo em detrimento de considerações éticas de longo prazo, o VER perguntou a Alexandre Havard de que forma é a que a liderança virtuosa poderá contribuir para uma abordagem mais sustentável dos negócios na actualidade. E, na sua visão, é muito simples, residindo a resposta na diferença existente entre gestão e liderança. Como explica, “gerir é conseguir que as coisas sejam feitas no curto prazo, não sendo necessário constituir um processo longo. Basta usar dinheiro, usar maquinaria e usar as pessoas, os recursos humanos”. Ao que acrescenta: “trabalha-se no curto prazo porque se destrói as pessoas. Porque as usamos e não as servimos”. Pelo contrário, “os gestores que são líderes servem e desenvolvem as suas pessoas e olham para o longo prazo. Desenvolvem liberdade, responsabilidade, criatividade, imaginação e as pessoas aprendem ao cometerem erros. Assim, tornam-se melhores, mais eficazes, tornando-se muito importantes para o futuro da organização”. Desta forma e como salienta, “também o longo prazo está relacionado com a virtude. E com a liderança”. “No curto prazo, é só a gestão. Muitas pessoas dizem: ‘eu não quero virtudes, não amo as pessoas, quero só usá-las. Quero ter poder, não preciso de processos, quero ser rico num ano’”. E este é, a seu ver, o mundo em que vivemos. Contudo, na sua opinião, estas empresas não têm futuro: “desaparecem, são compradas por outras, porque a sua ideia não é criar uma cultura corporativa, mas sim fazer dinheiro no curto prazo”.

De regresso às virtudes, Alexandre Havard nomeou as duas virtudes “supremas” da liderança: a magnanimidade e a humildade, que também são poderes, declara. “É o poder da grandeza, de sonhar, e o poder de transformar o sonho numa missão, em acção. Isto é magnanimidade. A humildade é a virtude do serviço, ou seja, se temos humildade servimos os outros. E assim a liderança transforma-se em liderança servidora”, acrescenta.

A seu ver, ao se encarar as virtudes como poderes, estas são melhor compreendidas, devendo ser explicadas desta forma. Em entrevista, afirmou também que “a virtude é um hábito moral que nos dá perfeição e eficácia humana” e que “95% do que conseguimos fazer é feito através das nossas virtudes e não das nossas competências”. Ou seja, “Se tivermos a capacidade de perceber o que se passa à nossa volta e tomarmos decisões que se enquadrem nessa realidade a par da coragem para correr riscos e terminar o trabalho que tem de ser feito, estamos a pôr em prática as nossas virtudes”.

Havard acredita também que estamos a viver na era da do politicamente correcto, do socialmente correcto, do culturalmente correcto e num mundo que abandonou a ética das virtudes, vivendo-se apenas com uma ética baseada em normas ou regras. Desta forma, como diz e especialmente para os jovens, “há que restabelecer a virtude, porque para os mais jovens é mais sedutor serem virtuosos, porque as virtudes transformam as suas vidas, em vez de apenas se limitarem a seguir regras que estão fora de si, a fazer apenas aquilo que os outros esperam deles”.

Assim e para que tal aconteça, “temos a virtude da magnanimidade, que se traduz na luta do espírito, da vontade e do coração para atingir grandes feitos e a virtude da humildade que pode ser dividida em duas: no autoconhecimento e no serviço. Na base da pirâmide encontra-se este autoconhecimento, que é também humildade, no meio encontram-se as quatro virtudes que estão enraizadas no intelecto e no topo erguem-se a magnanimidade e a humildade, que são as virtudes do coração activo. O que significa que as mesmas não são apenas ideias bonitas, mas sim antropologia. Ou seja, é um sistema que nos ajuda a compreender onde nos posicionamos, quem somos enquanto seres humanos e que ‘peças’ nos faltam para atingirmos a plenitude e alcançar a grandiosidade”.

Todavia, e para as pessoas poderem desenvolver as suas virtudes, elas têm primeiro de perceber qual é a sua estrutura biológica, ou melhor, o seu temperamento. Vejamos como.

Colérico, melancólico, sanguíneo ou fleumático?

Num dos seus livros, intitulado “Do temperamento ao carácter: como chegar a ser um líder virtuoso”, Alexandre Havard escreve sobre os denominados temperamentos biológicos, ou, como explica, “aquilo que nos é inato, o que recebemos da Natureza ou, em última análise, o que recebemos de Deus, e há que compreender que para cada temperamento existem forças e fraquezas”. Existem quatro temperamentos: o colérico, o melancólico, o sanguíneo e o fleumático. E, como afirma, “quando se sabe qual é o nosso temperamento, então descobre-se que existe uma virtude que nos desafia permanentemente”.

Assim, para o colérico é a humildade, servir as pessoas e não nos servirmos a nós mesmos, não as usarmos, mas servirmo-las; para o melancólico é a audácia, porque os melancólicos guardam tudo para si e têm dificuldade em implementar, em fazer acontecer; para o sanguíneo é a persistência, o endurance, porque gostam de começar coisas porque é engraçado, mas nunca terminam aquilo a que se propõem e, por fim, para os fleumáticos é o sonho, é a magnanimidade, porque são pessoas que não gostam de sonhar, sendo muito racionais e muito orientadas para a ciência”.

Aprofundado um pouco mais estes quatro temperamentos, é possível defini-los das seguintes formas:

Sumariamente, os coléricos são pessoas de acção, com tendência para estabelecerem objectivos e os perseguirem: geralmente são “gestores naturais”, mas a sua maior propensão é a de se esquecerem das pessoas ou de as usarem para atingir os seus fins, o que os “obriga” a multiplicar a virtude da humildade, que é a virtude de serviço, e a compreender que os seres humanos são muito mais importantes do que as possessões materiais.

Já os melancólicos tendem para o idealismo, gostam de estar consigo mesmos, perseguem ideais elevados, são apaixonados pela beleza, pela estética, tendo desta forma uma enorme propensão para a criatividade. Porque são pessoas muito “profundas”, conseguem produzir obras de grande beleza, mas o problema é que, muitas vezes, não têm a energia necessária para ultrapassar a sua “auto-absorção”, a qual os impede de estar com os outros, de agir, de correr riscos, na medida em que temem o mundo exterior. Têm um sonho, esse sonho é bom na sua cabeça e no seu coração. Mas quando o tentam materializar, percebem que muitos seres humanos têm falhas e não os vão compreender. Neste caso, o desafio é serem mais audazes, arrojados e corajosos.

Por seu turno, os sanguíneos são excelentes comunicadores, gostam das pessoas e gostam, sobretudo, que as pessoas gostem deles, prezam o divertimento e adoram ser o centro das atenções. Mas o seu problema é que vivem no presente e não têm consciência do amanhã. Para este tipo de temperamento, extremamente instável em termos biológicos, o desafio é a estabilidade, a perseverança, o demonstrar que conseguem começar e terminar um determinado projecto.

Por fim, existem os fleumáticos, que são pessoas extremamente racionais, cuja abordagem à realidade é muito científica. São também pessoas muito pacíficas, que odeiam guerras, mudanças e conflitos. Mas o seu problema é que raramente sonham. Assim, o seu desafio é o da magnanimidade, para saírem de si mesmos, para descobrirem novos mundos, para criarem.

E, como acrescenta Havard, “cada temperamento tem uma inclinação: para o colérico é a acção, para o melancólico são os sonhos e as ideias, para o sanguíneo são as pessoas e para o fleumático é a ciência, a racionalidade”.

Desta forma, continua, “é possível usar-se a força biológica que se tem, praticar as virtudes correspondentes e identificar o desafio inerente a cada uma delas, para se encontrar um equilíbrio na vida. O que é tudo muito prático. Para as pessoas que querem pôr em prática as suas virtudes, primeiro há que perceber qual é o seu temperamento, e depois eu ajudo, bem como os meus livros, a identificar as virtudes correspondentes e qual o desafio em particular que se tem de ultrapassar”, remata.

Tendo em conta que o Virtuous Leadership Institute oferece, nos vários países onde opera, programas de formação e workshops, o VER questionou o seu fundador sobre o que podem os participantes esperar obter neste tipo de aprendizagem.

Começando por afirmar que os programas em causa servem, em particular, para conferir ideias muito concretas sobre quais são as virtudes mais desafiantes dos participantes e, consequentemente, os desafios que lhe estão inerentes, Havard diz também que “as pessoas ganham um mapa das suas vidas reais, sem ideologias, descobrindo o que é a essência de se ser humano”. Questões como “quem sou eu?” “qual é o meu problema?” ou “quais são os meus desafios?” conduzem-nos de seguida à descoberta da sua virtude por excelência e como a devem aplicar à sua vida em específico, trabalhando-a em “si mesmos”, refere ainda. Mas, e nas palavras de Havard, mais do que orientação, é-lhes dado “autoconhecimento – quem sou eu biologicamente? quem sou eu espiritualmente? que desafio tenho de ultrapassar? – ao que se segue o conhecimento sobre as acções que devem tomar para que se consigam aperfeiçoar. Ou seja, e em suma, “autoconhecimento, autodesenvolvimento e auto-realização”.


Sobre o criador da filosofia “Virtuous Leadership”

Alexandre Havard é francês de origem georgiana. Formou-se em Direito pela Universidade René Descartes, em Paris, onde exerceu a profissão de advogado, tal como em Estrasburgo e em Helsínquia. Viria a descobrir a sua missão de “atear nos corações a magnanimidade e formar uma nova geração de líderes virtuosos” numa aula com estudantes de Direito. Os seus livros “Virtuous Leadership: A Arte de Bem Liderar” e “Criados para a Grandeza” foram traduzidos em cerca de 20 idiomas. Na sua mais recente incursão na escrita “Seven Prophets and the Culture War: Undoing the Philosophies of a World in Crisis”, Havard identifica sete pensadores influentes aos quais se refere como “profetas” e analisa suas ideias no contexto do cenário cultural actual. Os três primeiros, os “destruidores”, são Descartes, Rousseau e Nietzsche; os restantes quatro, os unificadores, são Pascal, Kierkegaard, Dostoevsky e Soloviev.

Através dos seus livros, seminários e programas de formação, Havard oferece orientação prática sobre como os indivíduos podem desenvolver as virtudes necessárias para a excelência em liderança.

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