O ano que temos pela frente será particularmente crítico a nível global e, mais do que nunca, a cooperação mundial terá de passar da teoria à prática. A forma como serão abordados desafios gigantescos como a resposta à pandemia, as alterações climáticas, a depressão económica e os atrasos cada vez mais críticos no cumprimento das metas dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável determinará as consequências deste tempo histórico que vivemos. Que poderão conduzir a uma vitória ou a uma derrota sem precedentes
POR HELENA OLIVEIRA
“No domínio da política externa, o multilateralismo significa que os Estados cooperam entre si a fim de promoverem objectivos e equilíbrios comuns e regularem interesses concorrentes. Fazem-no porque sabem que, em última análise, todos os Estados colhem os maiores ganhos se trabalharem em conjunto e se acordarem regras. Tal cooperação assenta na partilha de certos princípios e valores por todas as partes. Na era da globalização, quase todos os países da Terra estão interligados. Os conflitos que grassam a milhares de quilómetros de distância podem ter um impacto directo na vida das pessoas na Europa, por exemplo. E fenómenos como as alterações climáticas [ou, mais recentemente, a pandemia global], causam problemas que não são estancados por quaisquer fronteiras, razão pela qual a cooperação multilateral é hoje mais importante do que nunca”.
A definição acima citada é retirada da Alliance for Multilateralism, lançada pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros francês e alemão sob os auspícios das Nações Unidas e que funciona como uma rede informal de países unidos na convicção de que uma ordem multilateral baseada em regras é a única garantia fiável para a estabilidade e a paz internacionais e que os nossos desafios comuns só podem ser resolvidos através da cooperação. Ou, e em suma, consiste em mais uma tentativa de fazer face à urgência de uma cooperação internacional para abordar os desafios que se colocam a todos nós, cidadãos do mundo, mas que fica sempre muito aquém do que seria efectivamente desejável e necessário.
A Covid-19 e as alterações climáticas – a primeira, uma tempestade dramática que atormenta o globo e a segunda, um furacão muito mais mortal – trouxeram uma nova urgência à cooperação internacional. Se é verdade que as primeiras vacinas contra o coronavírus trouxeram esperança de que a pandemia possa ser derrotada em breve, pelo menos para já torna-se crescentemente notório que estamos ainda muito longe de nos afastarmos do perigo. Entretanto, com as Nações Unidas a prepararem-se para assumir um papel de liderança mais efectivo, com um novo presidente dos EUA a prometer um regresso à diplomacia, e com a próxima cimeira das Nações Unidas sobre o clima, marcada para Novembro próximo em Glasgow, 2021 afigura-se como um ano crucialmente significativo para o multilateralismo.
Durante as reuniões da Assembleia Geral da ONU em Setembro último e que marcaram o 75º aniversário da organização, os Estados-membros adoptaram uma declaração política que efectivamente conferiu ao secretário-geral António Guterres uma espécie de “cheque em branco” para fazer avançar uma agenda comum e responder aos desafios actuais e futuros. Esta “agenda comum” apresenta 12 grandes temas – sete temáticos, cinco sobre a actualização do trabalho da ONU – combinando essencialmente a recuperação da pandemia, a resposta à crescente emergência climática e os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável para 2030.
De acordo com uma análise elaborada pela reconhecida revista académica World Politics Review, existem motivos para se esperar que, desta vez, o secretário-geral das Nações Unidas possa exercer o seu mandato de uma forma mais corajosa e eficaz e que este possa ser ancorado no multilateralismo urgente para o momento histórico que vivemos e não tão centrado nos limites institucionais e burocráticos que têm contribuído para enfraquecer cada vez mais o papel e o propósito da ONU.
A anteriormente citada agenda comum foi também fortemente impulsionada por grupos da sociedade civil, os quais fizeram uma série de propostas de reforma específicas no ano passado, embora os termos do seu envolvimento nesta fase seguinte não sejam ainda claros. Da mesma forma, resta saber se os níveis de entusiasmo e ambição demonstrados pelos Estados-membros no âmbito do 75º aniversário da ONU irão agora dar lugar – sob os efeitos da Covid-19 e com a ajuda de novas coligações como a já citada Aliança para o Multilateralismo – a compromissos mais progressistas e concretos.
Os grandes temas estão já à vista: o mundo precisa indubitavelmente de um multilateralismo que funcione crescentemente em rede, que seja eficiente, amplamente inclusivo, justo e sustentável e que responda efectivamente ao desafio global da pandemia e da crise climática, sem esquecer, igualmente, as metas estipuladas nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, as quais parecem cada vez mais longe de serem alcançadas.
De acordo com várias fontes consultadas, o sucesso desta agenda comum depende de quatro grandes tendências que estarão em estreito escrutínio ao longo de 2021. Atentemos a cada uma delas.
A pandemia, as vacinas e os nefastos efeitos colaterais
Em primeiro lugar há que sublinhar que a comunidade global não está a usufruir da cooperação desejável face aos mais recentes desenvolvimentos relacionados com a Covid-19.
Apesar do desenvolvimento aparentemente bem-sucedido das vacinas, será necessária uma estreita cooperação para assegurar não só a sua produção adequada, como também a sua distribuição generalizada a todas as partes do mundo, algo que não está de todo ainda assegurado. Apesar dos mecanismos criados para garantirem o acesso equitativo à vacinação, como o COVAX, os modelos actuais prevêem que não haverá vacinas suficientes para cobrir a população mundial até 2024, leia-se “para os países pobres”, mesmo que a capacidade de fabrico possa ser expandida com investimentos específicos. Há, assim, uma diferença abismal entre os primeiros 500 milhões de pessoas que recebem vacinas e os últimos 500 milhões.
Além disso, a propagação do vírus expôs desigualdades sociais acentuadas em muitos países que provavelmente serão ainda mais agravadas devido às disparidades existentes na disponibilidade das vacinas. E mesmo que a vacina seja administrada com sucesso em todos os cantos do mundo – o que, neste momento, se assemelha a uma espécie de milagre – as réplicas da pandemia poderão prolongar-se no futuro. Complementarmente, uma investigação preliminar do Fundo Monetário Internacional, que abrangeu 133 países ao longo das últimas duas décadas, revela que a agitação social aumentou consistentemente nos anos que se seguiram a cada grande pandemia.
Os sinais do aumento deste tipo de perturbação estão já à vista e existe ainda um outro dado absolutamente preocupante: as Nações Unidas já alertaram que o mundo está à beira da pior crise alimentar dos últimos cinquenta anos, na medida em que a pandemia tem perturbado seriamente as cadeias globais de abastecimento alimentar. E com mais pessoas a cair na pobreza extrema como resultado dos danos económicos infligidos pela Covid-19, o aumento dos preços dos alimentos não poderia vir em pior altura. A ONU prevê que mais pessoas morrerão de subnutrição relacionada com a Covid e doenças associadas do que do próprio novo coronavírus com a desnutrição infantil, por exemplo, a ter repercussões sanitárias e mentais para toda a vida. O Programa Alimentar Mundial acredita que o Iémen, o Sul do Sudão, a Nigéria e o Burkina Faso possam estar já a sofrer de condições graves de fome, com o Afeganistão, Camarões, República Centro-Africana, Congo, Etiópia, Haiti, Líbano, Mali, Moçambique, Nigéria, Serra Leoa, Somália, Sudão, Síria, Venezuela e Zimbabué a não estarem muito longe do mesmo problema. E mesmo nas economias avançadas, os pobres sofrem e continuarão a sofrer com o aumento dos preços dos alimentos numa época em que o desemprego está em níveis crescentemente elevados. A título de exemplo estima-se que nos Estados Unidos mais de um em cada cinco agregados familiares esteja agora em situação de insegurança alimentar.
A longa, desigual e incerta crise económica global
Como já sabemos também, a actual crise económica afigura-se como a pior desde a Grande Depressão e está longe de ter terminado, com muitos efeitos ainda por eclodir. De acordo com as Perspectivas Económicas Mundiais de Outubro de 2020 do FMI, a recuperação será longa, desigual e altamente incerta. O emprego permanece muito abaixo dos níveis pré-pandémicos – sendo ainda prematuro apurar o real embate provocado pela Covid-19 – e com os trabalhadores de baixos rendimentos, os jovens e as mulheres a serem os mais duramente atingidos.
De acordo com Gita Gopinth, conselheira económica e directora do departamento de pesquisa do FMI, “os pobres estão a ficar mais pobres, estimando-se um aumento de cerca de 90 milhões de pessoas que passarão a fazer parte das estatísticas de privação extrema este ano”. Dados publicados esta semana pelo Banco Mundial apontam para a revisão em baixa da projecção do crescimento económico global para 4% em 2021, esperando-se ainda uma contracção de 4,3% em 2020. Como se pode ler no relatório publicado, “depois de um colapso no ano passado causado pela pandemia de Covid-19, a produção económica mundial deverá expandir-se 4% em 2021, mas permanecer 5% abaixo das projecções pré-pandemia”. O FMI sublinha também que este crescimento é em grande parte alimentado pela taxa de crescimento prevista para a China, de 8,2%, mas a maioria dos dados indica que o regresso aos níveis do PIB per capita de 2019 levará vários anos a ser atingido.
Por seu turno, a dívida global proveniente das despesas de emergência provocada pela pandemia, especialmente nas economias em desenvolvimento, está a explodir. A dívida total aumentou em 15 biliões de dólares em 2020 e espera-se que atinja 365 por cento do PIB global até ao final do ano. O FMI teve de desembolsar já ajuda financeira orientada para a pandemia em 81 países e, de acordo com dados da OCDE, prevê-se que os fluxos de capital para países de baixo rendimento diminuam, em 2020, em 700 mil milhões de dólares relativamente aos níveis de 2019. Complementarmente, as economias em desenvolvimento precisam de 7 biliões de dólares para reembolsar a dívida até ao final de 2021. Ou seja, a realidade parece demonstrar que este desespero económic poderá desencadear mais uma crise financeira global. Num esforço para conter a crise crescente, o Grupo dos 20 (G20) criou um “Quadro Comum” (incluindo a China) para gerir o alívio da dívida, mas a relutância do Congresso dos EUA em aprovar quaisquer novos recursos para o FMI poderá minar estes esforços.
As interrogações face à presidência de Joe Biden
Nos seus últimos dias na Casa Branca, o Presidente Donald Trump está a dificultar ao máximo as coisas para o seu sucessor: o Secretário do Tesouro Steven Mnuchin devolveu 455 mil milhões de dólares em fundos de recuperação ao governo, enquanto Trump ameaça a China com vendas adicionais de armas a Taiwan, adverte o Irão de sanções adicionais e retira os Estados Unidos do Open Skies Treaty num novo desmantelamento das medidas de controlo de armas. As sondagens mostram que cerca de 70% dos republicanos acreditam que as eleições foram roubadas a Trump e que a presidência Biden é ilegítima, o que ficou comprovado com a inusitada e inacreditável invasão do Capitólio há dois dias por parte de apoiantes do presidente cessante, algo jamais visto na história dos EUA.
Assim, será necessário um período considerável de tempo em 2021 para que a mudança de administração nos EUA seja verdadeiramente sentida nos corredores da diplomacia e nos muitos “pontos quentes e urgentes” do mundo. O Presidente eleito Joe Biden está já a propor novas políticas e é provável que tome as primeiras medidas, mesmo que simbólicas, logo que tomar posse. Mas traduzir proclamações em actos levará tempo – especialmente com um Congresso dividido, uma agenda considerável de problemas prementes e um Departamento de Estado que tem sido corroído por má gestão e negligência. As primeiras nomeações anunciadas por Biden sugerem um regresso à diplomacia mais tradicional na esfera multilateral, embora com a inclusão muito significativa das alterações climáticas como uma importante questão de política externa e de segurança. Esta fase de “regresso” culminará provavelmente com a primeira aparição de Biden na Assembleia Geral da ONU, em Setembro de 2021.
A problemática cimeira climática em Glasgow
A cimeira climática de Glasgow, a ter lugar entre 1 e 12 de Novembro, será mais uma prova de fogo para o futuro do planeta. São cada vez maiores as advertências científicas de danos acelerados no ambiente; os atrasos e retrocessos por parte dos países na implementação dos seus actuais compromissos de redução das emissões de carbono no âmbito do Acordo de Paris de 2015; uma relativa falta de ambição nas Contribuições Determinadas a Nível Nacional feitas até agora pelos signatários cinco anos depois da assinatura do tratado; um modelo de governação climática baseado na cooperação que ainda tem de provar que pode realmente produzir resultados e, por último, as incógnitas sobre quão profunda e eficaz poderá ser uma recuperação verde global pós-pandemia.
Não esquecendo que a sua economia é a maior do mundo e que ocupa o segundo lugar na lista dos países mais poluidores, uma réstia de esperança reside em Joe Biden e nas promessas que tem vindo a proclamar face ao combate sério das alterações climáticas por parte dos Estados Unidos. Outra boa notícia advém de alguns novos compromissos encorajadores e significativos para que seja atingida uma neutralidade de carbono até 2050, por parte de grandes economias como a China, a Europa, o Japão, a Coreia do Sul, o Canadá e a África do Sul, entre outras.
Todavia e como sabemos, muito dependerá da forma como esses objectivos a longo prazo se traduzirem em políticas para a próxima década. Pesquisas recentes realizadas pelo World Resources Institute alertam para o facto de que se o mundo quiser limitar o aquecimento global no limiar crítico de 1,5 graus Celsius, será necessário acelerar em seis vezes a adopção de energias renováveis face à taxa actual, eliminar cinco vezes mais depressa a energia proveniente do carvão, fazer uma transição 22 vezes mais rápida para os veículos eléctricos e travar urgentemente o agravamento da desflorestação.
O ano que temos pela frente será particularmente crítico a nível global e, mais do que nunca, o multilateralismo terá de passar da teoria à prática. Da cooperação entre os países – ou da falta dela – dependerá, em muito, a próxima década. Quando e como (ou se) nos libertaremos do peso traumático provocado pela pandemia, como agiremos, até 2030, na luta contra as alterações climáticas, como recuperaremos dos atrasos desastrosos relativamente ao cumprimento, cada vez mais longínquo, dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável e como será possível revitalizar a solidariedade global em outras áreas, como por exemplo nos domínios do comércio ou dos direitos humanos, constituem desafios gigantescos que só conjuntamente poderão ser ultrapassados.
Vivemos um momento histórico. Resta saber se o mundo está preparado para fazer dele uma vitória ou uma derrota, esta última com consequências ainda inimagináveis.
Fontes consultadas:
2021 will be a make or break year for multilateralism
Top Ten Risks and Opportunities for 2021
When Inequality is High, Pandemics Can Fuel Social Unrest
A Long, Uneven and Uncertain Ascent
Pandemic fuels global debt tsunami
Risk of famine in four countries, warns UN agencies’ report
A Tenth of the World Could Go Hungry While Crops Rot in Fields
State of Climate Action: Assessing Progress toward 2030 and 2050
Editora Executiva