POR MÁRIA POMBO
Se o mundo fosse perfeito, todas as crianças tinham o direito (e o dever) de rir todos os dias, pelo menos uma vez e durante largos minutos. Entre outros benefícios, rir aumenta o oxigénio no sangue, ajuda a uma boa digestão, promove o relaxamento muscular e, mais importante, faz esquecer os problemas. E a verdade é que muitos problemas deveriam ser assuntos de adultos mas em diversos casos são as crianças que os enfrentam – nomeadamente aquelas que são forçadas a passar temporadas em hospitais, longe das pessoas e dos objectos de que mais gostam.
É para devolver às crianças hospitalizadas este direito de rir e de brincar, muitas vezes perdido entre consultas, tratamentos e diagnósticos complicados que, através dos Doutores Palhaços, a Operação Nariz Vermelho (ONV) intervém, desde 2002, nos serviços pediátricos de diversos hospitais em Portugal. São estes ‘médicos brincalhões’ – artistas com formação especializada em ambiente hospitalar e que utilizam uma linguagem muito próxima para se relacionarem com as crianças e jovens – que semanalmente distribuem sorrisos e espalham alegria junto deste público especial, humanizando os cuidados pediátricos e tornando os dias menos difíceis e “sérios”. A equipa é constituída por 22 Doutores Palhaços e nove profissionais responsáveis pelo “trabalho de bastidor”. Durante 42 semanas por ano, estes artistas visitam mais de 40 mil crianças, em 13 hospitais de várias regiões do País.
[quote_center]Os Doutores Palhaços visitam anualmente mais de 40 mil crianças, em 13 hospitais do País[/quote_center]
Importa referir que, em Portugal, os Doutores Palhaços da ONV são remunerados, mas esta não é uma regra: existem outros artistas de outras organizações que desempenham um papel semelhante mas em regime de voluntariado; este factor é ainda mais notório em países como o Brasil, por se tratar de uma nação onde existem 63 organizações a promover a humanização dos hospitais através de figuras como os Doutores da Alegria, congéneres dos Doutores Palhaços portugueses. Os responsáveis pela ONV indicam também que, embora de forma ainda pouco expressiva, os ‘médicos especiais’, em geral, actuam igualmente em lares de idosos e junto de doentes psiquiátricos e pessoas com deficiência (incluindo adultos).
No entanto, as crianças hospitalizadas, bem como os profissionais de saúde e as famílias, são os públicos por excelência dos Doutores Palhaços da ONV, uma vez que são quem mais usufrui da sua presença: os mais novos, porque ganham um motivo para sorrir; os médicos e enfermeiros, porque lidam com crianças que ficam mais cooperantes com os tratamentos, durante e após a visita dos Palhaços; e os familiares, porque conseguem esquecer os problemas, por alguns instantes, sentindo-se mais acompanhados e reconfortados.
Após vários anos de actividade, e sentindo a necessidade de analisar de forma mais sistemática o trabalho até então realizado, a equipa da Operação Nariz Vermelho tem vindo a apresentar em diversos hospitais (ver Caixa) o livro “Rir é o Melhor Remédio?”. Neste documento são analisados os benefícios da acção dos Doutores Palhaços junto de crianças, adolescentes e respectivos familiares e acompanhantes, e ainda junto de profissionais de saúde. O livro resulta de um conjunto de estudos de doutoramento e mestrado e conta com o apoio do Gabinete de Interacção com a Sociedade do Instituto de Educação da Universidade do Minho (GIS-IEUM). Analisar, legitimar, consolidar e alargar o trabalho desenvolvido por estes artistas, permitindo-lhes ganhar reconhecimento junto da sociedade civil, são os grandes objectivos desta análise.
Crianças entusiasmadas e pais mais felizes
Escrito numa linguagem próxima e informal, bem ao jeito do trabalho desenvolvido pelos Doutores Palhaços, o documento indica que 92% das crianças se esquecem que estão num hospital quando são visitadas pelos mesmos. Adicionalmente, o livro demonstra que, durante as visitas, “um em cada um paciente fica com dores de barriga” (de tanto rir), e “100 em cada 100 pacientes têm delírios e alucinações” (pois pensam estar num parque de diversões); a análise indica ainda que 99% dos utentes revelam “sintomas de dependência” (na medida em que não se importam de ficar mais tempo hospitalizados se isso implicar uma nova visita dos ‘médicos sorridentes’). De forma generalizada, as crianças inquiridas sublinham a importância da acção destes ‘doutores especiais’, os quais lhes devolvem a alegria, curando-as “por dentro”.
No entanto, existem crianças que temem estas ‘figuras de nariz vermelho’. O medo existe principalmente em crianças mais pequenas e debilitadas, as quais estranham as pinturas faciais, achando que aqueles desconhecidos que as visitam lhes podem fazer mal. Sabendo de antemão quem são, a abordagem dos Palhaços é extremamente cuidadosa, respeitando sempre os tempos e as vontades de cada paciente. Após os primeiros minutos, muitas crianças acabam por dar uma oportunidade àquela ‘personagem sorridente’, mas ainda assim (e embora seja reduzida) existe uma percentagem de miúdos que preferem não receber a visita dos Palhaços.
[quote_center]99% dos pais sentem gratidão e 94% sentem empatia e cumplicidade para com estes Doutores[/quote_center]
Por parte dos pais e acompanhantes das crianças, o feedback também é bastante positivo. No entanto, as autoras do livro ressalvam que os testemunhos recolhidos são apenas de familiares de miúdos que passaram curtas temporadas nos hospitais, não tendo sido possível recolher impressões de pais de utentes de palmo e meio cujos internamentos foram mais longos. Ainda assim, verifica-se que a larga maioria dos adultos reconhece o valor dos Doutores Palhaços, nomeadamente porque a hora da sua visita é, muitas vezes, encarada como a “hora de sorrir”.
Nesta medida, 94% dos pais inquiridos referem que os seus filhos recebem os Palhaços com entusiasmo, e 85% contam que os mesmos se esquecem que estão num hospital, durante este período. Complementarmente, 77% afirmam que as crianças colaboram mais com as regras do hospital e 75% dizem que estas cooperam mais com os médicos e enfermeiros, após a visita. Importa ainda salientar que, durante e/ou depois destes momentos de puro divertimento e de acordo com 69%, ou mais, dos progenitores, as crianças comem melhor, dormem melhor, toleram melhor a dor e aceitam melhor a ideia de terem de voltar ao hospital.
Para além de todas as vantagens para as crianças, 98% dos pais revelam eles próprios entusiasmo relativamente à chegada dos Doutores Palhaços, 97% sentem-se felizes por ver o seu filho feliz e 90% colaboram com as brincadeiras dos ‘médicos especiais’. Complementarmente, 90% destes adultos sentem-se mais calmos após a visita e 87% afirmam ficar mais confortáveis (ou menos desconfortáveis) no hospital. Neste sentido, não é de estranhar que 99% dos pais sintam gratidão e que 94% sintam empatia e cumplicidade para com estes Doutores.
Pelos motivos já referidos, 99% desejam o regresso destes Doutores. Muitos familiares salientam também que a abordagem destes artistas é adequada e benéfica, não é intrusiva e não prejudica o trabalho dos profissionais de saúde. A análise revela inclusivamente que para 99% dos pais estes ‘médicos brincalhões’ constituem uma parte importante da equipa que presta cuidados às crianças e adolescentes.
No entanto, 6% dos adultos sentem-se irritados com a presença dos Palhaços e pedem para que os mesmos não voltem. Tal como algumas crianças, diversos pais não aceitam favoravelmente a presença destes ‘médicos’, não por medo mas sim por considerarem que a sua presença não condiz com o tempo de dor e de pesar pelo qual estão a passar. E também nestes casos a vontade das famílias é respeitada pelos Doutores Palhaços.
Médicos: a viagem entre a sisudez e o humor
Para além de conter os testemunhos das crianças e dos seus familiares, as autoras deste livro entenderam que a análise só ficaria completa se contasse também com os depoimentos das equipas médicas e de enfermagem. Neste caso em particular, foram ouvidos médicos e enfermeiros dos hospitais de Portugal (que trabalham directamente com os Doutores Palhaços) e também do Brasil (que partilham os serviços pediátricos com os Doutores da Alegria). Regra geral, “alegria, entusiasmo, aplausos à chegada e protestos à saída” são as principais reacções que os médicos observam junto das crianças hospitalizadas, perante a visita dos ‘doutores sorridentes’.
Para 98% dos especialistas brasileiros, as crianças aguardam com expectativa a visita dos Doutores da Alegria. Em Portugal, 95% dos profissionais de saúde indicam que os pacientes recebem com entusiasmo os Doutores Palhaços. Já os próprios profissionais, tanto portugueses como brasileiros, descrevem os ‘artistas de nariz vermelho’ como “uma lufada de ar fresco” que quebra o ambiente (muitas vezes pesado e triste) do hospital, inundando-o de “jogos, arte, alegria e expressão livre do riso”. Muitos dos médicos e enfermeiros referem que “a quebra das rotinas e das regras, a abstracção momentânea da doença, da dor ou do próprio espaço físico”, e também a capacidade de “devolver o controlo à criança num contexto onde as regras são definidas e ‘impostas’ pelos adultos” são as principais mais-valias das visitas dos Palhaços.
[quote_center]70% dos médicos assumem usar agora o humor para conquistar a colaboração dos pacientes mais novos[/quote_center]
Muitos profissionais assumem também que estas figuras sorridentes são uma “fonte de aprendizagem”. Em Portugal, 70% dos inquiridos admitem usar agora o humor para conquistar a colaboração dos pacientes mais novos, 64% referem que reproduzem algumas brincadeiras para ganhar a confiança destes, e 54% olham para as crianças como “pessoas e não como meros doentes”. Complementarmente, 67% sentem mais prazer com a sua actividade profissional, sublinhando “os benefícios do humor e do riso para a descompressão ou facilitação de determinados processos emocionais presentes entre os profissionais de saúde (como tensão, apreensão, sobrecarga e perda)”.
Complementarmente, estas equipas referem que os Palhaços são importantes na medida em que conseguem ajudar as crianças a “purgar algumas emoções negativas”, ajudando-as a “dominar a angústia presente” e a “transformar alguns elementos da doença e da hospitalização em momentos mais positivos”. Para além da vertente emocional, os ‘doutores de nariz vermelho’ ajudam os mais novos a desmistificar medos – nomeadamente de agulhas – tornando-os mais colaborativos com os próprios médicos e enfermeiros. No fundo, estes ‘doutores sorridentes’ são encarados pelas equipas hospitalares como “mediadores da comunicação dos pacientes com o seu meio mais imediato, criando pontes e facilitando a sua interacção com ‘o outro’”.
É urgente (continuar a) humanizar os serviços hospitalares
De acordo com este livro, a “figura de nariz vermelho” surge também com o objectivo de facilitar a comunicação entre os pais e os próprios filhos, principalmente nos casos mais graves, “gerando momentos de profunda beleza em rituais de despedida onde o palhaço parece surgir como uma espécie de guardião do mundo imaginário da criança, auxiliando os pais (e os próprios profissionais de saúde) no momento da partida”.
Após a análise dos dados, as autoras do documento consideram que o balanço da acção dos Doutores Palhaços no sentido de humanizar os processos de hospitalização é bastante positivo. No entanto, salientam que este percurso está bastante longe do fim, considerando que é ainda dada uma grande importância às “dimensões objectivas da doença” e a todos os conhecimentos técnicos que as mesmas exigem, sendo muitas vezes deixadas de lado as “dimensões subjectivas da doença, do adoecer e do papel fundamental da relação e da intersubjectividade na recuperação”, possivelmente por serem consideradas secundárias.
[quote_center]Durante as visitas, “um em cada um paciente fica com dores de barriga” (de tanto rir)[/quote_center]
Muitos dos inquiridos – entre crianças, familiares e até profissionais de saúde – denunciam falhas na comunicação entre os médicos e os pacientes, referindo que a informação nem sempre é dada nos termos que os utentes desejariam. Neste sentido, por diversas vezes e através da sua “magia” e linguagem próxima e informal, são os Palhaços que facilitam esta ligação e devolvem às crianças e às famílias a paz e a serenidade necessárias para ultrapassar os momentos difíceis, sendo notória a sua “acção terapêutica” junto destes públicos.
Ao ajudarem as famílias na “reconstrução da confiança, esperança e bem-estar subjectivo, assim como na adopção de atitudes mais tolerantes e colaborativas com os procedimentos e actos médicos”, estes artistas conseguem afastar (mesmo que por curtos períodos) as emoções mais negativas, como o medo, a tristeza, o desânimo e a ansiedade. E esta confiança (dos pacientes relativamente a si próprios e entre estes e médicos) pode ser a “chave” para que um doente não desista de lutar pela vida e acredite na cura ou aceite melhor a sua condição.
A não perder
Para além das sessões que já ocorreram, este livro vai ser apresentado também nos seguintes hospitais:
- Hospital São Francisco Xavier: dia 4 de Julho às 12 horas, no Auditório do Edifício Escolar de São Francisco Xavier;
- Hospital Santa Marta: dia 4 de Julho às 15 horas, no Museu McBride;
- Hospital de Cascais: dia 5 de Julho às 11h30, no Auditório.
Jornalista