Num mundo globalizado, com empresas multinacionais operando simultaneamente em vários mercados, com bancos globais e offshores por onde passa dinheiro de todas as proveniências, a corrupção – mesmo nos países mais limpos – nunca é apenas um assunto do vizinho Não é muito fácil encontrar entre cidadãos, empresários e académicos (e muito menos entre responsáveis políticos e judiciais) quem se sinta à vontade a falar sobre corrupção. Existem, claro, excepções, pessoas que apontam os problemas e falam sem pudores das fragilidades sistémicas, da incapacidade das instituições, da visão de curto prazo e da falta de vontade política que nos impedem de progredir de forma mais rápida e consistente no combate a esta chaga social. Mas muitas vezes, quando confrontados, preferimos desviar para canto: “não estamos assim tão mal”, diremos. “Há países muito piores”. A corrupção da vizinha é pior do que a minha. O problema é que, cada vez mais, é difícil perceber qual é a corrupção da vizinha e qual é a nossa. Num mundo globalizado, com empresas multinacionais operando simultaneamente em vários mercados, com bancos globais e offshores por onde passa dinheiro de todas as proveniências, a corrupção – mesmo nos países mais limpos – nunca é apenas um assunto do vizinho. O papel de organizações da sociedade civil como a Transparency International – uma ONG presente em mais de cem países em todo o mundo – é, por isso, fundamental para chamar a atenção das autoridades para os novos fenómenos da corrupção transnacional e mobilizar cidadãos em todo o mundo para este combate. No início deste mês, numa cerimónia integrada nas celebrações dos vinte anos da Transparency International, foi entregue o prémio Integrity Award a duas personalidades cuja coragem e dedicação à causa da transparência e da ética pública são um exemplo para o mundo: o jornalista chinês Luo Changping e o jornalista e activista dos direitos humanos angolano Rafael Marques. Luo Changping ultrapassou a censura que o impedia de nomear nas páginas do seu jornal um alto oficial envolvido em corrupção e tomou a iniciativa de o denunciar no seu blogue pessoal. Este simples mas corajoso gesto forçou um dos Estados mais poderosos do mundo a agir e abrir uma investigação que culminou na destituição deste alto funcionário e na sua expulsão do partido. Rafael Marques, por seu lado, é uma figura conhecida de muitos portugueses. Contra perseguições, detenções e inúmeras outras formas de pressão e condicionamento, incluindo ameaças e espancamentos, Rafael Marques denuncia, há anos, os mecanismos de corrupção no Estado angolano, investigando a fundo e publicando no seu site Maka Angola os detalhes dos negócios promovidos pelas mais altas esferas do poder no país. A atribuição do Integrity Award da Transparency International a estes dois activistas é um reconhecimento merecido da sua coragem e uma forma de tornar mais visível o seu exemplo, para que outros, dos tantos milhões que por este mundo fora sofrem com a corrupção, o possam seguir. Para a Transparência e Integridade, que nomeou Rafael Marques para esta distinção, é um motivo de orgulho ver premiado um homem que, tantas vezes sozinho, continua a desafiar o regime de Luanda e a exigir aos tribunais do seu país que cumpram a lei e defendam os interesses do povo e da justiça.
Há outra razão fundamental para valorizarmos o trabalho de Rafael Marques – e é aqui que a corrupção em Angola nos diz muito respeito. Num Estado de Direito desestruturado como é o angolano, em que as leis existem mas são impunemente violadas, fazer negócio neste mercado promissor vem quase sempre com a obrigatoriedade de associação a figuras do (ou próximas do) poder político ou militar, que se assumem como “protectores” do negócio ao velho estilo mafioso. No sentido contrário, uma onda multimilionária de investimento angolano tem tomado nos últimos anos posições de relevo em empresas chave do sistema económico português, sem que saibamos com rigor de onde vem e por onde passa esse dinheiro, muitas vezes trazido por pessoas que, pelo que resulta do seu estatuto de agentes públicos à luz da lei angolana, não deveriam ter posses para os investimentos que fazem. Numa altura em que a justiça portuguesa tem em mãos investigações a muitos destes negócios, premiar Rafael Marques é incentivar o Ministério Público e os tribunais portugueses a fazerem o seu trabalho, de forma decidida e empenhada, imunes a pressões ou conveniências políticas. Portugal precisa de investimento estrangeiro, mas não pode virar a cara à proveniência de dinheiro suspeito, nem aceitar viver num clima de tensão permanente, em que seja proibido fazer perguntas. Como sabem, melhor do que eu, CEO, CFO e agentes de compliance das empresas portuguesas, todas as organizações que actuam no mercado têm a obrigação de prestar contas. A forma como o fazem é determinante para manterem a confiança dos accionistas, o apoio dos consumidores e a cooperação das autoridades. A corrupção é um imposto arbitrário sobre a capacidade de criar emprego e valor; e quanto mais complacentes formos com ela, mais rapidamente a rapacidade dos corruptos fugirá do controlo, exigindo cada vez mais e mais, numa espiral de instabilidade e empobrecimento que, no fim, nos apanhará a todos. Esta é a hora em que decidimos que tipo de negociantes queremos ser – e, em última análise, se queremos que as empresas e organizações a que dedicamos tanto da nossa vida ainda cá estejam para os nossos filhos, sólidas, íntegras e estáveis, com relações fortes com os seus parceiros, accionistas e clientes. A corrupção não é sustentável. Activistas como Lou Changping e Rafael Marques recordam-nos que, em todo o mundo, haverá sempre cidadãos com a coragem para exigir governos mais responsáveis e empresas mais íntegras e limpas. O tempo está do lado deles. Não deveriam ser eles o nosso mercado? |
|||||
Co-fundador da TIAC – Transparência e Integridade, Associação Cívica