Uma década passada sobre a crise financeira mundial e o sector da banca continua, de forma persistente, a não conseguir incutir uma cultura mais ética nas suas fileiras. Apesar de as ferramentas de vigilância e das mais recentes tecnologias de monitorização estarem a invadir os ambientes de trabalho, continua a ser necessária uma abordagem diferente que consiga, ao invés, identificar as raízes do problema da má conduta e que permita uma reconstrução da cultura da base para o topo, com o empregado no seu centro. Para um número crescente de especialistas, uma das respostas poderá residir na utilização da ciência comportamental
POR
HELENA OLIVEIRA

Os bancos, e algumas empresas de outros sectores, estão a utilizar ciência comportamental para compreender melhor o funcionamento interno das suas culturas e, consequentemente, para combater a má conduta ética. As suas ferramentas e métodos estão a ser usados para detectar padrões de comportamento, individuais e de grupo, os quais, de acordo com os investigadores, influenciam a cultura das organizações e, em muitos casos, também a sua performance. Algumas destas ferramentas são “emprestadas” de ciências díspares como a psicologia organizacional, a economia, a sociologia, a antropologia cultural e a biologia e, em conjunto com a aplicação de novas tecnologias, são capazes de analisar as conversas, as decisões e outras formas observáveis de comportamento.

Henry Engler, editor da Thomson Reuters especializado em regulamentação financeira global, mas também em ética organizacional, lançou recentemente o livro Remaking Culture on Wall Street: A Behavioral Science Approach for Building Trust for the Bottom Up. Depois de muitos anos a acompanhar as histórias de Wall Street, o autor afirma, numa longa entrevista que concedeu à EthicalSystems, que depois de testemunhar uma enorme frustração em muitos bancos no que respeita às questões de comportamento e cultura, em conjunto com a descoberta de um pequeno grupo de instituições financeiras na Europa que estão a utilizar as ferramentas da ciência comportamental para melhorar a sua performance ética, resolveu escrever o livro em causa porque acredita que a sua utilização poderá resultar em um enorme retorno do investimento para as instituições financeiras que desenvolvam este tipo de metodologia e que criem equipas para as aplicar na prática.

De acordo com o livro, desde 2008 que as firmas financeiras já pagaram, em conjunto, mais de 320 mil milhões de dólares em multas relacionadas com a má conduta ética. E, uma década após a crise, e apesar de existirem algumas delas, de grande dimensão, que aumentaram a sua atenção para este tipo de desvios, a esmagadora maioria continua a não ter o nível de compromisso e progresso necessários para ir ao encontro destes desafios, o que explica a persistência da má conduta em muitas firmas.

Engler alerta para o facto de muitas organizações estarem a tentar combater os maus comportamentos através de ferramentas intrusivas de vigilância e monitorização, bem como de medidas coercivas, que apenas reflectem uma ausência de confiança nos empregados, assegurando que é necessária uma abordagem diferente que consiga, ao invés, identificar as raízes do problema da má conduta e que permita uma reconstrução da cultura da base para o topo, com o empregado no seu centro. E, a seu ver, a resposta pode residir na ciência comportamental.

Na longa entrevista já citada e enquanto moderador de um fórum sobre cultura na banca que juntou vários representantes da mesma, em conjunto com especialistas da ciência comportamental, Engler oferece a sua visão sobre os principais problemas éticos da indústria financeira e como é que esta ainda recente ciência os pode abordar e ajudar a reformar a cultura tóxica que nela ainda persiste. Vejamos como.


Falta de confiança, “reg-tech” e vigilância

Sendo a confiança um factor crucial da composição cultural de qualquer instituição e tendo em conta que a crise financeira expôs o seu alarmante declínio seja entre as firmas e os clientes, entre os empregados e os seus gestores e entre os próprios reguladores e as organizações que os supervisionam, o seu restabelecimento, em particular ao nível organizacional, continua a ser mais do que crucial.

Apesar de, idealmente, uma cultura interna não precisar que os empregados sejam vigiados, a verdade é que no ambiente actual, a vigilância é uma prática cada vez mais disseminada, e em particular nos serviços financeiros. Claro que tal se deve exactamente à diminuição de confiança entre os empregados e os gestores, na medida em que o pensamento geral é: se não podemos confiar nos nossos colaboradores para que realizem as suas tarefas de uma forma ética, então a resposta só pode residir na monitorização.

Mas e ao mesmo tempo, o com o desenvolvimento das ferramentas de “reg-tech” – que consiste na “tecnologia ao serviço da regulamentação” e é utilizada, por exemplo, para melhorar o cumprimento da regulação e processos relacionados com o reporting – , a vigilância não deixa de ser o resultado ou sintoma de uma cultura onde essa mesma confiança não existe, sendo que os próprios empregados compreendem que, depois de tantos escândalos, ser vigiado é “parte inerente” do contrato de trabalho. Apesar de não ser um adepto destas tecnologias emergentes, Engler admite que as mesmas são importantes “para fornecer à gestão uma outra ferramenta que identifique os ‘ângulos mortos’ de actividades que podem colocar em risco a organização”, antes de estes se materializarem e aumentarem a sua dimensão, afirma.

Só que a seu ver, tal não é, de todo, suficiente: “a reforma cultural não pode ser feita apenas com estas tecnologias inovadoras”, garante, apesar de saber que a tendência para a tecnologia continuar a substituir indivíduos nas actividades dos bancos ser uma realidade à qual não se pode fugir. “Existem muito poucas razões para esperar que os bancos abrandem a aplicação de tecnologias em áreas em que lhes permitam poupar custos e em funções que ofereçam os mesmos, ou melhores, serviços que antes”, diz também. Todavia, adverte, se é a máquina que agora toma decisões, a forma como o faz torna-se crítica. “Se os algoritmos são desenhados por indivíduos, então torna-se imperativo para aqueles que gerem um negócio perceber o que se passa com estes mesmos algoritmos, mesmo que não possuam as competências técnicas para os desenvolver”, explica. E é por isso que defende também a existência de Ethics Digital Officers, de pessoas que tenham o conhecimento técnico necessário para se sentarem junto do pessoal da tecnologia mas também dos responsáveis pelo negócio para assegurar que a máquina está a fazer o que é devido e que não esteja a pôr a organização em risco.

Já no fórum dedicado à banca, a questão da vigilância e monitorização dos empregados foi tambémdebatida. Hoje em dia, desde as comunicações dos trabalhadores até à quantidade de tempo despendido na secretária, passando pelos padrões de entrada e saída dos edifícios, tudo se encontra debaixo do olho corporativo. As ferramentas de monitorização proliferaram e a inteligência artificial e o software de machine learning estão a ser utilizados para detectar padrões de comportamento e perceber as redes de comunicação internas. Mas, e tal como afirma Engler, enquanto este tipo de vigilância pode ser uma ferramenta útil de gestão de risco, pode também, e por outro lado, dificultar os esforços de restabelecimento da confiança e a promoção de comportamentos mais éticos. No fórum foi chamada a atenção para o facto de a vigilância “excessiva” poder ter um impacto negativo no comportamento, principalmente se os trabalhadores sentirem a enorme pressão para não errarem, o que constitui parte integrante de qualquer trabalho. Por outro lado, muitas decisões têm de ser tomadas em fracções de segundo, com os empregados a serem confrontados com escolhas que podem prejudicar tanto o individuo como a própria firma. O que implica que se tenha de apostar num equilíbrio entre a vigilância e o estimular de um ambiente no qual os trabalhadores sintam que podem falar com os gestores quando são confrontados com decisões que podem levar ao erro.


Como a ciência comportamental pode ajudar a uma cultura mais ética

De acordo com Engler e com as pesquisas que fez para o seu livro, existem alguns bancos, particularmente na Europa, que estão a criar equipas de risco comportamental para complementar as suas funções de compliance e de gestão de risco. E, como explica o autor, parte da sua função consiste em “misturarem-se” com unidades de negócio onde existe um risco ou um problema já identificado. Por exemplo, os seus membros podem assistir a reuniões, entrevistar as pessoas dessas mesmas unidades de negócio, conduzir inquéritos e organizar focus groups para perceberem melhor o seu funcionamento. E, ao longo destas avaliações em “profundidade”, as equipas de ciência comportamental conseguem identificar padrões de comportamento tanto no staff, como na própria equipa de gestão, os quais precisam de ser “intervencionados”. O objectivo principal destas equipas, cujos membros podem ter, e por exemplo, formação em psicologia organizacional, é o de identificar possíveis “ângulos mortos” no interior das organizações em termos de comportamento dos empregados, aplicando metodologias específicas para identificar as áreas e os indivíduos que podem representar um risco, tentando geri-lo antes de este se tornar mais grave.

Para Engler, o trabalho árduo da reforma cultural faz-se exactamente nas bases e em particular com os gestores intermédios, cuja função é atingir objectivos de elevada performance. Como explica, “é uma área em que as unidades de negócio em causa podem aparentar estar a fazer um bom trabalho, pelo menos à superfície mas, quando se escava mais fundo, não se perceber, muitas vezes, de que forma é que esses bons resultados foram alcançados. O autor elabora algumas perguntas pertinentes que são igualmente função das equipas de ciência comportamental, como por exemplo: “a parte bem-sucedida da organização trata os seus clientes de forma justa ou está simplesmente a envolver-se com práticas de negócio que são enganadoras ou fraudulentas?; no que respeita ao clima existente na unidade de negócio em causa, “os gestores permitem a existência de opiniões contrárias às suas sobre como lidam com os seus clientes ou entre si?”; podem os gestores ser desafiados pelos empregados?”, sendo que, se tal não acontecer, então estes últimos podem-se sentir relutantes em abrir a boca quando testemunham algum comportamento que possa colocar um risco à organização, entre outras questões relevantes sobre a cultura vigente.

Engler enfatiza a ideia de que é necessário perceber por que motivo as unidades de negócio bem-sucedidas no interior de uma grande organização conseguem atingir o sucesso, na medida em que esta é uma área onde os gestores mais seniores simplesmente aceitam os resultados finais sem questionar os meios para os atingir. Como escreve, “já vimos – e infelizmente continuamos a ver – exemplos de indivíduos que são bem-sucedidos e extremamente influentes no interior da organização atingindo esses bons resultados através de meios que acabam por ser prejudiciais para a firma”.

A questão geracional também entra na equação ética das organizações, a par da dificuldade que existe em alterar a cultura de forma célere. “Como sabemos, uma cultura não se muda do dia para a noite, especialmente quando no passado sempre existiu uma certa forma de fazer as coisas, que está disseminada e é admitida pela gestão intermédia e pelos mais seniores como ‘a maneira de fazer as coisas’”, declara Engler, afirmando mesmo que muitos reguladores têm por hábito afirmar que a reforma cultural pode ser encarada como uma verdadeira questão geracional, e como “algo que só irá mudar verdadeiramente com o tempo e quando as pessoas forem substituídas por outras”.

Adicionalmente, tem havido sugestões na indústria financeira no sentido de as firmas incorporarem prospectivamente formas de avaliação, no que respeita à ética e à capacidade de julgamento dos empregados na altura do seu recrutamento. Por outro lado, existem já várias empresas, de grande dimensão, que estão a incluir uma avaliação ética dos empregados para determinar se estes merecem receber ou não um bónus anual. Um bom exemplo é o gigante farmacêutico Novartis que anunciou, o ano passado, a integração da avaliação ética nos seus processos de avaliação “normais”.


O problema das subculturas e a partilha do propósito

No âmbito das reformas culturais de que a indústria financeira precisa, refere também o autor, um dos grandes desafios prende-se com o facto de existirem – nas grandes e complexas organizações com negócios múltiplos e a operarem em diferentes pontos do globo –subculturas distintas. O que geralmente acontece é que, com o tempo, estas unidades começam a desenvolver a sua própria linguagem, as suas formas específicas de operar e, no pior dos cenários, acabam por se divorciar dos princípios éticos e culturais da empresa-mãe. Assim, é muito difícil para a gestão de topo saber exactamente o que se passa quando estas subculturas são desenvolvidas e também neste caso a ciência comportamental pode ajudar. O verdadeiro desafio neste caso não é, propriamente, detectar “a cultura” da instituição financeira em causa, mas compreender as suas diferentes subculturas e saber se as mesmas estão a contribuir para maus resultados comparativamente aos princípios e valores alargados vigentes na empresa-mãe.

Questionado ainda sobre os maiores desafios enfrentados pelas organizações para melhorar a sua ética e respectiva cultura, Engler afirma que os mais complexos estão relacionados com a forma de envolver os empregados de uma forma que estes acreditem que o seu papel é verdadeiramente importante e que existe um propósito partilhado em toda a organização. E, em particular na indústria financeira, complicada é também a ideia de se ter uma carreira e acreditar que os superiores hierárquicos estão legitimamente interessados no eu bem-estar a longo prazo dos seus empregados no interior da organização. Tal como acontece na esmagadora maioria dos sectores, também a noção de ter uma carreira longa na banca já não é o que era. “E a própria natureza de curto prazo que contagiou o mundo dos negócios leva a decisões que têm maior impacto nos empregados do que outrora, o que acabou por resultar num maior nível de cinismo, auto-interesse e auto-preservação por parte destes”, afirma Engler. Ou e por outras palavras, os empregados também têm níveis muito mais reduzidos de lealdade para com as empresas em que trabalham.

Assim, e para o autor, se as organizações querem mesmo que as suas culturas sofram mudanças para melhor e que os seus empregados não incorram em más práticas éticas, o melhor seria olharem novamente para os seus modelos de negócio e tentarem “reinstalar” objectivos de longo prazo e não se esquecerem que, na actualidade, a gestão já não pode concentrar-se no valor para o accionista como o seu principal propósito. Pelo contrário, terá de ir bem mais além do que isso.

Editora Executiva