Tal como as suas antecessoras, a nova fase de globalização que gradualmente começa a instalar-se entre nós será moldada fruto de uma combinação entre decisões de governança e de desenvolvimentos tecnológicos. Mas num mundo crescentemente fracturado, só com um “resgate” da capacidade de união da comunidade internacional e com muita criatividade é que estaremos prontos para receber a apelidada globalização 4.0
POR HELENA OLIVEIRA
A reunião que todos os anos tem lugar em Davos discutiu, na sua edição de 2019, a denominada Globalização 4.0 e o facto de as relações internacionais e a economia mundial se encontrarem num ponto de viragem. Num artigo publicado pelo fundador e presidente do Fórum Económico Mundial, Klaus Schwab, relembrou-se que, e a seguir à Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional se uniu na tentativa de construir um futuro partilhado. O Acordo de Bretton Woods, que reuniu mais de 700 representantes de 44 países em 1944, serviu para estabelecer um novo sistema monetário internacional, com o objectivo de evitar a desvalorização das moedas e promover um crescimento económico internacional e a Conferência de Dumbarton Oaks, no mesmo ano, colocou à mesma mesa as grandes potências da época – Reino Unido, Estados Unidos, China a União Soviética – lançando a semente para o que viria a ser a ONU.
Assim, e de acordo com um novo paper publicado a passada semana pelo Fórum Económico Mundial (FEM) e intitulado, em tradução livre, “Globalização 4.0: uma chamada para o compromisso”, face às mudanças radicais que estamos a viver em termos geopolíticos, ambientais e sociais, o mundo deveria inspirar-se nos acordos multilaterais acima mencionados para conseguir seguir uma trajectória capaz de responder aos múltiplos desafios enfrentados na era actual.
O paper sublinha a necessidade de começarmos a compreender o quão profundamente o contexto para a governança e cooperação está a mudar graças à Quarta Revolução industrial (termo cunhado pelo próprio FEM, mas adoptado globalmente). Economias, negócios, sociedades e políticas estão a ser crucialmente afectados pelos avanços em áreas como a inteligência artificial e o machine learning, a internet das coisas, os veículos autónomos, os drones, a medicina de precisão e a genómica, as redes inteligentes, a robótica e o big data, sendo que estas alterações estão a dar origem a desafios fundamentais na forma como as economias e as sociedades se estão a organizar a nível interno e no modo como a comunidade internacional está a cooperar através das suas instituições e acordos.
Como escreve Klaus Schwab no seu artigo, e referindo-se ao discurso populista que parece estar em modo contágio e que, supostamente, é a resposta a tempos de incerteza e frustração disseminadas, este “confunde” a diferença existente entre dois conceitos distintos: globalização e globalismo. “A globalização é o fenómeno estimulado pela tecnologia e por um movimento de ideias, pessoas e bens”, ao passo que o globalismo consiste em “uma ideologia que dá prioridade à ordem global neoliberal em detrimento dos interesses nacionais”. Como escreve ainda o presidente do FEM, “ninguém pode negar que vivemos num mundo globalizado, mas se todas as nossas políticas deveriam ser ‘globalistas’ é algo muito discutível”.
Afirmando que este momento sui generis que estamos a viver levanta questões importantes sobre a arquitectura de governança global, e com cada vez mais eleitores a exigirem o “regresso do controlo” como se este tivesse sido roubado pelas “forças globais”, Schwab afirma que o grande desafio reside em “restaurar a soberania num mundo que requer cooperação”.
Disrupção tecnológica e mais três
No paper em causa, e como seria de esperar, o alerta vai para a urgência de novos modelos políticos e acordos cooperativos que consigam ajudar as sociedades a maximizar os benefícios e a mitigar os riscos dos avanços tecnológicos, os quais estão a alimentar a disrupção e a recombinação de indústrias; a desmaterializar a criação de valor; a alterar a natureza da concorrência nos produtos domésticos e nos mercados de capitais e laborais, em conjunto com as estratégias de comércio e investimento dos países; as questões crescentes relativas à gestão corporativa e governamental dos dados pessoais à medida que estes se tornam cada vez mais centrais à actividade económica e ao exercício de cidadania e, por fim, o aumento da preocupação de que todas estas mudanças possam exacerbar ainda mais a desigualdade e gerar deslocações de trabalhadores e comunidades a uma escala e ritmo descontrolados.
Esta onda de disrupção tecnológica é coincidente e está a interagir com outras três grandes alterações no contexto político e económico global: uma urgência crescente de um conjunto de imperativos ecológicos, que incluem o aquecimento global, mas não só; a crescente “multipolarização” das relações internacionais e a “plurilateralização” da economia mundial, e o crescente descontentamento social no interior de muitos países relacionados com a iniquidade dos resultados socioeconómicos derivados do crescimento económico.
De acordo com o paper, estas quatro transformações estão a combinar-se para dar origem a uma nova fase da globalização – a 4.0 – cuja trajectória dependerá, em larga medida, de quão bem a governança em múltiplos níveis – governamental, corporativo e internacional – se adaptará a estas mudanças. E, como acrescenta Klaus Schwab no seu artigo, “temos de passar de uma narrativa de produção e consumo para uma outra de partilha e cuidado”.
Ela está aí, mas não estamos preparados para a Globalização 4.0
A globalização 4.0 está, e para já, apenas a tomar forma. Pelo meio, eventos como o Brexit, as mudanças de rumo nas políticas dos Estados Unidos provocadas pela administração Trump, os desenvolvimentos que envolvem questões como a imigração, a protecção de dados e a segurança, a estratégia de investimento da China, a integração europeia feita a ritmos diferentes e o impacto da automação no futuro do trabalho e no desenvolvimento económico sugerem que já estamos a entrar numa nova era onde os pressupostos a que nos habituámos já não têm lugar.
Tal como as suas antecessoras, esta nova fase da globalização será moldada mediante uma combinação entre decisões de governança e desenvolvimentos tecnológicos. E à medida que as tecnologias emergentes estão a transformar os nossos sistemas de saúde, transportes, comunicações, produção, de distribuição e energia – e só para citar alguns -, teremos de construir uma nova sinergia entre as políticas públicas e as instituições, por um lado e, por outro, entre o comportamento corporativo e as normas, para que seja possível à humanidade erguer-se para além de escolhas falsas que, por vezes, são colocadas.
Apesar de por vezes parecer, o paper sublinha que não estamos a enfrentar uma escolha drástica entre comércio livre e proteccionismo, tecnologia e postos de trabalho, imigração e identidade nacional ou crescimento económico e equidade social, sendo estas falsas dicotomias. Todavia, ressalvam, a proeminência destas polémicas no discurso político contemporâneo ilustra o quão mal preparados estamos para a Globalização 4.0.
Porque as mudanças em curso na actualidade não se circunscrevem a um país em particular, indústria ou questão, as mesmas só poderão beneficiar de uma abordagem global ou de uma perspectiva sistémica. Na verdade e como defende o documento, a verdadeira universalidade deste desafio de governança cria uma importante oportunidade para as relações internacionais, pois pode fornecer uma base para um projecto comum numa altura em que a comunidade internacional se encontra fracturada a vários níveis.
E é também por isso que se pede inspiração a Dumbarton Oaks e a Bretton Woods, os dois processos de reflexão e diálogo que ocorreram no fim da Segunda Grande Guerra.
Segundo o paper, o que é necessário hoje é um processo análogo de reflexão e diálogo, mas mais inclusivo e sustentado, sobre o que significa a Quarta Revolução Industrial e as profundas mudanças ecológicas, geopolíticas e sociais dos nossos tempos para a modernização da cooperação internacional e governança doméstica.
Como afirma Schwab no seu artigo, esta “tarefa” irá implicar pelo menos duas coisas por parte da comunidade internacional: um envolvimento e compromisso alargados em conjunto com muita imaginação. O envolvimento de todos os stakeholders num diálogo sustentado será crucial, bem como a imaginação para pensar sistemicamente e para além de considerações de curto prazo institucionais e nacionais.
Sistema multilateral e progresso humano
Quando a cooperação internacional funciona, os resultados, mesmo que lentos e menos favoráveis do que gostaríamos, reflectem-se na humanidade. Seguem-se alguns exemplos.
Pobreza
Em 1950, dois terços da população mundial vivia em pobreza extrema. Este número desceu para 42% em 1980 e para 10% em 2015. Desde 1990 que uma média de 130 mil pessoas por dia deixou de viver abaixo da linha de pobreza. A classe média global expandiu-se de mil milhões de pessoas por volta de 1985 para cerca de dois mil milhões em 2016 e para cerca de 3,2 mil milhões na actualidade. As estimativas apontam para que cresça alguns milhões adicionais ao longo da próxima década e para cinco mil milhões antes de 2030.
Desenvolvimento
A Associação Internacional para o Desenvolvimento – o fundo do Banco Mundial para os mais pobres – consiste em uma das maiores fontes de ajuda global, proporcionando auxílio para as áreas da saúde e da educação, infra-estruturas e agricultura e para o desenvolvimento económico e institucional. Desde o início da última década, e como resultado do seu apoio, aproximadamente 274 milhões de crianças foram imunizadas, 657 milhões de pessoas receberam cuidados de saúde essenciais, 140 mil quilómetros de estradas foram construídas ou reabilitadas, 86 milhões de pessoas melhoraram o seu acesso a água potável e 8,5 milhões de professores foram recrutados ou formados.
Saúde materna e infantil
Com o apoio da UNICEF e da Organização Mundial da Saúde e assumida como uma das prioridades do Objectivos do Desenvolvimento do Milénio, a mortalidade infantil foi reduzida para metade entre 1990 e 2017. A mortalidade materna caiu 43% entre 1990 e 2015. E o número de crianças vítimas mortais de causas evitáveis relacionadas com a pobreza, fome e as doenças caiu para metade desde 1990.
Fome e desastres naturais
O Programa Alimentar das Nações Unidas é o maior fornecedor de ajuda humanitária, fornecendo alimentos a 90 milhões de pessoas em condições de vulnerabilidade por ano, das quais 58 milhões são crianças.
Educação
O número de crianças em idade escolar e sem frequentarem um estabelecimento de ensino declinou 44% desde 1990, graças em grande parte também aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio e do processo de monitorização coordenado pela UNESCO.
Direitos laborais
O trabalho infantil apresentou um declínio de 40% no período entre 2000 e 2016, em particular devido ao consenso e recursos mobilizados pela Declaração dos Princípios Fundamentais e Direitos no Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT), organização vencedora do Prémio Nobel da Paz em 1969 e que celebra este ano o seu 100º aniversário. No total, esta instituição foi responsável pela ratificação de quase 200 convenções, muitas delas assumindo-se actualmente como garantia dos direitos, dignidade e segurança das pessoas no local de trabalho.
Paz e segurança
As Nações Unidas negociaram aproximadamente 175 acordos de paz que colocaram um ponto final em conflitos regionais, sendo-lhe atribuído o crédito de mais de 300 tratados internacionais em tópicos tão variados como as convenções para os direitos humanos ou os acordos relativos à utilização do espaço sideral e dos oceanos. A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou igualmente o Tratado para a Não-Proliferação das Armas Nucleares em 1968 e o Tratado para a Eliminação de Testes Nucleares em 1996.
Refugiados
Mais de 30 milhões de refugiados em situações de fuga da guerra, da fome ou de perseguições receberam ajuda do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, o qual ganhou o Prémio Nobel da Paz em 1954 e 1981.
Direitos Humanos
As Nações Unidas têm tido também um papel principal no elevar das consciências relativas aos direitos humanos, com o início da adopção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral em 1948. A Comissão para os Direitos Humanos da ONU e através das suas investigações e assistência técnica na promoção de eleições livres e justas tem vindo a ajudar muitos países na sua transição para a democracia. O Tribunal Internacional de Justiça tem vindo, igualmente, a ajudar a resolver numerosas disputas internacionais envolvendo questões territoriais, resgate de sequestros e direitos económicos.
Estabilidade macroeconómica
Desde os anos de 1950, e em cada ano, uma média de 30% dos países-membros do Fundo Monetário Internacional (totalizando actualmente 189) participaram em programas de apoio a crises de endividamento e dificuldades na balança de pagamento, incluindo cerca de 10% dos países desenvolvidos desde a década de 50 à de 70 do século XX e, uma vez mais, na crise financeira de 2008-2009.
Editora Executiva