É a primeira vez que acontece: 39% das “saídas forçadas” de CEOs das maiores empresas do mundo no ano passado deveram-se a “lapsos éticos”, uma forma simpática de denominar fraudes, subornos, divulgação de informação privilegiada, desastres ambientais, currículos falsificados e assédio sexual. A conclusão é de um estudo divulgado em Maio último pela PwC que, há 19 anos, analisa a taxa de turnover dos CEOs das 2500 empresas com maior capitalização bolsista no mercado
POR HELENA OLIVEIRA
Ao longo de décadas, a principal razão que levava as cabeças dos CEOs a rolar era a má performance. Mas dados relativos a 2018 comprovam que o panorama está a mudar e, em princípio, pelos mais errados motivos. De acordo com um estudo divulgado em Maio último pela Strategy&, a divisão de pesquisa da PricewaterhouseCoopers (PwC), a má conduta e os lapsos éticos figuram agora como a principal causa de queda dos pedestais destes executivos de topo que têm nas mãos o destino de grandes empresas.
Há 19 anos que esta divisão da PwC “rastreia” o turnover de CEOs das 2500 maiores empresas cotadas do mundo (de acordo com a sua capitalização bolsista), analisando os principais motivos das suas saídas – programadas, forçadas ou voluntárias – e dois recordes foram batidos no ano passado: o número de afastamentos – 17,5% versus 12% em 2010 – e o facto de, pela primeira vez desde que o estudo é feito, os CEOs terem sido despedidos mais por má conduta ética do que por um pobre performance ou desentendimentos com os conselhos de administração, as razões que, tradicionalmente, figuravam no topo da lista.
A percentagem impressiona: dos 89 CEOs que, no ano passado, abandonaram o cargo mais desejado das empresas, 39% dos mesmos fê-lo devido a violações éticas. Ou melhor, não os abandonaram, mas foram mesmo forçados a sair (leia-se ‘despedidos’). Dos demais afastamentos, 35% resultaram de uma má performance financeira e apenas 13% tiveram como causa conflitos ao nível do conselho de administração ou com investidores activistas, mas sem relação com questões financeiras. Em 2008 – ano em que a crise prometia fazer rolar muitas outras cabeças – apenas 10% dos CEOs foram forçados a sair devido a este tipo de “incidentes do foro ético” e a percentagem era inferior a 25% em 2013. Em termos médios, a percentagem de saídas por questões de má conduta ética ao longo dos últimos dez anos foi de 21%.
[quote_center]Dos 89 CEOs que, no ano passado, abandonaram o cargo mais desejado das empresas, 39% dos mesmos fê-lo devido a violações éticas[/quote_center]
Por “lapsos éticos”, a PwC está a referir-se a fraudes, subornos, divulgação de informação privilegiada, desastres ambientais, currículos falsificados e/ou insuflados ou assédio moral ou sexual.
Mas esta proeza não significa que os CEOs estão cada vez menos éticos face ao passado – apesar de também não significar o contrário -, mas que o facto de vivermos na era da transparência origina um maior escrutínio, tanto por parte dos stakeholders externos como internos e que os conselhos de administração já não fecham tanto os olhos a maus comportamentos como o faziam até há relativamente pouco tempo. O mesmo acontece com os investidores e reguladores que deixaram de ser tão permissivos quanto era habitual.
Uma das razões apontadas para este número recorde de saídas por ausência de ética está também relacionada com questões de assédio sexual – vários CEOs viram-se obrigados a desistir dos seus cargos e carreiras por causa de mau comportamento neste âmbito – e do tremendo eco e repercussões associados ao movimento #MeToo. Todavia, e apesar da força de este movimento ser citada em muitos artigos que analisaram os principais resultados do estudo, a mesma serve mais para enfatizar o poder da tecnologia no geral, e dos media sociais, no particular, em dar voz a quem anteriormente não a podia expressar, e não como “o” exemplo por excelência para explicar este recorde de saídas devido a má conduta ética.
Tolerância zero?
Porque o estudo tem como objectivo quantificar e analisar a taxa de turnover dos CEOs em todas as suas vertentes, de acordo com a Strategy&, existem três razões por excelência que explicam o número recorde de saídas de CEOs em 2018, num ambiente de negócios crescentemente assolado por vários tipos de pressões.
A primeira, e inócua, é chamada de “saída programada”, na qual os CEOs sabem de antemão que têm de passar o testemunho a um sucessor, seja porque atingiram a idade de reforma ou porque “esgotaram” o número de mandatos, sendo que o ano de 2018 marca o mais elevado nível de saídas desta natureza desde o virar do século. Exemplos de CEOs de topo que deixaram o leme de grandes empresas incluem Lloyd Blankfein, que liderou a Goldman Sachs ao longo de 12 anos e Ian Read, que presidiu aos destinos de uma das maiores farmacêuticas do mundo, a Pfizer, durante oito anos. Outras saídas de “peso” incluem também a do CEO da Unilever, Paul Polman e a de Indra Nooyi, uma das mulheres mais poderosas na área dos negócios e que liderou a Pepsi também ao longo dos últimos 12 anos.
A segunda razão tem a ver com o também aumento do número de saídas resultantes de uma fusão ou aquisição, na medida em que ter dois capitães a mandar no mesmo barco é tarefa impossível.
[quote_center]São vários os exemplos de executivos de topo que prevaricaram e deixaram que as suas violações éticas dominassem as notícias[/quote_center]
Mas o que realmente interessa neste caso é a categoria das saídas forçadas que, geralmente, resultam de uma má performance, sendo esta a categoria que foi destronada este ano pelas já mencionadas “questões éticas”. Em 2018 em particular, a mais mediática partida foi a de Matthias Müller, o patrão da Volkswagen, que foi mesmo obrigado a sair da gigantesca empresa depois do enorme escândalo das emissões – que ficou conhecido como Dieselgate – e que até agora custou a módica quantia de 15 mil milhões de dólares em multas e compensações.
Mas Müller não foi o único a fazer parangonas nos jornais – e em todo o lado. São vários os exemplos de executivos de topo que prevaricaram e deixaram que as suas violações éticas dominassem as notícias, como é o caso de Martin Sorrel, o antigo CEO de uma das maiores empresas de marketing e publicidade do mundo, a WPP, a qual foi por ele liderada ao longo de 33 anos e que acabaria por cair do trono devido a má conduta financeira e outras alegações de “incorrecção”ou a do CEO do canal televisivo CBS, Les Moonves, acusado de comportamento indevido e de abusos sexuais, alegações que remontam à década de 1980 (que o mesmo nega) e que vieram a lume, e mais uma vez, devido ao movimento #MeToo.
De acordo com Marc Hoogenberg, partner na Strategy&, e num comentário ao estudo, “no ano passado assistimos a vários exemplos de circunstâncias pessoalmente relacionadas com os CEOs, tais como suspeitas de fraude e de assédio sexual”. E, acrescenta, “os media sociais e o movimento #MeToo que teve início em Outubro de 2017 estão a ter um papel crescentemente importante neste tipo de desenvolvimentos”. O maior escrutínio a que estão também sujeitos os executivos de topo contribui também para que o número destes casos seja mais expressivo. As crescentes exigências por parte de stakeholders internos e externos para que reine a transparência na conduta dos CEOs e a necessidade de “corrigir” os seus maus comportamentos é uma realidade cada vez mais presente. Como também declara Hoogenberg, “as negligências e os abusos que acabam por vir à tona conduzem a estas saídas forçadas de CEOs, na medida em que estes são directamente responsáveis pelas operações [das empresas]”.
[quote_center]As crescentes exigências por parte de stakeholders internos e externos para que reine a transparência na conduta dos CEOs e a necessidade de “corrigir” os seus maus comportamentos é uma realidade cada vez mais presente[/quote_center]
Mas serão estas más ou boas notícias para o panorama empresarial? Depende muito do ponto de vista, como afirmam os próprios analistas da PwC, os quais são unânimes em concordar que existem poucas provas tangíveis que indiquem que os CEOs da actualidade sejam menos éticos do que os seus antecessores.
Assim, as notícias poderão ser consideradas muito negativas se realmente estivermos perante um número crescente de comportamentos moralmente deploráveis e que incluam os desvios éticos de natureza variada incluídos pela PwC nesta análise e já anteriormente referidos.
[quote_center]Os analistas da PwC são unânimes em concordar que existem poucas provas tangíveis que indiquem que os CEOs da actualidade sejam menos éticos do que os seus antecessores[/quote_center]
Mas também poderão ser boas notícias se pensarmos que os padrões de exigência poderão estar a aumentar, o que já devia ter acontecido há muito tempo. Apesar de não existir forma de comprovar se, realmente, os CEOs estão menos éticos do que em anos anteriores, são vários os observadores que consideram que esse pode não ser o caso, mas sim o facto de estarmos perante um clima de menor tolerância face a maus comportamentos de ordem variada, tanto por parte da sociedade, como dos próprios conselhos de administração.
Até há algum tempo a esta parte, eram muitos os membros dos conselhos de administração que preferiam adoptar uma postura de cegueira face às más condutas dos intocáveis CEOs e evitar qualquer tipo de controvérsia, em particular nos casos em que estes últimos cumpriam com os resultados financeiros desejados. Hoje em dia, essa estratégia deixou de ser viável (ou é, pelo menos, pouco inteligente).
[quote_center]Estamos a viver um clima de menor tolerância face a maus comportamentos de ordem variada, tanto por parte da sociedade, como dos próprios conselhos de administração[/quote_center]
Num artigo sobre o estudo publicado pela NPR, John Paul Rollert, um professor de Ética e Liderança da Universidade de Chicago, afirma que estamos perante uma nova era de “tolerância zero”, muito graças às pressões societais e também ao movimento #MeToo. “As empresas estão a reconhecer que se não forem agressivas face a este tipo de comportamentos, acabarão por enfrentar encargos gigantescos se os casos chegarem aos tribunais”, afirma, acrescentando ainda que é melhor abordar os acontecimentos no imediato do que lidar com acções judiciais no valor de milhões de dólares depois e com toda a consequente má publicidade que os mesmos acarretam.
No mesmo artigo, Bill George, da Harvard Business School e ex-CEO da Medtronic afirma também que “os conselhos de administração já perceberam que o golpe reputacional da inacção é muito mais pesado do que o da acção”. Em declarações ao Washington Post, Bill George afirmou estar também convencido de que, na actualidade, “os conselhos de administração sentem que os CEOs devem cumprir os seus códigos de ética e serem responsabilizados pelas suas infracções tanto quanto os seus empregados” e que são os próprios trabalhadores a pressionar para que tal aconteça. “Este é um factor importante que não existia há dez anos”, acrescenta ainda o senior fellow de Harvard, que acredita genuinamente que não foi a conduta que sofreu alterações, mas sim os próprios padrões vigentes em matéria de ética empresarial.
As expectativas e as regras mudaram
O facto de ser a ética e não as métricas financeiras a constituir a causa principal para que os CEOs sejam despedidos diz muito sobre a época em que vivemos. E são os próprios analistas da PwC que “culpam” uma dupla de factores que, até agora, não tem sido alvo de discussão nas escolas de negócios: a cultura empresarial e uma profunda mudança nas regras e nas expectativas, sendo a tecnologia central a esta alteração. Como se pode ler num artigo publicado pelo Finantial Times e tomando como exemplo, e mais uma vez, o movimento #MeToo, que “explodiu” em 2017 e criou um ambiente que contribuiu para o afastamento não só de alguns CEOs, mas de muitas figuras públicas de vários sectores da sociedade, a verdade é que há muito que circulavam rumores de assédio sexual nas empresas (e não só). Ou seja e como é óbvio, o fenómeno não é recente. Todavia, nenhuma cabeça rolava simplesmente porque as alegadas vítimas não queriam, nem podiam, partilhar as suas experiências.
[quote_center]Vivemos agora numa era de “confiança distribuída”, em que se dá mais ouvidos “à voz das multidões online” do que às que, outrora, estavam revestidas de maior autoridade, como por exemplo as dos CEOs[/quote_center]
Pese embora tenha existido – e como sabemos – uma boa dose de aproveitamento do “sucesso” da campanha #MeToo, a verdade é que os media sociais conseguiram uma proeza inédita: unir vozes fragmentadas num clamor em uníssono, o qual se espalhou rapidamente e se transformou num dos fenómenos mais mediáticos dos dois últimos anos. Como também nota o FT, “a comunicação peer-to-peer no ciberespaço está a contribuir para uma mudança nos padrões da confiança”, com Susan Botsman, professora de Estudos de Gestão a afirmar que vivemos agora numa era de “confiança distribuída”, em que se dá mais ouvidos “à voz das multidões online” do que às que, outrora, estavam revestidas de maior autoridade, como por exemplo as dos CEOs. A verdade é que a confiança passou de “vertical” a “horizontal” e tal significa que os protestos rapidamente se transformam numa imensa bola de neve à qual os CEOs – e outras figuras com autoridade – simplesmente não conseguem reagir.
[quote_center]Os protestos online massificados estão a surgir com uma força crescente seja por motivos sociais ou ambientais e as empresas sabem que não se podem dar ao luxo de serem mal comportadas com um holofote permanentemente apontado aos seus actos[/quote_center]
A exigência da transparência, o escrutínio permanente e a facilidade com que se propaga uma qualquer indignação estão a ser igualmente levadas a sério pelos conselhos de administração, pelos reguladores e pelos accionistas que sabem que têm de escrutinar os CEOs e afastá-los do poder que o seu cargo acarreta quando é necessário.
E tal não está a acontecer, naturalmente, apenas com casos de assédio sexual. Os protestos online massificados estão a surgir com uma força crescente seja por motivos sociais ou ambientais e as empresas sabem que não se podem dar ao luxo de serem mal comportadas com um holofote permanentemente apontado aos seus actos, sendo caso para afirmar que, e finalmente, a tão falada responsabilidade social corporativa deixou de figurar apenas em relatórios embelezados e cheios de números, para passar a ser uma verdadeira bitola do comportamento das empresas.
Uma outra lição que é possível retirar deste recorde de despedimentos está relacionada também com os programas de compliance organizacional, os quais e por mais bem desenvolvidos que sejam, não são suficientes para garantir uma boa conduta ética. A verdade é que mesmo com toda a pressão que recai sobre as empresas na actualidade, estas continuam a confiar demasiado naquilo que pode ser medido, colocando em segundo plano o que é mais difícil de gerir e avaliar: a integridade. E enfatizar a boa conduta ética significa ouvir mais e falar menos, algo que os CEOs também não estão habituados a fazer. As histórias que circulam nas empresas, as piadas e até os mexericos dizem muito sobre a cultura da empresa porque são veiculadas pelos seus trabalhadores e raramente escutadas pelos que as lideram. E confiar mais nas métricas da compliance quando a conduta não é exemplar, não ajuda os CEOs a ter mais cuidado com os seus “lapsos éticos”, apenas lhes confere uma falsa segurança de que poderão escapar impunes do mal que perpetram. Que o digam aqueles que foram despedidos em 2018 e, decerto, outros que serão obrigados a deixar as suas cadeiras douradas nos próximos tempos.
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Editora Executiva