Foi esta a primeira frase que ressoou na minha cabeça enquanto lia a encíclica Fratelli Tutti, um pedido vindo de há muito, da Mesopotâmia, em 2000 a.C., da Epopeia de Gilgamesh, que me foi apresentada como o primeiro tratado ético e político de que há memória
POR ANA ROQUE

É difícil (para mim) escrever sobre esta encíclica. Difícil porque me interpelou de uma forma muito profunda, porque me colocou face aos meus medos e à necessidade de os ultrapassar e porque as palavras do Papa são tão poderosas e exatas que bastam. Quase me senti tentada a transcrever apenas alguns trechos, os que mais me tocaram, e fazer desta escolha, desse encadeado de citações, a expressão da minha opinião. Pensei fazê-lo por uma questão de pudor e de humildade também, que é algo que considero que esta encíclica desperta.

Mas tinha-me comprometido a escrever e resolvi começar pela frase que ressoou na minha cabeça enquanto lia a encíclica, uma frase que é um pedido vindo de há muito, da Mesopotâmia, em 2000 a.C., da Epopeia de Gilgamesh, que me foi apresentada como o primeiro tratado ético e político de que há memória.

É uma obra na qual, de alguma forma, se responde à questão sobre o que é o acto humano, qual o seu sentido e destino1. É a descoberta da ontologia humana, do ser do Homem, a descoberta do absoluto pessoal, do acto próprio de cada pessoa, que é fundamental para a ética e que Francisco aqui nos convida também a encontrar, que nos pede sem rodeios que descubramos, ao mesmo tempo que nos diz perceber que tenhamos medo (nomeadamente em questões relacionadas com os refugiados), mas que temos de o enfrentar.

Lembrei-me de uma conversa com a minha mãe na qual ela, apesar de sempre ter sido uma pessoa muito interventiva e solidária, expressava (talvez fruto da fragilidade da idade) o receio da vinda dos refugiados. Lembro-me de discutir com ela, de dizer que não fazia sentido. E Francisco responde muito bem à minha mãe e aos meus próprios medos que tentava esconder: “Compreendo que alguns tenham dúvidas e sintam medo à vista das pessoas migrantes; compreendo-o como um aspeto do instinto natural de autodefesa. Mas também é verdade que uma pessoa e um povo só são fecundos se souberem criativamente integrar no seu seio a abertura aos outros. Convido a ultrapassar estas reações primárias, porque «o problema surge quando [estas dúvidas e este medo] condicionam de tal forma o nosso modo de pensar e agir que nos tornam intolerantes, fechados, talvez até – sem disso nos apercebermos – racistas. E, assim, o medo priva-nos do desejo e da capacidade de encontrar o outro»”.

Ou seja, Francisco escreve que temos de ser capazes de ultrapassar o medo, que é normal senti-lo, mas que ultrapassá-lo em função de algo maior faz parte da nossa riqueza.

É então, de forma comovida, perturbada e humilde que partilho o que senti ao ler esta encíclica, bem como os textos e os autores de que, ao longo da leitura, me fui lembrando. E é por isso que este exercício de escrita é mais o testemunho da minha vivência do texto do que um artigo de opinião.

Uma ressalva: não sou crente mas, para o que é expresso em Fratelli Tutti, isso pouco importa, para o que há a fazer também não, e o convite de Francisco é extensível a mim e a todos. Mais uma vez e tal como na encíclica Laudato Si’, essa abertura e esse convite a todos é manifestado logo no início, pretendendo o Papa que “a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade.”.

A frase “Esquece a morte e segue-me” surgiu-me porque esta encíclica parece ser um apelo ao abandono das resistências, dos medos, da perceção de impossíveis (a voz da censura, a voz do cinismo e a voz do medo), das ideias de mundo que tivemos até aqui e um apelo ao avançar da vontade de fazer acontecer, da decisão de fazer acontecer, o que me fez recordar um dos excertos mais marcantes da epopeia de Gilgamesh, nomeadamente uma parte em que o rei fala com o seu amigo Enkidu e o incita a avançar para a batalha:

Que a tua coragem seja despertada pela batalha que se aproxima: esquece a morte e segue-me, como um homem resoluto na acção, mas que não é temerário. Quando dois vão juntos, cada um se protegerá a si próprio e defenderá o seu companheiro, e se caírem, deixarão um nome imperecível”2

Qual é o nome que a humanidade quer deixar face a esta batalha? É isso que Francisco pergunta, afirmando claramente que vamos ter de escolher de que lado estamos (por exemplo, na parábola do Bom Samaritano).

Francisco interpela-nos a avançar sobre todos os dogmas: a propriedade privada para sempre, a posse, a abertura de fronteiras, o primado da economia e da gestão no ensino, a falta de ética e de moral, a falta de fraternidade e solidariedade com os outros que nos leva a dar, e quando muito, pão, sem cuidar da dignidade e da autoestima daqueles com quem nos relacionamos.

Francisco alerta para a dimensão do que há a fazer, a qual ficou especialmente clara para ele depois destes tempos de Covid: “Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é a de que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade”. Kofi Annan já o tinha também afirmado, ainda que de forma menos imperativa, pedindo às empresas para “fazerem a sua atividade normal de forma diferente”. Francisco não pede, clarificando antes o que nos é exigido, às pessoas e às empresas, porque é a nossa obrigação e o nosso dever.

Este sentido de dever e de obrigação, sem fuga nem desculpa possível, surge de forma muito marcada ao longo da encíclica, mas é um sentido de dever muito particular e genuíno e que implica ver — “vivemos já muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à honestidade; chegou o momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu”. E, tal como no poema de Pessoa (Alberto Caeiro), quando o pastor amoroso vê a verdade (neste caso a verdade falsa em que vivemos) sente “que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito”. A liberdade de escolher o rumo que a nossa consciência ditar depois de termos visto o que vemos.

Parece-me, igualmente, um dever muito em linha com Leonardo Coimbra, um autor português que me é muito caro: Só há moral em liberdade e “Só é bem livre o ser Moral”3. As duas coisas estão intrinsecamente ligadas: é o conteúdo da decisão que faz, da pessoa, uma pessoa livre (livre no sentido de desapego, e Francisco apela a esse desapego fazendo jus ao nome que escolheu).

O ser moral faz as suas escolhas guiado pelo ideal, e o ideal é algo para o qual se está sempre a caminho: “O bem, como, aliás, o amor, a justiça e a solidariedade, não se alcançam duma vez para sempre; hão-de ser conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve no passado nem instalar-se a gozá-lo como se esta situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de injustiça que nos interpelam a todos”.

E aqui, mais uma vez, veio-me à mente Gilgamesh, como um livro onde se fala da descoberta do outro e do que somos para o outro, e do que o outro é para nós, e de nós próprios e, de facto, a relação que temos com os outros, a forma como interagimos são a razão e o motivo de qualquer escolha ética. Não existe, nem pode existir, ética sem os outros. Por isso Leonardo Coimbra dizia “Só conheço e amo a Relação”4 e Emmanuel Mounier afirmava “Poderíamos mesmo dizer que eu só existo na medida em que existo para o outro e, no limite, que ser é amar.”5 Aí está! Ser é amar os outros e agir de forma fiel a esse amor. Pelo menos o ser que vale a pena ser.

É uma luta constante, é um caminho no qual temos de nos manter determinados: os outros e o amor dos outros, como (e aqui volto a citar Leonardo Coimbra) “bússola e sonda, e leme e sextante”6.

Estar para os outros, abrir os braços a quem precisa, representa a consequência de uma escolha da vontade, é um dever para com os outros, é algo que lhes devemos, que temos de perceber que lhes devemos, e que Francisco afirma mesmo: “devemos-lhes!”.

Não é possível continuar a olhar para o lado. Já cometemos muitos crimes por comodismo e por falta de reflexão, por miopia moral, e Francisco faz um apelo à reflexão sobre o que nos pertence e podemos dar, e sobre se, na realidade, quando dizemos que estamos a “dar” não estamos apenas a restituir. É uma das notas fortes deste texto, o abanar de mais um dogma. E creio que vale a pena deixar, novamente e sem mais, alguns excertos da encíclica:

Quando uma parte da sociedade pretende apropriar-se de tudo aquilo que o mundo oferece, como se os pobres não existissem, virá o momento em que isso terá as suas consequências. Ignorar a existência e os direitos dos outros provoca, mais cedo ou mais tarde, alguma forma de violência, muitas vezes inesperada.”

Francisco alerta para o facto de que direitos secundários como o da propriedade privada, muitas vezes se “sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática”, e que é um dever de todo o ser humano respeitar o direito de todos os outros seres humanos a terem um lugar onde possam não apenas satisfazer as suas necessidades básicas, mas realizar-se como pessoa e, muito concretamente, relativamente aos migrantes, os nossos esforços devem resumir-se “em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar”.

Acolher, proteger, promover e integrar. Vale e pena escrevermos isto muitas vezes e dizermo-lo uns aos outros como se de um mantra se tratasse. Acredito que dizê-lo é importante, como uma reza coletiva. Aliás, uma das coisas que mais lamento no facto de não ser crente é a missa, o estar em conjunto a assumir um compromisso e a falar a uma só voz.

Francisco volta a referir a necessidade de lutar contra um desenvolvimento orientado para a riqueza de poucos (ilegítimo) e para a necessidade de ver o mundo como um todo: “A pobreza, a degradação, os sofrimentos dum lugar da terra são um silencioso terreno fértil de problemas que, finalmente, afetarão todo o planeta. Ninguém pode ser excluído; não importa onde tenha nascido, e menos ainda contam os privilégios que outros possam ter porque nasceram em lugares com maiores possibilidades. Os confins e as fronteiras dos Estados não podem impedir que isto se cumpra”.

Esta afirmação, de que ninguém pode ser excluído, remete para algo que está também nas mãos de cada um de nós : “Cada dia é-nos oferecida uma nova oportunidade, uma etapa nova. Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam; seria infantil. Gozamos dum espaço de co-responsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas”.

A encíclica é uma constante interpelação: “Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios, direta e determinante: a qual deles te assemelhas? Precisamos de reconhecer a tentação que nos cerca de se desinteressar dos outros, especialmente dos mais frágeis. Digamos que crescemos em muitos aspetos, mas somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas. Habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima”.

Francisco refere a parábola do Bom Samaritano e diz que se “estendermos o olhar à totalidade da nossa história e ao mundo no seu conjunto, reconheceremos que todos somos, ou fomos, como estas personagens: todos temos algo do ferido, do salteador, daqueles que passam ao largo do bom samaritano”. Mas, mesmo que na nossa história haja, e há, o papel de salteador, não podemos deixar que o nosso passado hipoteque o nosso futuro. Ainda em relação à mesma parábola, afirma que esta se repete, mas chama a atenção para algo de muito importante — o ângulo de visão que vai determinar quais são as nossas prioridades e onde vamos investir a nossa energia no percurso da história: a parábola começa com os salteadores, mas o seu ponto de partida – que é também um ângulo de visão escolhido por Jesus, não é o dos salteadores, mas sim o do assalto já consumado, tal como estamos nós no mundo, com tudo o que já está consumado (destruído), pelo menos em termos sociais e ambientais. E esse foco no acto já consumado permite que nos deixemos de lamentações e de justificações, e que nos foquemos na questão do homem maltratado que está caído no chão e do qual é preciso cuidar.

Outro aspecto que me pareceu muito interessante foi o facto de esta ideia do “cuidar e da dimensão do cuidar”, que é também cuidar da dignidade do outro, aparecer ligada ao conceito de paz, de uma forma quase idêntica à da Organização Mundial de Saúde (OMS) quando esta refere que a saúde não é a simples ausência de doença: “A paz «não é apenas ausência de guerra, mas o empenho incansável – especialmente daqueles que ocupam um cargo de maior responsabilidade – de reconhecer, garantir e reconstruir concretamente a dignidade, tantas vezes esquecida ou ignorada, de irmãos nossos, para que possam sentir-se os principais protagonistas do destino da própria nação»”.

Outro aspecto de enorme relevância que é referido na encíclica é a forma como a história está a ser esquecida e como, cada vez mais, estamos a ser geridos e governados por pessoas que desconhecem a história e as disciplinas das humanidades de uma forma geral. Francisco lança um alerta para o que representa a falta deste conhecimento para os jovens, dizendo: “Se uma pessoa vos fizer uma proposta dizendo para ignorardes a história, não aproveitardes da experiência dos mais velhos, desprezardes todo o passado olhando apenas para o futuro que essa pessoa vos oferece, não será uma forma fácil de vos atrair para a sua proposta a fim de fazerdes apenas o que ela diz? Aquela pessoa precisa de vós vazios, desenraizados, desconfiados de tudo, para vos fiardes apenas nas suas promessas e vos submeterdes aos seus planos”. Quase parece estarmos diante de um diálogo platónico em que Sócrates, pela maiêutica, tenta ajudar os discípulos a ver a armadilha onde estão a cair e qual a chave para a saída.

Esse é um desafio para os jovens, mas que provavelmente deveria ser também para os seus pais, sobretudo dos mais afortunados, e fez-me lembrar um artigo publicado há alguns anos no Público e que se intitulava: “As elites não põem os filhos a estudar História, Filosofia ou Literatura”7. De facto, as elites põem os filhos a estudar gestão e a fazerem um MBA para estarem prontos para dominar o mundo, esquecendo outras matérias que os poderiam ajudar a compreender, perspectivar e fazer escolhas… e a ser mais fraternos.

A falta do estudo das humanidades, e a falta de estudo e de reflexão ética, já tinham sido consideradas como um risco na encíclica Laudato Si’, onde o Papa, citando Romano Guardini, referia a impreparação das pessoas que hoje em dia são chamadas a tomar decisões com impacto na humanidade: “cresce continuamente a possibilidade de o homem fazer mau uso do seu poder. (…) O ser humano não é plenamente autónomo. A sua liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal. Neste sentido, ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o controlar. Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum lúcido domínio de si”.

Só pessoas com essa reflexão humanista, “treinadas” para ver as questões éticas e para ter um pensamento crítico, serão capazes de ser o que Francisco chama os heróis do futuro ou “aqueles que souberem quebrar esta lógica morbosa e, ultrapassando as conveniências pessoais, decidam sustentar respeitosamente uma palavra densa de verdade”.

Francisco diz ter esperança de que estes estejam a ser criados em silêncio no coração da nossa sociedade. Para isso seria, certamente, um grande contributo a inclusão de disciplinas de ética, pensamento crítico e sustentabilidade em todas as escolas e universidades. Apoiar o desenvolvimento de pessoas conscientes, capazes de ver, de pensar e com coragem moral. Semear uma nova liderança que se possa reconhecer e apoiar entre si.

Para terminar (e forço-me a terminar) queria destacar a forma como, ao longo da encíclica, é sublinhada a importância de estarmos juntos e que essa união se faz às vezes de pequenos passos — “O exercício da amabilidade não é um detalhe insignificante nem uma atitude superficial ou burguesa. Dado que pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura numa sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar as ideias. Facilita a busca de consensos e abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes” — e de sonhar, sonhar juntos também: “Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos».”

Mas sonhando sozinhos ou acompanhados, podemos encontrar novos companheiros, explicar-lhes a absoluta necessidade do caminho e dizer-lhes: Esquece a morte e segue-me! Penso que, de alguma forma, é isso que Francisco está a fazer.


1 Aulas Professor Américo Pereira, Faculdade de Filosofia, Universidade católica Portuguesa

2 Gilgamesh, Versão de Pedro Tamen, Vega 2007

3 Leonardo Coimbra, a luta pela Imortalidade

4 Leonardo Coimbra, a luta pela Eternidade

5 Emmanuel Mounier, o Personalismo

6 Leonardo Coimbra, a luta pela eternidade

7 As elites já não querem estudar letras, Alexandra Prado Coelho, 2011, Público

Activista da ética, investiga, escreve e desenvolve iniciativas no sentido de promover a reflexão ética e o pensamento crítico. Procura formas alternativas de promover a ética empresarial.