Alexandra Machado e Marta Figueiredo, duas figuras de proa da Girl Move Academy – organização recentemente distinguida com o Prémio UNESCO 2021 para a Educação das Raparigas e Mulheres – foram convidadas a inaugurar o novo ciclo de conferências da ACEGE que tem como objectivo reflectir sobre “uma realidade que nos transforma”, tema que dominará igualmente o próximo congresso da Associação a ter lugar em Fevereiro de 2022. Partilhando o seu testemunho de como abandonaram uma carreira empresarial de sucesso para se dedicarem a uma missão social e profundamente complexa, ambas concordam, entre outras coisas, que o que mais contou nesta viagem para encontrar a sua própria vocação, foi o facto de perceberem que a mesma se multiplica quando é feita em conjunto e com quem também se quer deixar transformar
POR PEDRO COTRIM
A ACEGE convidou Alexandra Machado e Marta Figueiredo para inaugurar o seu novo ciclo de conferências sob o mote “Uma realidade que transforma”, que será também o tema do seu próximo congresso a ter lugar em Fevereiro e que assinalará igualmente os seus 70 anos de existência. Até lá, a Associação Cristã de Empresários e Gestores propõe, através das várias conferências e palestras planeadas para estes próximos meses, uma reflexão sobre os caminhos a trilhar para ajudar a concretizar uma transformação pessoal, das empresas e do país, assente principalmente no “encontro” e na valorização do bem comum.
Desta forma, e com o subtítulo “Uma realidade que me transforma”, foram convidadas duas figuras da Girl Move Academy: Alexandra Machado, fundadora e CEO, e Marta Figueiredo, Sustainability Director. A ACEGE pediu-lhes que partilhassem o que as levou a trocar uma carreira empresarial de sucesso por uma missão centrada na promoção da educação e da liderança feminina em Moçambique, um dos países mais pobres do mundo.
E com muitos frutos já (im)plantados, a Girl Move Academy foi recentemente distinguida com o “Prémio UNESCO 2021 para a Educação das Raparigas e Mulheres”, que reconheceu a inovação e a eficácia da metodologia presente nos seus vários programas, bem como a criação de círculos de sisterhood intergeracionais, assentes em modelos de mentoria que ajudam raparigas e jovens mulheres a conectarem-se e a inspirarem-se mutuamente para, em conjunto, construírem um mundo melhor e assegurarem que “ter futuro” é uma realidade e não uma missão impossível.
Deste modo, Alexandra Machado e Marta Figueiredo contam na primeira pessoa a sua história de “auto-transformação”. E é o seu testemunho que dá corpo a este artigo.
MARTA FIGUEIREDO
“Muito agradeço este convite, sobretudo pelo desafio de virmos dar o nosso testemunho. Creio que somos as principais privilegiadas, nem que seja por nos obrigarem a nos questionarmos sobre a profundidade daquilo que estamos a querer partilhar.
Gostava de começar por contar uma história que está relacionada com um livro de que gosto muito, um livro biográfico sobre o Padre Pedro Arrupe, um jesuíta providencial que eu muito admiro. O livro foi escrito pelo Padre Pedro Miguel Lamet. Enquanto escrevia esta biografia, o Padre Lamet foi ao Japão, a Hiroshima, um dos sítios onde o Padre Arrupe passou grande parte da sua vida, e reuniu-se com um grupo de várias pessoas que costumavam participar nas suas catequeses. O Padre Lamet falou com várias pessoas para melhor perceber quem era o Padre Arrupe, e em dada altura deu-se conta de que uma das pessoas que assistia frequentemente às suas catequeses era surda. Surgiu alguma perplexidade pelo facto de esta pessoa ser surda e ir ‘ouvir’ a catequese com tanta regularidade. A resposta foi simples: eu posso não ouvir o que este padre diz, mas a presença dele, a convicção com que ele fala e com transmite aquilo em que acredita faz-me querer seguir o caminho que percorre.
E foi mais ou menos o que senti há 3 anos, quando numa mudança de objectivos da minha vida desafiei a Alexandra, que ainda não conhecia muito bem, mas a quem já admirava o percurso. Convidei-a para um pequeno-almoço às nove da manhã. Foi um encontro aparentemente normal e em que pouco falámos sobre a Girl Move, sobre aquilo que agora faço, mas saí de lá com uma certeza muito clara e que era a de não saber tudo sobre a Girl Move, mas de saber que queria estar onde esta mulher estivesse, esta líder, e de seguir o seu caminho. Há algo por trás daquilo que ela vive e que me marca e me transforma, e por isso eu gostava de começar por convidar a Alexandra a contar-nos o que é que este seu caminho de transformação”.
ALEXANDRA MACHADO
“Começo por agradecer à Marta. Eu tenho uma história para contar, e vão perceber, à medida que a desvendo, que vou tentar transportar-vos comigo. Imaginem uma viagem de comboio, não num alfa, mas num inter-regional que pára em alguns apeadeiros e capelinhas.
E nesta viagem de comboio vou desafiar-vos a visitarem alguns apeadeiros importantes na minha vida. Antes de mais, gostava igualmente de agradecer à ACEGE por poder estar aqui, por me ter desafiado. Tive o privilégio de fazer parte da direção de dois mandatos de dois inspiradores e fantásticos presidentes que marcaram de uma forma muito decisiva a minha vida. Tenho o privilégio de participar no meu grupo de Cristo na Empresa há mais de 10 anos. Sou casada, tenho 3 filhos e sou uma gestora católica, mas nem sempre fui assim. Fui talvez católica e gestora, fui gestora e católica. Creio que é diferente, não é?
Há aqui algumas nuances. Nesta nossa caminhada, e eu não me canso de enaltecer a importância da ACEGE neste meu caminho de transformação, o quão importante tem sido viver esta experiência de amor ao próximo no meu dia-a-dia e na minha empresa, porque há alguns anos, conforme o presidente da ACEGE João Pedro Tavares mencionou, vivi uma mudança de rumo. O comboio mudou de agulha, mas também se deveu muito à ACEGE, e deste modo agradeço profundamente tudo o que a ACEGE representa enquanto comunidade.
Voltando à viagem, e começando o caminho, eu queria convidar-vos para virem até Caparide, até ao Seminário de Caparide. Na altura eu era representante e directora-geral da Nike em Portugal, onde estive 10 anos. Fazia muitas visitas àquele seminário, ia ter com o Padre Ricardo Neves, que alguns de vós conhecem, e fazia várias caminhadas pelos jardins do seminário, o que foi muito importante para abrir o meu coração, para abrir o coração para poder viver plenamente esta ideia do que é que é o amor na minha vida profissional, e o que é que é viver o amor de uma forma que me leva a dizer hoje que sou uma católica gestora.
E num destes passeios por estes caminhos, o Padre Ricardo pára de repente e diz-me: Alexandra, o que queres? Quando é que tu paras de vender ténis, quando é que tu te cansas? Ou não te cansas? Vendes ténis. Não estás farta de vender ténis?
Sempre fui desportista, adoro desporto, adorava o que fazia. Como então, como assim, então agora o que devo fazer eu, perguntei-lhe. Limitou-se a dizer-me o seguinte.
Deus dá-te dons muito particulares. A tua missão é saber como é que os multiplicas, a tua missão é saber como é que dás frutos. A frase deixou-me a pensar. Que dons são estes que Deus me deu, o que é que me inquieta o coração. E estas reflexões fizeram-me abandonar a minha vida empresarial de mais de 30 anos e abraçar uma nova aventura. Fui fundadora da Girl Move há 9 anos e uma grande parte deste tempo serviu de algum modo para responder a este desafio que o Padre Ricardo me colocou.
Há aqui uma lógica muito importante, a de uma análise pessoal. Eu sempre adorei transformar coisas, sempre gostei de pôr as mãos na massa. Fui sempre tida como uma problem solver. Aliás, lá em casa há sempre um filho a dizer ‘Ai mãe, deixe-me só falar sobre o problema, não me venha já com solução’, e eu realmente tenho este vício e este defeito de gostar de resolver problemas. E havia um problema que me inquietava há muitos anos, e foi por causa deste problema que me pus a caminho. Porque eu hoje sinto que quero contribuir para um mundo onde exista igualdade de oportunidades de educação para tantas e tantas raparigas e mulheres que não lhe têm acesso e acredito plenamente que esta desigualdade é uma das razões principais da pobreza que vemos em muitos países no mundo. Não é um problema propriamente fácil de resolver, pois não?
Convido-vos novamente a entrar no comboio e a viajar para um outro apeadeiro. E vou contar-vos aqui uma parte importante da minha viagem, que se passou no final de 2012, numa viagem de comboio que foi de tal modo marcante na minha vida que ainda hoje é o fundo do meu computador e da capa do meu telemóvel. Ainda sinto profundamente este momento na minha alma.
Foi uma viagem de comboio desde Nampula até Cuamba. As cidades situam-se em duas províncias vizinhas, mas durou 14 horas. Foi uma viagem confortável, mas que parava em todos os apeadeiros, sendo que cada um era um mercado vivo. Imaginem-se em África, com todas as cores e cheiros, e legumes, frutas, galinhas e ainda ratos espalmados como sendo a maior das iguarias. Eu estava naquele comboio, e, perplexa, percebi que apenas transportava mulheres. Porquê? Porque eram as mulheres que faziam as suas compras, em cada uma das suas paragens, e que em cada povoado eram trazidos os víveres à porta do comboio. E era ali mesmo que se fazia a compra e venda.
Conheci uma série de mulheres que eram autênticas personagens vivas. Não sei se já leram a Paulina Chiziane, contemplada agora com o Prémio Camões. Pareciam pessoas retiradas dos seus livros. Conheci muitas histórias, histórias de poligamia, histórias de raparigas e mulheres, de mães de muito tenra idade e com muitos filhos, soube de histórias de violência, soube de histórias de abandono. Conheci histórias de vidas extremamente difíceis, mas não de infelicidade.
Eu ali no meio parecia uma autêntica Alice no País das Maravilhas, completamente enfeitiçada e encantada com aquela realidade que estava a viver. Que mulheres eram aquelas, que meninas eram aquelas que carregam para a frente uma nação, que transportam muitas vezes sozinhas os seus 6 ou 7 filhos.
E na sua simplicidade, na sua alegria e no seu silêncio, que liderança é esta que trata, que cuida, que acarinha e que faz mover. Uma liderança de uma mãe que para mim se tornou muito evidente. Era a liderança de Maria, aquela liderança que transformou profundamente a minha vida a partir daquele instante. Eu soube que queria encontrar uma solução para este problema.
E a solução veio a ser mais tarde a ser desenvolvida com a Girl Move, uma academia de liderança feminina que promove uma nova geração de jovens raparigas e mulheres em Moçambique com um estilo, e creio que o posso afirmar, Mariano. Aquele estilo de liderança que cuida e ampara no silêncio, mas também na alegria. E a Girl Move é hoje uma comunidade mais abrangente, fruto igualmente da vivência de muitas realidades. Acima de tudo, e ao fim de 8 anos, vivemos de facto um apogeu na organização, uma vez que acabámos de receber um prémio das Nações Unidas que nos distingue como o melhor programa de educação para raparigas e mulheres em todo o mundo. Isto realmente desconcentra-nos um pouco, como será evidente. Por outro lado, partilho esta experiência porque não tem a ver comigo, mas sim com sinais de Deus, de uma boa interpretação da realidade para manter o bom caminho.
Voltei a fazer esta viagem 3 anos depois. Fi-la na companhia do Padre Ricardo. Foi a última vez que o vi, e isto foi em 2015. Quando o Padre Ricardo regressou foi diagnosticado com um problema médico que creio ser do vosso conhecimento. Mas mais importante que o prémio, foi de facto a confirmação do Padre Ricardo, aquele instante de percebermos o que estávamos a fazer, dos sinais do que estávamos ali a fazer. Vou agora pedir à Marta para se juntar a mim, sendo que depois também partilharei outras circunstâncias destes apeadeiros que vos quero contar.
MARTA FIGUEIREDO
Estava muito imersa na história nas paragens da Alexandra, mas creio que o que trago aqui também é engraçado porque parte muito de uma realidade profunda que a Alexandra partilha e que que nos ajuda a situarmos o lugar onde estamos. Aquilo que este tema me levou a pensar, e que acho que é realmente um desafio que quem aqui está pode também sentir. Que realidade é esta que me transforma, esta realidade que vivo e de que modo me está a transformar? E procurei nesta reflexão maturar estes últimos anos, sobretudo na experiência que tenho vivido na Girl Move, porque foi realmente uma disrupção avassaladora dar-me conta dela e embarcar rumo à solução.
Esta solução veio mais tarde a ser desenvolvida com a Girl Move, esta academia de liderança feminina que promove uma nova geração de jovens raparigas e de mulheres em Moçambique com um estilo que posso afirmar Mariano, tal como a Alexandra. Este estilo de liderança que cuida e que transforma no silêncio, mas também na alegria.
São coisas que nos fazem largar muitas outras coisas. Foi a minha última viagem a África quando tinha um tio muito doente. Como é que estas duas situações se podem relacionar? Tem que ver com a lembrança de estar a chegar a Moçambique, na tal última vez em Abril. São coisas que se sentem quando se chega a África ou quando nos damos conta de uma realidade avassaladora e dura. Sentimo-la. E aparece uma sensação de impotência que não advém da magnitude do problema, mas do que se pode fazer para alcançar alguma coisa.
Lembro-me de chegarmos, de aterrar numa pista em Moçambique, e depois creio que o Senhor me ajudou a fazer um caminho que me tem ajudado a pensar muito e a sentir que, de facto, eu não posso ter a pretensão de achar que sei a resposta para tudo. O mistério de Deus que, assim que se revela na realidade, muda-nos completamente. E de facto, eu acho que não posso querer ir para África ou querer olhar a minha realidade apenas à luz daquilo que percepciono porque é muito pouco, é insuficiente, e por muito bons que sejamos a fazer o que fazemos, não é um caminho que possamos traçar sozinhos.
É esta procura de perceber como é que Deus se revela, o mistério do Deus escondido por trás da realidade. É uma coisa muito forte e que me tem transformado deveras. Estar em África e aquilo que o que ‘isto’ tem muito a ver com o que a Alexandra dizia, este encontro com estas mulheres e mães com desafios que nós, à luz do nosso mundinho pequenino e ocidental, pareciam uma loucura impossível de resolver. E de repente encontramos um coração sereno e alegre que propõe um caminho diferente. E, portanto, porque tem ‘isto’ a ver com ter um tio muito doente? Tudo mexeu muito comigo, porque de facto eu acho que as pessoas vulneráveis, os pobres, quem está em sofrimento, tem também esta mensagem para nós.
Lembro-me de pensar neste meu tio porque ele me ajudava a centrar. Centrar-me no que é essencial, centrar-me na nossa vulnerabilidade e perceber que, de facto, Deus nos pede uma leitura da realidade diferente daquela que temos capacidade de ver a olho nu, sendo este um segundo aspecto que me tem transformado muito, me tem ajudado a sair de mim própria e também a trazer Deus para o meu dia-a-dia.
Há depois uma terceira reflexão, que tem sido igualmente muito profunda, e que tem a ver com o facto de poder ver, cada vez mais claramente, o poder das relações e das conexões que criamos entre nós. No nosso programa, na Girl Move, há uma lógica prevalente de orientação intergeracional, ou seja, de congregar raparigas que estão em etapas diferentes das suas vidas, que já terminaram os seus estudos e que querem ser líderes, e juntá-las com raparigas adolescentes que estão na fase mais crítica da sua vida e com uma forte probabilidade de abandono escolar por serem vítimas de casamentos precoces e de gravidezes prematuras. E quando estas duas realidades se unem sucede um desbloqueio, uma transformação mútua, porque dum lado estão as mais novas que subitamente vislumbram o horizonte e percebem o caminho para diante; e, por outro lado, quem está a percorrer o caminho compreende e sente a essência e a urgência que tem de se pôr no trabalho.
Vivo muito ‘isto’, marcou-me muito a primeira vez que fui à Girl Move sem saber muito bem o que era, e ainda e mais por conhecer a Alexandra e por querer estar a acompanhá-la nesta missão. Também descobri, ou dei-me conta do inusitado que é o facto de por vezes ser a realidade que nos alcança. Ou seja, de repente chego a Moçambique, percebo ‘isto’, ‘isto’ é a história da minha vida, ‘isto’ é o que eu sempre procurei, ter modelos de referência, ter um caminho, e isso marcou-me muito profundamente.
A importância de nos abrirmos à conexão com os outros numa procura de melhoria autêntica. Hoje em dia fala-se muito desta dinâmica, de programas de mentoria infinitos nas empresas e em todo o lado, mas estamos nós mesmos a viver as relações da maioria numa lógica unilateral, e afirmo-o sem qualquer desprimor. Na Girl Move, propomo-nos também a deixar-nos fazer caminho e tem sido muito marcante, sobretudo na relação com a Alexandra, mas também na relação com outras pessoas dentro da nossa equipa: esta dinâmica de fazer caminho com quem também se quer deixar transformar. É porque, realmente existe a ideia de encontrar a vocação, mas esta vocação multiplica-se quando a fazemos em conjunto.
Ao reflectir sobre estes instantes concretos da minha vida percebi que aparece aqui uma chave de leitura muito evidente, sobretudo nos que pertencem à minha própria geração. Passaram a procurar-me por eu ter feito uma passagem do mundo empresarial para um mundo mais social ou mais focado para um propósito. E muitas vezes eu sinto que as pessoas estão à procura de uma realidade nova para se deixarem transformar.
E, de facto, sinto-me privilegiada por viver esta realidade, mas creio que a chave da leitura cristã é o facto de Deus se servir de tudo para se revelar, para nos transformar, e que portanto não é por estar em Moçambique que vai aparecer uma dinâmica espectacular. Pode suceder em qualquer lado.
Creio que a chave de leitura tem a ver com um enorme salto de fé ao qual todos somos convocados e em acreditar profundamente que o Senhor se serve de tudo o que Ele quiser para nos transformar. E isto está muito mais dependente de nós. Como é que nós nos deixamos transformar? Não é portanto a realidade que nos transforma, mas sim a forma como nos deixamos transformar.
Para terminar, gostava apenas de partilhar três atitudes de fundo que me ajudam a fazer este caminho. Creio que uma tem muito a ver com a nossa inteireza, com a capacidade de estarmos unos. Há uma frase do Fernando Pessoa que eu muito aprecio – para ser grande, sê inteiro –, e que creio que se ajusta aqui. Temos o privilégio de ter um Deus que encarnou e é portanto tempo de viver a encarnação a sério, de nos deixarmos encarnar na vida com verdade, e, sobretudo, de viver, de levar muito a sério aquilo que mexe connosco no nosso coração e na nossa cabeça. O que é que nos inquieta e, portanto, a viver esta inteireza.
Creio que vivemos num tempo muito desafiante para o fazer, porque estamos no tempo das múltiplas dispersões, desde as escolas, o omnipresente telemóvel, o trabalho que se confunde com o tempo para nós, sendo portanto fundamental procurarmos, cada um de nós na sua unicidade, estarmos inteiros e vivermos esta plenitude.
Creio que um segundo aspecto tem a ver também com esta ideia de viver uma vida una, de não separar o católico do gestor. Acho que temos grande tendência a viver a vida em gavetas. Lembro-me de viver numa aflição por apenas conseguir encontrar Deus nas peregrinações ou nos campos de férias, de sentir esta dualidade enorme, e isso fez-me querer dar um grande salto de fé, de aceitar, de arriscar, de acreditar que Deus existe mesmo e que ele está inteiramente comigo e que se serve de tudo. É disto que falamos como quando São Josemaría Escrivá nos dizia que a nossa secretária deve ser um altar onde nós nos entregamos. Ou então com um exemplo de Santo Afonso Rodrigues, um santo jesuíta que era porteiro e que sempre que alguém batia à porta respondia, já vou Senhor. Creio que temos estes pequenos truques que nos ajudam a centrar a nossa realidade naquilo que é o nosso propósito.
Será um caminho também de verdade, de uma imensa liberdade de procurar encarar a vida como uma missão, como um todo. E o último aspecto tem muito a ver com este caminho de nós próprios, com o facto de dispormos o nosso coração para o encontro, ou seja, de irmos treinando o nosso coração para permitir que a realidade penetre. É portanto uma atenção constante que se treina. Creio que passa claramente por uma lógica muito importante, e que nem nós, líderes e gestores, a temos por vezes como adquirida: é um autoconhecimento desmedido, sabermos quem somos, o que mexe connosco, quais são as nossas moções interiores e a partir daí irmos procurando dispor o nosso coração para que Deus possa romper a realidade.
E termino assim, partilhando esta crença de o grande desafio residir em alimentarmos esta profunda convicção de que o Senhor serve de nós para nos falar e que essa disponibilidade para O acolher depende muito mais de nós do que propriamente da realidade que nos é dada. Creio que é esse o grande mistério de quem acredita num Deus que veio à Terra, encarnou e que quis que não nos excluíssemos da realidade que nos é dada.
ALEXANDRA MACHADO
Sabe bem acabar aqui. Apenas para terminar, terminar não porque a viagem não termina, mas dizer-vos que uma das melhores coisas da viagem são os companheiros que temos e que vamos fazendo no caminho. Como foi notório, um dos meus grandes companheiros foi o Padre Ricardo, o meu mentor, e a importância curial da relação com ele.
Fico a pensar que realmente o tema das realidades que nos transformam são antes relações que nos transformam. Fiquei também a acreditar que, de facto, foi uma relação que me transformou, mas não foi a única. Será esta a lógica. Porque, como já viram, eu sou hoje realmente uma privilegiada por trabalhar com a Marta, porque de facto esta relação de mentoria – não sei quem faz mentoria a quem – é uma coisa bela na vida das empresas, por isso arrisco-me a afirmar que isto não sucede apenas nas organizações sociais, mas também nas empresas, na academia, etc..
Estas relações, a multiplicidade de relações que temos dentro das nossas empresas no dia-a-dia e que quando o nosso coração está aberto para construir, não numa lógica unidireccional do tipo ‘ah, vou-te dar a minha opinião’, mas sim quando nós nos deixamos transformar, vamos à essência da nossa vida, ao nosso propósito. E a palavra ‘mentor’ está tão vulgarizada mas pode ter tantos significados. Quando o padre Ricardo me desafiou há 10 anos e me disse que o meu dom era transformar, afinal não seria bem assim.
O meu dom não é transformar, é deixar-me ser transformada. É esse o meu dom maior, e que eu agradeço a Deus todos os dias, e que é o que proponho nas empresas: que realidade, que inúmeras possibilidades vivas nós temos de transformar e de sermos transformados. E foi assim que quisemos vir aqui dar o nosso testemunho sobre o modo como as relações nos transformam.
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