Na fábrica de Kalmar, construída em 1973, grupos autónomos de 15 a 20 trabalhadores realizavam tarefas diversas e chegou a dizer-se que a Volvo transformava trabalhadores qualificados em neo-artesãos. E claro que estavam satisfeitos: montar um carro de A a Z é um trabalho com sentido.
POR PEDRO COTRIM
A cultura é uma matriz múltipla. A cultura empresarial, um subgénero, é sobretudo formada por valores e representações. É enriquecida por rituais, mitos e símbolos que acabam por desempenhar um papel central no quotidiano de trabalho; não se trata de alfaiataria feita à medida como os omnipresentes fatos azuis e camisas brancas com gravata das gigantes tecnológicas americanas de décadas passadas.
Claro que ninguém seria despedido por não aceitar o tácito acordo de vestuário; contudo, há uns anos seria tido como uma nota de falta de gosto nos círculos da Big Blue. Podem mencionar-se muitas circunstâncias que ultrapassam a indumentária, como o hábito de cumprimentar individualmente os presentes numa reunião: numas empresas será visto como gesto cortês, enquanto noutras o enaltecimento incidirá sobre o aceno geral para que não se perca tempo com (in)formalidades antes de tratar dos assuntos que importam a todos. Em qualquer dos casos não significa desmerecimento, pois são comportamentos que se assimilam, tanto por trabalhadores com anos de casa como por recém-entrados.
A cultura empresarial acarreta evidentes vantagens. Os comportamentos dos colegas tornam-se previsíveis e consistentes, o que possibilita a redução dos custos das transacções internas, contribuindo assim para aumentar a produtividade do colectivo formado pela empresa. Esta é, aliás, uma das razões pelas quais as empresas que fazem uso excessivo da flexibilidade externa, particularmente no caso das que recorrem a agências de trabalho temporário, não obterem, na maioria das vezes os dividendos económicos esperados, como cultura empresarial e a sua relação com a sociedade. Naturalmente que o comportamento não será igual ao dos trabalhadores com mais tempo de casa, juntando-se o facto de a sua supervisão e formação serem muito mais caras.
Nas empresas com culturas fortes existe um sentimento de pertença à casa. Os funcionários estão sempre dispostos a defendê-la contra críticas externas, mesmo que não se abstenham necessariamente de criticá-la nos círculos internos. Mostram igualmente uma baixa propensão para entrar em modo competitivo porque implica mudar profundamente os seus hábitos e respostas instintivas. E apesar do galope da globalização, há diferenças regionais e nacionais sobre a própria noção de cultura, que se modifica com a geografia.
As empresas japonesas foram muitas vezes tidas como culturalmente muito fortes, o que possibilitou situações impensáveis: em 2008 a Toyota ultrapassou a General Motors e tornou-se no maior fabricante automóvel do mundo, posto que o gigante americano detinha há oitenta anos.
Eiji Toyoda, administrador da empresa, declarou em 1970: «Uma das características dos trabalhadores japoneses é o facto de usarem tanto o cérebro como as mãos. Os nossos trabalhadores fazem-nos chegar 1,5 milhões de sugestões por ano». Dois anos antes tinha sido lançado o Toyota Corolla, o modelo automóvel mais vendido de sempre nas contas de 2022.
A realidade nunca é idílica e a revolução da felicidade pelo trabalho não chegou a ocorrer. A empresa padeceu dos males que os industriais tinham encarado uns anos antes como o modelo de produtividade máxima: Taylor. Contudo, a administração do gigante nipónico recusava-se a pagar dividendos aos trabalhadores pelo seu esforço de excelência. Foi necessário que os funcionários lutassem arduamente para que a empresa japonesa renunciasse a um quadro de carência de pessoal estrutural, oferecesse formação, garantisse estabilidade no emprego, pagasse horas extraordinárias e recompensasse financeiramente as sugestões de melhoria a que os funcionários se dedicavam fora do horário de trabalho. A tremenda herança da enorme jornada de trabalho que persistia desde o pós-guerra alterou-se finalmente um pouco.
Se chegámos aos exemplos modelares internacionais por via automóvel, podemos recordar outro exemplo: na Suécia, na década de 1960, a Volvo lutava para recrutar bons trabalhadores e, principalmente, para os manter. Os jovens suecos tinham um nível de educação relativamente elevado, com a escolaridade tornada obrigatória até aos 16 anos após a Segunda Guerra Mundial.
As condições nas fábricas eram excelentes, mas o trabalho na linha de montagem era absolutamente desinteressante. De acordo com o diagnóstico da altura, o principal obstáculo à felicidade pelo trabalho era o tédio e a falta de sentido das tarefas. Deste modo optou-se por questionar radicalmente os modelos de Taylor e de Ford, concebendo-se uma organização por equipas autónomas na substituição das linhas de montagem. Na fábrica de Kalmar, construída em 1973, grupos de 15 a 20 trabalhadores realizavam tarefas diversas e chegou a dizer-se que a Volvo transformava trabalhadores qualificados em neo-artesãos. E claro que estavam satisfeitos: montar um carro de A a Z é um trabalho com sentido, e fazê-lo com meia dúzia de colegas é menos aborrecido e mais compensador do que tratar da colocação continuada de pára-brisas na linha de montagem. Obviamente que o trabalho é enquadrado e que a autonomia não é ilimitada, mas os trabalhadores podem distribuir as tarefas entre si como bem entenderem e adoptar um ritmo de trabalho que lhes agrade.
Mudam as empresas, mudam os modelos de gestão, mudam os trabalhadores, mudam-se as vontades. Muda também a cultura empresarial e já se tentou construí-la a partir do zero. Habitualmente é um projecto falhado. Ultrapassa as competências dos gestores, que se substituem e são necessariamente diferentes, e pelas mudanças igualmente frequentes nos modelos de gestão. Nas empresas, como em tudo o mais, a cristalização de uma cultura é por natureza um processo muito lento que não pode ser decretado.
As culturas empresariais colidem com as culturas nacionais. As relações entre as pessoas e entre os grupos sociais variam em profundidade de um país para outro. Recusar-se a contratar um familiar, em certos países, não é apenas impossível, mas até mesmo impensável. Não se concebe sequer perguntar o que ele pode fazer: é familiar, ponto final. Os casos conhecidos de todos nós servirão de exemplo e até passarão a fazer parte de uma espécie de anedotário que passou da esfera pessoal para a pública.
Considerar que a única obrigação para com a empresa é respeitar o seu contrato de trabalho, e vice-versa, é a atitude normal nos Estados Unidos. É menos comum na Europa, onde a lógica da honra tradicionalmente conduz a obrigações recíprocas diferentes. E a cooperação entre colegas não tem o mesmo significado para suíços, ingleses, portugueses ou espanhóis.
Os trabalhos para comparar o impacto na gestão de diferentes culturas por autores como Philippe d’Iribarne e Geert Hofstede têm décadas e merecem leituras, pois algum saber de quem dedicou a vida a estudar e a ensinar administradores de todo o mundo pode destravar processos emperrados. Quem leu estes estudos reconhece a existência de obstáculos e sabe que a cultura, sob todas as formas, é uma espécie de «caixa preta» que contém o que não pode ser explicado racionalmente. Talvez esteja aqui o começo de tudo: quem sabe reage menos negativamente a concepções e costumes diferentes dos da sua «tribo».
Hoje em dia a gestão intercultural torna-se quase numa obrigação para os líderes empresariais e um importante assunto de estudo para pesquisas. Carlos Ghosn, agora uma referência na cultura popular pelo seu estatuto de fugitivo internacional, era presidente da Renault quando o conglomerado francês comprou uma grande parte da Nissan. Talvez por efeito da nacionalidade tripla, brasileira, francesa e libanesa, envolveu-se de tal modo na gestão da Nissan e na cultura que aprendeu um japonês quase fluente para poder comunicar sem tropeções com os seus colaboradores em Tóquio. A administração do gigante japonês era muito ciosa da sua origem em Yokohama e este artista de várias facetas bem percebeu uma forma de desatar nós górdios.
Talvez procurasse apenas ser feliz, além de muito rico e poderoso. Todas as pessoas procuram ser felizes e é provavelmente uma regra sem excepção. Quaisquer que sejam os diferentes meios que empregam, todas procuram esse fim. «É o motivo de todas as acções de todos os homens, mesmo dos que estão a caminho do cadafalso», escreveu Pascal em 1670.
E para a felicidade, o trabalho ocupa um lugar central na existência de cada indivíduo. É uma espécie de traje social completo que estrutura relações fundamentais. Quem se sente infeliz no trabalho não estará provavelmente feliz, mesmo que o resto da base funcional esteja bem assente.
Saúde, trabalho, afectos. Os três pés que nos sustentam. Se um falha os outros desequilibram-se. Não há sistema político, religioso ou humanista só com um ou só com dois.
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