A área agrícola continua à espera de progresso. Um progresso não apenas tecnológico, já em curso, mas aquele também fundamental à sua subsistência – o progresso social e a perceção e reconhecimento, por parte do consumidor, da finalidade do seu trabalho e o respeito dos direitos a ele associados
POR ISABEL ABREU LIMA
Na semana passada reflectíamos em grupo sobre várias questões do trabalho humano, e uma frase não me saiu da cabeça: “O trabalho dignifica o Homem.” Dignifica, não há dúvida que sim. Mas o que entendemos por dignidade neste âmbito? Sabermos transformar o trabalho num serviço aos outros – sim. Zelar para que o brio profissional reflicta o nosso empenho e dedicação – também. Garantir a nossa autonomia e qualidade de vida – sem dúvida. Mas será apenas isso?
Se saltarmos para a perspectiva do empregador, podemos entender um trabalho digno como aquele que assegura os direitos do trabalhador: um salário justo, a valorização social das suas funções, estabilidade, reconhecimento social, respeito pela família, o direito à emigração digna e a justa distribuição das riquezas. E estes direitos devem manter-se presentes, particularmente quando o lucro ameaça ser mais importante.
O meu percurso profissional está desde o início ligado ao sector dos vinhos, onde convivem diferentes perspectivas. Por um lado, o trabalho vitícola, base de toda a produção – em crescente profissionalização, mas que ainda assenta em raízes humildes e num mérito por vezes pouco reconhecido. Por outro lado, o produto vinho, objecto de uma enorme diversificação de marcas e de origens, com uma expansão além-fronteiras. Trabalhando bem este produto, a porta do mundo cosmopolita de consumo, de experiências e de exclusividade abre-se de par em par. Mas abre-se também outra porta importante. Com uma mensagem bem trabalhada e veiculada, o vinho comunica-nos aquilo que está por trás de tudo – o trabalho da vinha, o solo, a casta, o clima. Traz consciência sobre a origem, dá valor ao trabalho vitícola e dignifica-o.
Mas se dermos dois passos atrás e pensarmos nos restantes produtos agrícolas e na figura do agricultor em si, qual a nossa perceção? Respeitamos e reconhecemos as suas competências e o valor da sua função? Será que o valor dos seus produtos lhe assegura uma remuneração estável, proporcional ao serviço que presta à comunidade? Será que o retorno do seu trabalho lhe dá condições para crescer em sociedade? Talvez não pensemos muito naquilo que está por trás de uma caixa de maçãs, de um ramo de coentros frescos, de um saco de cenouras ou de meia dúzia de courgettes que todos os dias temos à disposição. Naquilo que é preciso para chegarem até nós com sabor e segurança. Se calhar hoje em dia até procuramos com mais frequência o pequeno pormenor da etiqueta que diz “origem” para descobrirmos qual o país de proveniência. Talvez até nos preocupemos em identificar a Maçã de Alcobaça ou a Pêra Rocha. Mas será isto expressivo no nosso consumo?
Há um caminho grande a percorrer na dignificação do trabalho agrícola, que não passa apenas pelas condições sob as quais decorre – que devem ser naturalmente alvo de preocupação e melhoria. Mas que deve passar também pela valorização social que lhe é associada, que poderá em última análise reflectir-se numa retribuição financeira mais justa, que não fique retida, na sua maioria, em determinada parte da cadeia de valor.
E o que é que nos mostra o vinho? Que o processo de posicionamento e valorização do produto final, bem construído e dirigido, pode levar a uma valorização do produto na sua origem. E isso nos dias de hoje assenta sobretudo na criação de marcas, na inovação junto do consumidor, numa comunicação activa e numa justa distribuição dos lucros.
Dignificar o trabalho agrícola passa sobretudo por comunicar a sua realidade e aquilo que diferencia os seus frutos. Este é o primeiro passo para que o consumidor compreenda e esteja disposto a pagar a diferença.
Deixo aqui algumas noções que me parecem ser verdadeiros game-changers nesta missão. A primeira é a de marca territorial, sendo as Denominações de Origem o principal exemplo. Estas “marcas”, se olharmos para elas como tal, oferecem a um conjunto de empresas e produtores concorrentes uma identidade comum que os abrange. E a sua força é tanto maior quanto maior for a vontade de cada um associar os seus produtos a ela. Voltando mais uma vez ao exemplo dos vinhos: uma marca territorial, ou denominação como D.O.C. Douro, não se substitui à marca em si, antes a ajuda a definir-se e a valoriza.
A segunda noção é a de coopetição – uma relação entre duas entidades que consegue ser simultaneamente amistosa e competitiva. Do ponto de vista da humanidade e dignidade, esta é a melhor forma de encararmos a concorrência. Quando mediada por um elemento externo, a coopetição pode reforçar sinergias, integrando a partilha de recursos complementares e suplementares. Isto é um processo fundamental, do qual a realidade agrícola deve ser um exemplo.
Uma colaboração entre concorrentes assumida e planeada oferece uma vantagem única: a de um posicionamento semelhante no sector, ajudando a compreender clientes e consumidores, e a partilha de conhecimentos técnicos e de gestão que podem impulsionar a eficiência. Esta prática pode ser tão mais eficaz quanto mais clara for a mensagem e o objetivo comum – o que deveria ser incutido, por sua vez, pelas marcas territoriais. Esta coopetição já acontece no contexto agrícola, de forma a rentabilizar os fatores de produção. Mas e se fosse uma estratégia e um conceito assumido?
A área agrícola continua à espera de progresso. Um progresso não apenas tecnológico, já em curso, mas aquele também fundamental à sua subsistência – o progresso social e a perceção e reconhecimento, por parte do consumidor, da finalidade do seu trabalho e o respeito dos direitos a ele associados.
Quem comandará este progresso? Não sei. Mas neste mundo fugaz, em que aquilo que não é comunicado não é conhecido, o caminho da dignificação começa por aqui mesmo: comunicação. E esta certamente ajudará a devolver aos agricultores a autonomia, a relevância e o mérito em sociedade, com a justa retribuição do serviço que prestam.
Isabel Abreu Lima
Isabel Abreu Lima é Gestora de Relações Públicas na Aveleda e jovem agricultora na região do Douro. Da produção à comunicação, o seu percurso profissional esteve sempre ligado ao vinho. Global Shaper desde 2020, no hub de Lisboa, foi também co-fundadora do Conselho Consultivo dos Jovens Agricultores da CAP em 2021.