«Governança». Parece empréstimo do inglês governance, mas era de uso comum na Europa Latina do século XIV. Significava qualquer coisa como «governo, jurisdição, poder em geral». Questionar a governança global significava perguntar quem detinha o poder suficiente para definir as regras no jogo da globalização, descobrindo-se um mundo onde múltiplos actores – estados, empresas, organizações não-governamentais – se digladiavam para exercer a sua influência sobre a forma como as normas da economia mundial são desenvolvidas, decididas, legitimadas, implementadas e controladas
POR PEDRO COTRIM

Para a maioria dos economistas e dignitários públicos, a regulação política da globalização é uma questão reservada aos Estados. Tendo a globalização aumentado as interdependências entre os Estados, deverá haver cooperação através de grandes organizações económicas internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou a Organização Mundial do Comércio (OMC), a fim de implementar as soluções eficazes propostas pelos seus conselheiros políticos e económicos. Governar a economia global significa, por isto, tornar essas instituições mais eficazes e legítimas.

Há, contudo, os tais ‘actores’ privados, que exercem a sua influência através de diferentes canais, podendo representar a parte da infra-estrutura que permite que a globalização funcione. Por exemplo, as grandes empresas internacionais de auditoria pressionam a implementação de normas contabilísticas globais, que definiram em termos gerais; os seus princípios colocam uma grande ênfase nas avaliações de contas com base em preços de mercado altamente flutuantes, o que resultará numa maior instabilidade financeira.

Os Estados não são, no entanto, reféns dos mercados; ou será então uma tomada de reféns recíproca. Os actores internacionais também precisam dos Estados. Os mercados não têm vontade a sua própria vontade, carecendo de guiagem para ancorar as suas expectativas nos sinais emitidos por uma autoridade credível. Quanto mais eficaz e competente for um Estado, mais peso terá em relação aos actores internacionais. A ideologia do Estado mínimo está sempre em conflito com a ideia da reabilitação do papel do Estado. Além de ser capaz de defender a ordem pública, a propriedade privada e o respeito pelos contratos, também propicia um ambiente favorável ao crescimento: desenvolvimento de uma boa rede de transportes e comunicações, formação de mão-de-obra de qualidade, uma eficiente e acessível rede de distribuição de energia, etc.

Assim sendo, por que razão não adoptam os Estados o comportamento aparentemente mais eficaz? A razão é simples, e reside no equilíbrio de poder entre os actores. O maior agente único na política internacional, para o bem e para o mal, ainda são os EUA. A análise do exercício da liderança global dos EUA, objecto de grande debate, parecendo o resto do mundo ter poder de voto nas eleições americanas, é posta de lado pela ideia de que ninguém está pronto para aceitar inquestionavelmente as opções apresentadas por qualquer país.

Os grandes actores económicos talvez tenham nascido em 1944 na conferência Bretton Woods, que estabeleceu algumas regras financeiras comuns (taxa de câmbio fixa, controlos dos movimentos de capitais), implementadas sob a égide do FMI e do Banco Mundial. Contudo, as negociações foram realizadas pela primeira vez entre os Estados Unidos e o Reino Unido, de 1942 a 1944, sendo posteriormente os restantes foram convidados a ratificar as decisões tomadas. Os objectivos dos americanos eram também acabar com a ideia de Império Britânico, para poderem exportar melhor e estabelecer o domínio do dólar. Claro que os britânicos, endividados até ao pescoço, queriam obter a maior exposição internacional que fosse possível, e procuraram impor aos Estados Unidos um mecanismo institucional, forçando-os a gastar os seus excedentes para alimentar a economia mundial (o Plano Keynes). Por conseguinte, a governança da economia mundial apenas poderá ser compreendida tendo em conta o peso desempenhado pelos vários Estados e, em particular, pelo primeiro deles, os Estados Unidos.

No entanto, os americanos também sofrem com a ascensão de actores não estatais. Quando uma crise financeira irrompe na Ásia ou na Rússia, a economia e os mercados financeiros dos EUA são abalados, como quaisquer outros. Da mesma forma, as instituições internacionais não têm o monopólio da regulação global. Assim, por muito importantes que sejam as decisões da OMC, não é a única a definir as regras para o funcionamento do comércio internacional. Em 2018, o comércio remanescente dentro das redes de empresas multinacionais representou 46% das importações dos EUA e 30% das exportações, verificando-se aqui um comércio entre empresas cujos preços muitas vezes escapam à lei do mercado para obedecer a estratégias de optimização tributária.

Destaca-se igualmente a importante jurisprudência comercial, posta em prática através da arbitragem praticada, por exemplo, pela Câmara de Comércio Internacional; junte-se ainda ou o peso dos cartéis internacionais. Esta globalização underground que finta barreiras alfandegárias (contrabando, por exemplo), é estimada por vários estudos como valendo cerca de 15% do comércio mundial. O papel das máfias propriamente ditas, cujo comércio internacional de produtos ilícitos (drogas, armas e tráfico de seres humanos, sobretudo) tem aumentado, na opinião de todos os especialistas.

É necessário então distribuir mais a regulação, surgindo associações profissionais transfronteiriças. São representativas e exercem pressão nos governos. Por exemplo, a Business European Roundtable reúne 45 CEO de multinacionais europeias e tem sido um dos actores da (re)construção europeia, apoiando os governos na necessidade de ampliar o mercado único, de alargar o âmbito do Euro e de continuar a avançar com um alargamento sustentável.

Os tais cartéis internacionais, cujo papel na economia global é muitas vezes subestimado pela OCDE, nem sempre são de curta duração. Têm consequências muito mais fortes para o comércio mundial do que as medidas de liberalização definidas pelos Estados no âmbito da OMC.

Observa-se, nos últimos quarenta anos, um declínio do Estado perante a globalização, que embora tenha transformado o quadro para a intervenção da política económica, não é uma calamidade que caiu do céu. Os Estados são, pelo menos, tão os actores, tal como as vítimas, mas mantêm uma sólida margem de manobra.

A globalização influencia, evidentemente, as políticas económicas. A internacionalização do comércio resultou numa forte abertura das economias: a média das exportações e importações mundiais representa agora mais de 28% do Produto Interno Bruto mundial, em comparação com 10% em 1970, pelo que a situação económica de um país se torna cada vez mais dependente da dos seus principais parceiros.

A internacionalização da produção desenvolveu-se consideravelmente nos últimos vinte anos. O investimento directo estrangeiro representa mais de 25% do PIB mundial, contra menos de 7% em 1980. As multinacionais tornaram-se actores poderosos na economia globalizada, capazes de colocar os Estados em competição pela localização de seus investimentos. Alguns activos estrangeiros de empresas multinacionais são maiores do que economias nacionais relevantes.

Uma outra restrição advém da internacionalização dos fluxos financeiros. As enormes massas de capital flutuante, que circulam nos mercados financeiros mundiais em busca de retornos de curto prazo, têm um poder desestabilizador muito forte nas taxas de câmbio. Ao mesmo tempo, a maior abertura comercial dos países torna as economias mais sensíveis às mudanças no preço relativo das moedas. As políticas monetárias acabaram por ser sujeitas a um objectivo externo – a defesa da taxa de câmbio – em detrimento dos objectivos internos de crescimento e emprego, vítimas do elevado nível das taxas de juro. Qualquer medida considerada desadequada pelos financiadores internacionais expõe um país a uma queda na moeda e a um aumento do custo do financiamento externo.

A abertura internacional também serviu estratégias a mais longo prazo, como no caso da União Europeia. A livre circulação de capitais na Europa e o estabelecimento de um sistema de taxas de câmbio estáveis foram, acima de tudo, uma opção política, que deverá a uma maior influência da União Europeia no mundo.

A globalização complica muito a arbitragem de conflitos de interesse. Durante o boom do pós-guerra, as políticas económicas keynesianas operaram no âmbito de uma abertura limitada ao comércio e, especialmente, ao capital externo. O espaço de produção e o espaço de consumo sobrepuseram-se, tornando possível uma distribuição de rendimento favorável ao trabalho (através do aumento do emprego e dos salários) e aceitável ao capital (por via do aumento dos lucros). A globalização pôs em causa este compromisso, alargando um fosso crescente entre os actores privados altamente internacionalizados (empresas e investidores) e o resto da sociedade. A concorrência entre os Estados por parte destes intervenientes privados móveis, pela localização dos investimentos e pela afectação das poupanças, reflecte-se, em particular, na evolução da estrutura das imposições obrigatórias: o factor menos móvel – o trabalho – é cada vez mais tributado em relação ao factor capital (tributação das empresas e da poupança).

Para além deste papel no potencial de crescimento e na competitividade a longo prazo de uma economia, as políticas económicas a curto prazo estão a tornar-se mais pró-activas. Nos Estados Unidos, as políticas monetária e fiscal contribuíram significativamente desde o final de 2000 para amortecer a crise e reavivar a actividade económica. Alan Greenspan, o famoso presidente, desde 1987, do Fed, o banco central dos EUA, mostrou que é possível conduzir uma política monetária pró-crescimento com a bênção dos mercados financeiros. Na Europa, a margem de manobra foi restabelecida graças ao êxito da política de desinflação e à criação do euro (baixas taxas de juro, eliminação das crises cambiais).

Os Estados têm hoje os meios de acção proporcionais à internacionalização das finanças e da produção? Os Estados Unidos, que gradualmente recuaram para o multilateralismo estritamente limitado na promoção dos seus interesses, parecem pensar assim. Pelo contrário, os Estados europeus defendem um aprofundamento da cooperação internacional, que pode ir tão longe como restrições à soberania. É na fraqueza que se apela a políticas de cooperação, que é, no fundo, uma forma de dizer que as regras do jogo económico global são sempre uma questão de rivalidade entre Estados-

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