Mil milhões de pessoas em 1800, quatro mil milhões em 1974, oito em 2022 e provavelmente onze no final do século. Estes quatro números quantificam o prodigioso crescimento da população mundial nos últimos dois séculos. Uma vez que todos estes habitantes do mundo foram ou são crianças, é fácil relacionar o crescimento com os problemas ambientais e sociais cada vez mais graves que ameaçam o futuro da humanidade. Que particularmente é das crianças
POR PEDRO COTRIM
O crescimento populacional referido deveu-se aos avanços em saúde e higiene, que começaram por erradicar epidemias e a fome na Europa e na América do Norte. O consequente aumento da esperança de vida e a diminuição da mortalidade infantil conduziram então a um rápido aumento da população nestes dois continentes antes de os casais terem mais controlo sobre a sua fertilidade e passarem a ter poucos filhos: 1,53 filhos por mulher, em média, durante o período 2005-2010 na Europa, 2,01 na América do Norte. Mas há o enorme resto do mundo.
Nem tudo foram rosas, aqui como em tudo o que se desenvolve. No final da Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento do multilateralismo das Nações Unidas e o estabelecimento gradual do sistema de ajuda internacional deixaram cada vez mais espaço para acções de emergência. Multiplicam-se as agências das Nações Unidas, as agências regionais e as iniciativas de desenvolvimento. As ONG foram destacadas para combater a fome, a pobreza, a cura, o resgate em caso de desastre. Nasce a UNICEF em 1946 quando já se consagrara informalmente o Dia da Criança.
Tem então quase cem anos este dia. Terá sido difícil supor que em 2023 ainda houvesse tantas situações complicadas em todo o mundo. Como explicar que, em número cada vez maior, milhares de crianças vivam e trabalhem nas ruas hoje, enquanto outras passam o dia na escola? Há, naturalmente, órfãos ocasionados por conflitos, particularmente em África, mas a maior parte do fenómeno resulta do desenvolvimento da pobreza nas grandes cidades do Sul Global, também relacionado com o rápido crescimento da população urbana. O empobrecimento de quem trabalha no campo, negligenciado pelas políticas de desenvolvimento, provocou um êxodo maciço para as cidades que permanece até hoje.
A crescente urbanização, acentuada pela pressão demográfica, tem conduzido ao gradual congestionamento das cidades, revelando lacunas na habitação. Os novos migrantes, motivados pela esperança de encontrar trabalho, improvisaram casas de lixo e aglomeraram-se em pequenos espaços com as suas famílias numerosas. Os bairros de lata cresceram rapidamente na periferia. Ao mesmo tempo, os problemas de emprego conduziram a uma deterioração dos rendimentos.
O mercado de trabalho, incapaz de absorver esta chegada maciça de novos migrantes, tornou-se muito precário. Embora os trabalhos se tenham multiplicado na economia informal, o rendimento é muitas vezes insuficiente para alimentar toda a família. O desenvolvimento da pobreza urbana desarticulou as estruturas familiares: os laços afrouxaram-se gradualmente, a solidariedade enfraqueceu e as famílias monoparentais multiplicaram-se, deixando as mulheres sozinhas com seus filhos.
Há números assustadores. Convém lê-los uma segunda vez para perceber a magnitude de tudo isto:
– Estima-se que um quarto das crianças que trabalham em todo o mundo sejam indianas; uma em cada quatro crianças de 5 a 15 anos trabalha, apesar de uma lei de 1986 proibir o trabalho de menores de 14 anos no fabrico de vidros, fósforos, tapetes e pirotecnia. Os jovens de 10 a 14 anos representam cerca de 20% da força de trabalho no fabrico de fósforos.
– No Paquistão, estima-se que entre 8 e 10 milhões de crianças estejam empregadas na agricultura, no fabrico de tijolos e de tapetes, mas também na indústria da construção, onde se estima que representem até 30% da força de trabalho. De acordo com um relatório conjunto do governo paquistanês e da UNICEF, pelo menos um quarto dos trabalhadores infantis urbanos tem menos de 10 anos, mais de metade trabalha onze horas por dia ou mais, e nove em cada dez trabalham mais de oito horas.
– No Bangladesh, as crianças representam 40% da força de trabalho da indústria do vestuário. De acordo com a International Trade Union Confederarion, os jovens trabalhadores, na maioria raparigas, têm por vezes de sair às cinco da manhã e regressar a casa às dez da noite. As crianças são muitas vezes empregadas domésticas em casas particulares ou trabalham em fábricas de cigarros.
Nestes exemplos andámos apenas pela Ásia. Claro que o panorama em África e na América do Sul é desolador, mas talvez estes números de cima nos dêem a dimensão da realidade das coisas.
No mundo ocidental, é a saúde mental a fazer sombras aos mais novos. Os jovens em situação precária estão os mais expostos a problemas de saúde mental, sublinha a OCDE. Nos países europeus, 67% dos jovens que relataram dificuldades financeiras estiveram em risco de depressão durante a pandemia, em comparação com 45% dos que não referiram dificuldades financeiras.
A pandemia tem obviamente as costas largas, mas surgiu e com ela tivemos de viver: ao acentuar a pobreza no mundo, a pandemia de Covid-19 deveria aumentar automaticamente o número de crianças forçadas a trabalhar. Vários milhões terão ajudado as suas famílias a sobreviver, uma vez que estavam privadas de rendimento. Os números são da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da UNICEF em estudos conjuntos.
A crise interrompeu os progressos constantes dos últimos anos devido aos esforços globais para promover a escolaridade e a redução da pobreza. Desde 2000, o número de trabalhadores infantis decresceu em quase 100 milhões. Há, contudo, mais de 500 milhões de crianças entre os 5 e os 17 anos empregadas, sendo que quase 100 milhões o fazem em sectores perigosos, como elaboração de produtos químicos ou trabalhos em minas.
Será necessário combater as raízes profundas da pobreza rural, menos visível que a precariedade urbana, mas que grassa em todo o lado: 70% das crianças trabalhadoras em todo o mundo fazem-no na agricultura para ajudar os seus pais, que não conseguem viver decentemente das suas colheitas; esta miséria rural também alimenta o êxodo para as cidades, onde adultos e crianças não têm escolha a não ser sobreviver por meio de actividades informais e habitualmente muito pesadas.
Sem uma política abrangente, a actual explosão da pobreza terá consequências dramáticas. Não só para estes milhões de crianças empurradas para o mercado de trabalho, que permanecerão na pobreza durante toda a vida e passarão a sua precariedade por via genética. Para bem de todos, espera-se que não aceitem esta perspectiva.
Fontes:
– UNICEF
– Organização Internacional do Trabalho
– International Trade Union Confederation
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