POR HELENA OLIVEIRA
“Uma força para o bem: de que forma é que a finança ‘iluminada’ [ou esclarecida] pode restaurar a fé no capitalismo”. O título, em tradução livre, já é estranho o suficiente, mas mais estranho fica quando quem o assina é John Taft, CEO da poderosa divisão norte-americana de Wealth Management do Royal Bank of Canada, e alguém que afirma que “esteve lá (…) mesmo no meio” quando a crise financeira atingiu Wall Street como um devastador terramoto e provocou réplicas no mundo económico e financeiro globalizado. Lançado no passado dia 17 de Março, o livro em causa é escrito por Taft, em conjunto com um grupo heterogéneo (20 autores), que inclui especialistas “genuínos” da área financeira, desde executivos de topo a operar em firmas de serviços financeiros, a reguladores, académicos de prestígio e até o vencedor do Nobel da Economia em 2013, Robert Schiller.
A ideia central desta nova obra, idealista q.b., para restaurar a confiança perdida no sistema financeiro reza que o mesmo tem agora uma oportunidade para ultrapassar os estragos que infligiu nos últimos (?) anos e transformar-se, de facto, num agente de uma mudança social positiva. Mas se o leitor estiver à espera – como seria natural – que o livro incluísse uma análise de toda a má reputação inerente ao capitalismo nos últimos 200 anos, apesar do seu sucesso inegável em gerar riqueza e contribuir para retirar muita gente da pobreza, esqueça.
Apesar de oferecer perspectivas e abordagens valiosas sobre o mercado imobiliário, as políticas monetárias e fiscais, os sistemas de pensões ou, entre vários outros temas, a regulação do sistema financeiro no seu todo – sobre a qual o autor não tece comentários muito promissores, pelo menos para quem deseja encontrar a “alma perdida” da indústria financeira -, o livro opta pela linguagem “da moda”, argumentando a politicamente correcta ideia de que o que este precisa é de estabelecer um “diálogo” com a sociedade e enquadrar-se num novo “pacto social corporativo” em busca de uma também inovadora “licença social para operar”. Por outro lado, “A Force for Good” aborda também algumas das ideias perigosas que há muito abundam na comunidade financeira, como o “excesso de regulação”. A este respeito, é dedicada uma secção inteira no livro de forma a assegurar que o novo regime regulatório – incompleto em termos vinculativos, na verdade – sirva os propósitos para se atingir “o equilíbrio certo entre estabilidade social, lucro e crescimento económico”. Legislação a menos ou a mais poderá trazer consequências complexas e de longo prazo para a sociedade, acrescenta ainda o autor, sublinhando também que a verdadeira mudança não terá origem em mais regulação para o sector financeiro. Não?
Se assim é, o que pretende então o responsável por uma das maiores firmas de investimento, consultoria e gestão da riqueza dos Estados Unidos – com um total de 270 mil milhões de dólares em activos e 1900 consultores financeiros que operam em 41 dos 50 estados norte-americanos – ao lançar este livro? De acordo com as suas palavras, e numa entrevista que concedeu à Bloomberg, “A Force for Good: How Enlightened Finance Can Restore Faith in Capitalism” tem como propósito alterar a cultura de Wall Street, dotando-a de ética e de responsabilização, a partir de um exercício intelectual sobre “como a próxima iteração do capitalismo poderá ajudar as pessoas a melhorar as suas vidas”.
Se dotar a cultura há muito enraizada no sistema financeiro de ética é, tipicamente, a “million dollar question” procurada por tantas mentes brilhantes (e outras nem tanto), como se propõe John Taft a fazê-lo?
Adicionar novos adjectivos ao capitalismo?
Para que o sistema financeiro se transforme numa “força para o bem”, são necessárias, segundo Taft, ver cumpridas três premissas iniciais: “a indústria financeira tem de parar de contribuir para a extrema volatilidade dos mercados, a qual destabiliza, periodicamente, a economia mundial; os que operam nos mercados financeiros têm de fomentar e empenhar-se numa ‘conversa’ sobre os resultados que a sociedade verdadeiramente deseja e necessita provenientes do sistema económico e, por último, é necessário trabalhar para o realinhamento do sistema financeiro para que este apoie e garanta o modelo económico que melhor alcance esses resultados esperados”, escreve Taft no prefácio do livro.
Num artigo anterior à publicação desta obra, publicado na Corporate Knights, Taft afirmou também que, na medida em que “o que queremos do capitalismo está a mudar”, então é também necessário que aquilo que denominamos de capitalismo “tenha também de mudar”.
Para o também membro activo da Securities Industry and Financial Markets Association (SIFMA), chegou a altura de se adicionar [ao capitalismo] uma nova palavra – inclusivo, generativo, sustentável, fiduciário, social – que reflicta o que pretendemos num “futuro” sistema económico.
“No capitalismo financeiro, o qual representa a construção socioeconómica dominante no mundo da actualidade, existe um contrato metafórico entre a sociedade e os negócios”, escreve, denominando-o como “um pacto social corporativo”, não escrito ou explícito, mas tácito e implícito, e que evolui e sofre mutações. “Este pacto social corporativo representa as expectativas do público no que respeita ao papel que uma empresa, indústria ou um sector económico inteiro representa na sociedade”, explica. “E, em troca de trabalharem para ir ao encontro dessas mesmas expectativas, aos negócios é concedida uma ‘licença para operar’, metafórica e literalmente – que serve para pagar aos seus empregados e dar lucro aos seus accionistas”.
Ora, o que temos vindo a testemunhar no sector financeiro, em particular ao longo da última década foi, na sua essência, “um incumprimento total” desse mesmo contracto, sublinha. Citando um colega, que afirmou “mais um escândalo e vamos acabar como a indústria do tabaco”, Taft afirma que, previsivelmente e sem qualquer surpresa, a reacção da sociedade face a esta “quebra de contrato” tem sido extremamente punitiva. E continua a ser.
De acordo com a mais recente sondagem de opinião, realizada em conjunto pelo Wall Street Journal e pela NBC News, o sector financeiro continua a ocupar o último lugar em termos de “confiança nas instituições” (em conjunto com as seguradoras e com as empresas de grande dimensão). A sondagem, em forma de entrevista, contou com as respostas de 1000 norte-americanos, mas em Portugal, com todos os “bancos maus” que o país já tem no currículo, não seria, decerto, muito diferente. Todavia, e mesmo depois de mais um escândalo de proporções gigantescas como é o mais recente, protagonizado pelo HSBC, a “profecia” negativa do colega não identificado de John Taft ainda não foi cumprida. E, das duas uma: ou o público já não tem qualquer tipo de esperança que algo mude no sistema ou, como defende o próprio Taft, “o sistema financeiro só irá mudar radicalmente depois de uma ‘terceira Grande Crise’”. E, até lá, defende, terá de trabalhar arduamente para voltar a ganhar a confiança do público, o qual continua a manifestar graves ressentimentos depois da “traição de que foi vítima”.
E o que fazer para recuperar essa confiança há tanto perdida? Para Taft, é crucial que se tenham aprendido lições depois dos erros cometidos [o que não parece muito verosímil, como se pode ler no artigo “Banca, bónus e disparidades” que faz parte da edição desta newsletter] e que se levem a cabo acções concretas que comprovem essa vontade de mudança. E, para que tal aconteça, “o sector financeiro precisa de se auto alinhar com aquilo que a sociedade considera realmente importante”, acrescenta.
Sublinhando, mais uma vez, que esta obra representa a visão de várias pessoas que estão empenhadas em divisar “um futuro construtivo” para o sector financeiro – com a ajuda preciosa de um projecto multifacetado que está a explorar formas segundo as quais os actores dos mercados financeiros podem agir em “prol da sociedade” e que se chama Future of Finance Initiative –, “A Force for Good” pretende oferecer visões distintas, por parte dos 20 especialistas que funcionam como co-autores do livro, dos vários pressupostos subjacentes aos capitalismo moderno e de como estes terão de evoluir. Taft elege os seguintes:
- O crescimento económico irá manter-se, em média, entre os dois e os três por cento anuais, na medida em que é o que acontece desde a revolução industrial;
- Os mercados de capitais irão gerar retornos nominais para investidores pacientes na ordem dos sete a oito por cento (cinco por cento em termos reais) ao longo de períodos alargados de tempo;
- A “integração financeira” e o crescimento do sector financeiro relativamente ao PIB tem sido e continuará a ser um contributo líquido positivo para o crescimento económico e para a elevação dos padrões de vida;
- A instabilidade [dos mercados] poderá ser afastada através de estruturas regulatórias complexas e crescentemente sofisticadas;
- Os recursos são infinitos e os efeitos secundários negativos não precisam de ser explicitamente contabilizados;
- E mais rápido significa melhor.
A este propósito, Taft cita o regulador do Reino Unido, Adair Turner, autor do paper “What Do Banks Do”, publicado na London School of Economics: “precisamos de fazer perguntas fundamentais sobre a dimensão e as funções mais adequadas do sistema financeiro e sobre o seu valor intrínseco na economia, sem esquecer quais e sob que tipo de condições o sistema financeiro tende a gerar crescimento económico e estabilidade”.
Como alinhar os objectivos do sistema financeiro com as pretensões da sociedade
Para o autor, o que torna este livro diferente dos inúmeros que foram publicados no período pós-crise financeira, centra-se no facto de os que para ele contribuíram não terem sido convidados a comentar o que aconteceu de errado em 2008/2009 – apesar de, aparentemente, essa “história” não ter sido ainda totalmente dissecada – mas sim o que é preciso fazer, no futuro, para que o sector financeiro se adapte às alterações tectónicas que estão a ocorrer no interior do capitalismo, alinhando-as também com os objectivos da sociedade. Mas, para que tal tenha possibilidade de acontecer realmente, há que:
- “Nós, que trabalhamos na indústria dos serviços financeiros, precisamos de regressar aos seus princípios fundamentais, de nos articulamos e de lembrarmos a nós mesmos o propósito do sector financeiro;
- O contrato pós crise financeira entre a sociedade e o sistema financeiro espera que este último ‘ofereça funções de utilidade pública’ e que demonstre ‘uma fundamental e maior responsabilidade’ que sirva a economia real;
- Precisamos de aceitar a possibilidade que o crescimento lento ou o não crescimento possa constituir a natureza do ambiente económico nas próximas décadas. E, se tal acontecer, o retorno dos portefólios de investimento pode atingir valores reduzidos históricos, o que obrigará a novos desafios tanto para os indivíduos como para instituições variadas;
- Temos ainda um longo caminho pela frente no que respeita a restaurar a confiança na integridade das firmas financeiras, na autenticidade dos líderes da indústria e na reconstrução da confiança nos mercados financeiros;
- O pensamento de curto prazo e as actividades especulativas precisam de ser substituídas por pensamento de longo prazo e por actividades que beneficiem os players reais, nos mercados reais e no mundo real;
- Apesar de o crescimento continuar a ser a chave para melhorar o bem-estar social, o crescimento sustentável está a substituir o crescimento ‘normal’ em todas as esferas” e há que saber como retirar o melhor proveito desta inevitabilidade.
As intenções de John Taft e dos seus 20 convidados parecem ser as melhores. Mas que não se fiquem por isso mesmo: meras boas intenções. Como escreve o economista da universidade de Yale, Robert Schiller, “os objectivos servidos pelo sector financeiro devem ter origem em nós mesmos, na medida em que reflectem os nossos interesses em termos de carreira, a esperança para as nossas famílias, as ambições para os nossos negócios, as aspirações para a nossa cultura e os ideais para a nossa sociedade”.
Por último, convém lembrar também que ninguém tem o poder de legislar a integridade ou a ética. Para tal é necessária uma liderança forte, com padrões éticos elevados e que lute, realmente, para alterar a cultura mais do que enraizada que vai corroendo todo o sector financeiro. Há tempo demais.
Editora Executiva