POR GABRIELA COSTA Ibrahim, 10 anos. Foi salvo pela irmã pouco mais velha, depois de o pai ter sido atacado e assassinado por insurgentes, num ataque brutal no noroeste do seu país, a Nigéria. Aletho, 14 anos, Etiópia. Vive há mais de uma década num campo de refugidos no Quénia, onde já nasceram os dois irmãos mais novos. O seu país “é uma memória distante”. Hani, 21 anos. Fugiu com a família da guerra na Síria – o principal país de origem de refugiados, a nível mundial – levando consigo apenas o diploma de ensino médio e meia dúzia de recordações felizes. Felisa, 33 anos, colombiana. Foi forçada a sair de sua casa, na reserva indígena Makaguán, depois de ter sobrevivido a repetidas ameaças e abusos sexuais praticados por um grupo armado ilegal. Tahir, 43 anos. Foi levado ainda muito novo do Afeganistão por contrabandistas pagos pelos seus pais, numa tentativa de salvar o filho dos crescentes combates no país.
Cinco pessoas entre 59,5 milhões em todo o mundo que estão deslocadas dos seus países, depois de terem sido forçadas a fugir das suas casas devido a guerras, violência, perseguições e violações de direitos humanos. Cinco histórias que se multiplicam e se tornam mais dramáticas a cada ano, agora divulgadas entre dezenas de outras, pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), no âmbito do Dia Mundial do Refugiado, assinalado a 20 de Junho. Histórias extraordinárias em tudo, a começar pela coragem e resiliência dos seus protagonistas, menos na crescente tendência com que se repetem, entre famílias inteiras.
Num cenário em que o total de população obrigada a deslocar-se e procurar abrigo seguro atingiu um nível recorde e um crescimento anual nunca antes registado, a agência da ONU alerta, no relatório “Global Trends: World at War” para uma “nova e perigosa onda de deslocação global”.
O Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres, considera “aterrorizador” verificar que, “há cada vez mais e mais impunidade para os conflitos que se iniciam”, ao mesmo tempo que alastra “uma absoluta inabilidade da comunidade internacional em trabalhar conjuntamente para dar fim às guerras e construir uma paz perseverante”. E, a respeito da nova edição do relatório do ACNUR, que avalia a situação mundial dos deslocados e refugiados em 2014, conclui que “estamos a testemunhar uma mudança de paradigma, entrando numa nova era na qual a escala de deslocação global e a resposta necessária a este fenómeno é claramente superior a tudo que já aconteceu até agora”.
Divulgado a 18 de Junho, o documento revela um claro crescimento no número de deslocados, a nível mundial, registando no final de 2014 um recorde de quase 60 milhões de pessoas nessa situação. Comparativamente aos 51,2 milhões de deslocados assinalados no final de 2013, este é o maior crescimento de sempre num único ano. Há uma década, existiam 37,5 milhões de deslocados no mundo.
Número de deslocados quadruplica em quatro anos
Esta tendência de crescimento é particularmente expressiva desde o início da guerra na Síria, em 2011, a qual se transformou “no maior evento individual causador de deslocações no mundo”, com um total de 7,6 milhões de deslocados e 3,88 milhões de pessoas refugiadas noutros países, conclui o relatório do ACNUR. Seguem-se o Afeganistão e a Somália, países de origem de 2,59 e 1,1 milhões de refugiados, respectivamente.
A percentagem da população que se tornou refugiada, requerente de protecção internacional ou deslocada interna quadruplicou em apenas quatro anos, atingindo uma média de 42,5 mil pessoas por dia, em 2014. Em todo o mundo, um em cada 122 indivíduos está actualmente numa dessas três condições. “Se fossem a população de um país, representariam a 24º nação mais populosa do planeta”, projecta a agência das Nações Unidas.
[pull_quote_right]O total de população deslocada atingiu um nível recorde e um crescimento anual nunca antes registado[/pull_quote_right]
O relatório põe a descoberto um “cenário de múltiplos conflitos” onde as populações refugiadas e deslocadas cresceram em todas as regiões do mundo, e perante o qual cresce uma “onda de intolerância e xenofobia em muitas partes do mundo”, como sublinhou, no Dia Mundial do Refugiado, o CPR – Conselho Português para os Refugiados.
Nos últimos cinco anos, pelo menos 15 conflitos foram iniciados ou retomados, contabiliza o documento: oito na África (Costa do Marfim, República Centro Africana, Líbia, Mali, nordeste da Nigéria, República Democrática do Congo, Sudão do Sul e Burundi); três no Médio Oriente (Síria, Iraque e Iémen); um na Europa (Ucrânia); e três na Ásia (Quirguistão e em diferentes áreas de Mianmar e Paquistão). “Poucas dessas crises foram solucionadas e muitas ainda geram novas deslocações”, lamenta o ACNUR. Ao mesmo tempo, conflitos de longa data no Afeganistão e na Somália, por exemplo, obrigam milhões de pessoas originárias destas regiões a permanecer “em movimento, à margem da sociedade ou na incerteza”, sem perspectivas para o futuro.
Em 2014, apenas 126,8 mil refugiados conseguiram regressar aos seus países de origem, o que representa “o menor número em 31 anos”.
Perante esta realidade, o ACNUR manifesta-se preocupado com as mais “recentes e visíveis consequências dos conflitos globais”, entre as quais se destaca o dramático crescimento de refugiados que – a partir, principalmente, da Síria, Eritreia, Afeganistão, Sudão e Iraque -, realizam jornadas marítimas perigosas no Mediterrâneo, em busca de protecção. O Golfo de Áden, a norte do Oceano Índico, o Mar Vermelho e o Sudeste da Ásia são outras zonas de risco onde se concentram os ‘fugitivos’ forçados.
Mais crianças e jovens do que adultos refugiados
Só em 2014, somaram-se 13,9 milhões de pessoas ao número de novos deslocados – quatro vezes mais que em 2010, como referido. Entre os perto de 60 milhões de deslocados, refugiados e requerentes de asilo que os conflitos armados, perseguições, violência e violações de direitos humanos geraram, sem precedentes, 38,2 milhões são deslocados internos (bem mais que os 33,3 milhões registados em 2013), 19,5 milhões são refugiados (acima dos 16,7 milhões, em 2013) e 1,8 milhões são requerentes de protecção internacional (comparativamente a 1,2 milhões no ano anterior).
Um dos dados mais alarmantes da actual edição do relatório do ACNUR diz respeito às crianças e jovens: mais de metade dos refugiados no mundo (51%) têm menos de 18 anos. Em 2009 esta percentagem era de 41%. O número de crianças e jovens refugidos em 2014 é o mais elevado da última década. No ano passado deram entrada 34 300 pedidos de asilo, por menores não acompanhados ou separados, em 82 países. Na maioria, são menores afegãos, sírios, da Eritreia e da Somália, que representam o maior número de pedidos registado, desde que o ACNUR começou a compilar estes dados, em 2006.
Para o agravamento desta realidade terão contribuído o conflito na Ucrânia, o recorde de travessias no Mediterrâneo (219 mil pessoas) e o elevado número de refugiados sírios na Turquia (que em 2014 se tornou o país que acolhe a maior população de refugiados no mundo, incluindo 1,59 milhão de sírios). Estes fenómenos chamaram a atenção da opinião pública para o tema, “tanto positiva quanto negativamente”, conclui o relatório. Na União Europeia, a maioria dos pedidos de acolhimento ocorreu na Alemanha e na Suécia.
Em Portugal, e entre Janeiro e Maio de 2015, foram comunicados ao CPR, pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, 387 pedidos de protecção internacional. Estes pedidos foram apresentados por 37 nacionalidades diferentes, sendo os países de origem mais relevantes a Ucrânia (com 195 pedidos), a China (com 45 pedidos), o Mali (25 pedidos), o Paquistão (com 19 pedidos) e Marrocos (com 12 pedidos). Neste período foram igualmente registados 19 pedidos de asilo por menores não acompanhados. Em 2014, registaram-se 442 pedidos de protecção internacional no nosso País (principalmente da Ucrânia, Paquistão e Marrocos), mantendo-se a tendência, “verificada nesta última década”, para um aumento do número de requerentes de asilo.
Em geral, o número de deslocados e refugiados cresceu 51% na Europa, com a deslocação forçada a totalizar 6,7 milhões de pessoas no final do ano, comparativamente aos 4,4 milhões registados no final de 2013. Quase 25% desta população são refugiados sírios na Turquia.
No Médio Oriente e Norte da África o número de deslocados mas também de refugiados aumentou 19%, em muito devido à guerra na Síria e à situação no Iraque, que gerou novos deslocados; na África Subsaariana (excluindo a Nigéria), esse crescimento chegou aos 17%, face aos numerosos conflitos na República Centro Africana, Sudão do Sul, Somália, Nigéria e República Democrática do Congo, “geralmente esquecidos”; na Ásia, este problema aumentou 31% (desta vez, mais pela situação na Síria do que pela do Afeganistão), reforçando a tendência de esta ser uma das principais regiões do mundo afectadas por deslocações forçadas; e nas Américas, o fenómeno agravou-se em 12%, com a Colômbia no centro da origem e acolhimento de deslocados. Na sequência da violência de gangues urbanos e outras formas de perseguição na América Central, os Estados Unidos receberam, em 2014, mais 44% de pedidos de acolhimento que no ano anterior.
A presença dos refugiados mantém-se bastante maior nos países mais pobres: 86% estão em regiões ou países considerados economicamente menos desenvolvidos.
[pull_quote_left]O número de crianças e jovens refugidos em 2014 é o mais elevado da última década[/pull_quote_left]
Face à “enorme falta de financiamento” e a “grandes falhas” no regime global de protecção das vítimas de guerra, “as pessoas com necessidade de compaixão, ajuda e asilo estão a ser abandonadas”, sublinhou António Guterres na análise a estes dados globais. Numa época “de deslocações massivas sem precedentes, necessitamos de uma resposta humanitária também sem precedentes, e um compromisso global renovado de tolerância e protecção para as pessoas que fogem de conflitos e perseguições”, apelou o Alto Comissário.
Face ao testemunho “massivo” de famílias inteiras a fugir da violência, um pouco por todo o mundo, o Alto Comissário defendeu ainda que “não nos podemos esquecer que se tratam de pessoas que tinham vidas normais antes de a guerra tê-las forçado a fugir”, apelando a que governos e países desenvolvidos “se lembrem daquilo que nos liga a todos: a nossa humanidade”.
Perante a emergência humanitária que apenas em 2015 se começou a expandir no Mediterrâneo (graças ao número sem precedentes de migrantes que tem tentado chegar à Europa em embarcações superlotadas e perigosas, controladas por traficantes de pessoas), obrigando os líderes da União Europeia a encontrar soluções para um problema que não é só da Itália, mas também perante iniciativas inéditas como a do Papa Francisco que, no mês em que se assinala o Dia Mundial do Refugiado, lançou a encíclica ambiental “Laudato Sí” – na qual alerta para o “trágico aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa” -, poderão estes milhões e milhões de pessoas ter a esperança de contar com o poder da comunidade internacional para atenuar as guerras e construir a paz?
Sistema biométrico fornece a muitos o seu único registo de identidade pessoal
A Accenture e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados desenvolveram, a nível mundial, um sistema biométrico unificado, de registo e identificação de pessoas desaparecidas, que permite garantir a assistência que os refugiados necessitam, independentemente do local em que se encontram. O sistema regista e armazena as impressões digitais, os dados da íris e o reconhecimento facial dos indivíduos, fornecendo a milhares de pessoas com documentação irregular o seu único registo de identidade pessoal.
O contrato estabelecido por três anos prevê a implementação, pela agência da ONU, do Sistema de Gestão de Identidade Biométrica (BIMS) da Accenture nas suas operações globais, divulga a consultora em comunicado. A implementação do BIMS já foi iniciada em campos de refugiados na Tailândia e na República do Chade, tendo identificado até hoje mais de 100 mil residentes no Chade e mais de 120 mil pessoas, em nove campos na Tailândia. O mecanismo regista aproximadamente 2500 pessoas por dia, que perderam os seus documentos quando foram forçadas a fugir dos seus países, ou os viram confiscados pelas autoridades.
Este sistema de identidade biométrica potencia as capacidades da Plataforma Única de Serviços de Identificação, que opera em conjunto com o sistema de gestão de casos do ACNUR, ligando as estações de verificação nos escritórios do Comissariado e acampamentos no mundo inteiro a um banco central de dados biométricos da Accenture, em Genebra, prevendo-se que seja alargado a nível mundial.
Jornalista