Para Ana Paula Laborinho a Agenda Pós-2015 “traz consigo a perspectiva universal do desenvolvimento”, a qual implica “a responsabilização conjunta de países desenvolvidos e países em desenvolvimento”, para que seja possível enfrentar os actuais “desafios económicos, sociais, políticos e demográficos”. Numa grande entrevista, a presidente do Instituto Camões – entidade coordenadora do AED 2015 em Portugal -, defende a urgência de debater o “lugar de Portugal e da Europa” neste trajecto, e a necessidade de alavancar os recursos do sector privado, reconhecido como parte essencial desta nova parceria mundial
POR GABRIELA COSTA

O Ano Europeu para o Desenvolvimento percorreu já metade do seu exaustivo caminho em busca de dignidade para todos na construção de um futuro sustentável, numa altura em que a transição dos não alcançados Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) para os ainda incertos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) faz de 2015 a data chave para a definição de uma nova Agenda para o Desenvolvimento Global.

Neste que é o primeiro Ano Europeu dedicado à política externa da UE, a presidente do Camões – Instituto de Cooperação e da Língua, que coordena a nível nacional o AED 2015, defende, numa grande entrevista ao VER, que “é cada vez mais urgente impulsionar o conhecimento e o debate sobre “o lugar de Portugal e da Europa nos novos desafios do desenvolvimento, num mundo cada vez mais interdependente e globalizado”.

Desafios que se debatem no AED 2015, mês a mês e por esta ordem, através das temáticas “A Europa e o Mundo”; “A Educação”; “Mulheres e Raparigas”; “Saúde”; “Paz e Segurança”; “Crescimento Sustentável”, “Trabalho Digno e Empresas”; “Crianças e Jovens”; “Ajuda Humanitária”; “Migrações e Demografia”; “Segurança Alimentar”; “Desenvolvimento Sustentável”; e “Direitos Humanos”. E que estão a “sensibilizar e a promover a participação e o pensamento crítico dos cidadãos portugueses”, no que diz respeito às políticas de cooperação portuguesa e europeia.

Desafios, ainda, para os quais serão estipuladas metas até 2030, na Cimeira das Nações Unidas para a adopção da Agenda Pós-2015, que terá lugar em Nova Iorque, entre 25 e 27 de Setembro.

© EYD 2015
© EYD 2015

Numa Europa em profunda crise de valores, a proclamação de 2015 como Ano Europeu para o Desenvolvimento constitui, na sua opinião, um meio efectivo para pressionar os líderes globais a valorizarem, no processo de ‘reconstrução’ europeia, a dignidade humana enquanto condição basilar do desenvolvimento sustentável?

O Ano Europeu para o Desenvolvimento foi decretado por decisão conjunta do Parlamento e do Conselho da União Europeia, decorrendo actualmente em todos os países da União Europeia, sob o mote “O nosso mundo, a nossa dignidade, o nosso futuro”.

Este Ano Europeu destaca-se enquanto o primeiro dedicado à política externa da União Europeia, num ano especialmente importante para o desenvolvimento global, já que marca o fim da vigência dos ODM e a definição de uma nova Agenda para o Desenvolvimento Global. Torna-se cada vez mais necessário e urgente aprofundar o conhecimento e impulsionar o debate sobre o lugar de Portugal e da Europa nos novos desafios que se colocam nesta matéria, num mundo progressivamente interdependente e globalizado. A estes dados acresce o facto de a Europa continuar a ser o maior doador a nível mundial, o que torna esta reflexão, e o consequente debate, ainda mais actuais e pertinentes.

O desenvolvimento, entendido enquanto desenvolvimento sustentável, passa necessariamente por muito mais do que aumento do rendimento ou crescimento económico, dependendo de uma diversidade de factores onde se incluem as oportunidades económicas, as liberdades políticas, o acesso a serviços básicos ou o empoderamento social. Neste sentido, consiste na remoção de barreiras e restrições que limitam de várias formas as escolhas e oportunidades das pessoas, pela defesa da dignidade humana, e num esforço conjunto dos líderes, quer dos países desenvolvidos, quer dos em desenvolvimento.

De que modo está a dinamização do AED a contribuir para a participação activa e para o reforço do pensamento crítico dos cidadãos europeus relativamente à nova Agenda para o Desenvolvimento?

O Ano Europeu para o Desenvolvimento pretende ser um catalisador de sensibilização para as temáticas da cooperação para o desenvolvimento, através da promoção do debate público, da educação para o desenvolvimento e da divulgação e partilha de boas práticas. Ambiciona, assim, incentivar a participação directa, o pensamento crítico e o interesse activo dos cidadãos da União nesta área, bem como na formulação e execução das respectivas políticas.

[pull_quote_center]A dependência é, cada vez mais, uma questão que toca a todos e não apenas aos mais pobres[/pull_quote_center]

Pretende igualmente sensibilizar para a política europeia de cooperação, procurando alcançar uma maior compreensão da coerência das políticas numa perspectiva de desenvolvimento e promovendo, tanto junto dos cidadãos da Europa como dos cidadãos dos países em desenvolvimento, um sentimento comum de responsabilidade, solidariedade e oportunidade.

Só com cidadãos mais informados, conscientes e sensibilizados para a relevância da ajuda pública ao desenvolvimento (APD), contribuindo quer para a discussão, quer para a implementação e monitorização das próprias políticas, será possível alcançar os objectivos previstos na nova Agenda para o Desenvolvimento Global. Nesse sentido, o AED constitui uma oportunidade única para que estas temáticas estejam cada vez mais presentes nos debates da actualidade.

Qual é a relevância de cada temática trabalhada mensalmente no âmbito deste Ano Europeu para um debate alargado sobre os grandes desafios sociais, políticos, económicos e demográficos que o continente e o mundo enfrentam, e sobre as actuais políticas de cooperação para o desenvolvimento?

Todas as temáticas trabalhadas no âmbito do AED contribuem para o desenvolvimento sustentável, entendido como desenvolvimento global, destacando-se as áreas previstas na Agenda Pós-2015.

Aliás, os ODS incluem áreas anteriormente não previstas nos ODM, tão relevantes como a desigualdade de e entre países, a paz, a segurança, a produção, os padrões de consumo e as alterações climáticas. A nova Agenda para o Desenvolvimento traz consigo a perspectiva universal do desenvolvimento, no qual se verifica não só o alargamento das temáticas, mas também a responsabilização conjunta de países desenvolvidos e países em desenvolvimento, com a finalidade de enfrentar os desafios económicos, sociais, políticos e demográficos com que todos nos deparamos actualmente.

© EYD 2015
© EYD 2015

Que balanço faz das acções já dinamizadas em Portugal, no âmbito dessas temáticas mensais, ao nível do envolvimento e mobilização dos diferentes parceiros e públicos alvos, e que expectativas tem para as acções a realizar nos próximos meses, nomeadamente a conferência internacional sobre os ODS?

Durante o primeiro semestre do ano, entre as actividades previstas no Programa de Trabalho Nacional AED 2015, destacamos a cerimónia de abertura na cidade do Porto, em parceria com a Câmara Municipal do Porto; o lançamento da campanha nacional com referência a três histórias representativas do trabalho desenvolvido pela cooperação portuguesa; a exibição da exposição de rua nas cidades de Lisboa e do Porto, assim como em Serralves em Festa; a Semana do Desenvolvimento, da Plataforma Portuguesa das ONGD; o lançamento do prémio de jornalismo, em parceria com a ONGD Corações com Coroa, e do prémio de investigação para o desenvolvimento, em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, bem como o inquérito lançado aos parceiros do desenvolvimento.

Esta primeira metade do ano foi bastante intensa, revelando-se um desafio quer para o Instituto Camões, enquanto coordenador nacional, quer para os nossos parceiros. É um desafio trabalhoso mas muito gratificante, especialmente se tivermos em consideração o número de parceiros que se associaram a nós no AED: actualmente temos mais de 120 organizações que não só estão a colaborar connosco no âmbito do programa nacional, mas que se apoderaram deste Ano Europeu, integrando o mote e a mensagem que se pretende passar nos seus canais de comunicação e nas actividades que desenvolvem.

Até ao final do ano pretendemos continuar trabalhar com os nossos parceiros, contribuindo para informar, sensibilizar e promover o interesse, a participação e o pensamento crítico dos cidadãos portugueses no que diz respeito às políticas de desenvolvimento portuguesa e europeia e ao papel de Portugal e da Europa nos novos desafios do desenvolvimento.

Prevemos ainda a realização de uma conferência internacional em Outubro, contribuindo para a reflexão sobre as formas de operacionalização dos ODS; a entrega dos prémios de jornalismo e de investigação; a exibição da exposição em diferentes lugares do país e a celebração final, no encerramento do AED. Todas as actividades e histórias associadas à promoção do AED 2015 em Portugal podem ser acompanhadas no site oficial e na página do facebook.

Concretamente em relação ao tema de Junho – crescimento sustentável, trabalho digno e empresas – que contributo pode o sector privado dar para combater os flagelos do desemprego e da pobreza, agravados pela crise mundial?

O contributo do sector privado como fonte de crescimento e desenvolvimento e de criação de oportunidades de emprego é amplamente reconhecido, pelo que os países em todo o mundo estão a promover o seu envolvimento como promotores de emprego, criadores de riqueza, de bens e serviços, impulsionadores de inovação e mudança (através de formação, capacitação, novas tecnologias, investigação), e geradores de recursos públicos essenciais para o bem-estar económico, social e ambiental das sociedades.

O sector público e o privado serão certamente mais eficazes quando trabalham em conjunto. O primeiro tem um papel crucial na criação do ambiente propício ao investimento e à actividade empresarial, permitindo que o segundo se desenvolva e se torne um parceiro na criação de emprego e, consequentemente, de um crescimento e desenvolvimento que se pretende sustentável e inclusivo.

Tendo em conta que os níveis de produtividade do trabalho nos países em desenvolvimento são cinco vezes inferiores à média das economias desenvolvidas, como é que se pode aumentar o investimento privado externo nestes países, concretamente em emprego qualificado, e por parte de multinacionais?

Nos países em desenvolvimento é fundamental que se criem condições favoráveis ao crescimento do sector privado. É essencial construir as fundações (ambiente macro e doméstico estável, infra-estruturas físicas e sociais e Estado de Direito) e os pilares do empreendedorismo (transparência e igualdade de tratamento, acesso a financiamento e recursos humanos qualificados).

[pull_quote_center]O desenvolvimento consiste na remoção de barreiras que limitam as escolhas e oportunidades das pessoas[/pull_quote_center]

De acordo com um relatório do PNUD, as empresas multinacionais possuem recursos, estimados em 5 mil milhões de dólares, que poderiam ser investidos na construção da capacidade produtiva dos países em desenvolvimento, particularmente na área do desenvolvimento sustentável.

Sendo o sector privado reconhecido como parte integrante e essencial da nova parceria mundial para o desenvolvimento, importa fazer uso de um conjunto de instrumentos e modalidades que promovam e alavanquem os seus recursos (formação, capacitação, recursos financeiros) em prol do desenvolvimento.

A respeito do tema deste mês, defende que as crianças e jovens constituem “um agente crítico para a construção de um futuro sustentável”, já que são “actores da mudança”. Em que medida é vital manter esta geração no centro dos objectivos da Agenda Pós-2015 para colmatar as crescentes dificuldades que enfrentam – pobreza, fome, deslocações forçadas, falta de acesso a saúde e educação, etc.?

As crianças e os jovens são actores centrais do desenvolvimento, e devem estar no centro dos processos de mudança e da agenda do desenvolvimento, afigurando-se a sua participação como crítica para o futuro sustentável que queremos construir.

Nesta nova agenda os direitos da criança permanecem no centro, sendo reforçada a abordagem baseada nos direitos humanos, na garantia do bem-estar de crianças e jovens e no seu desenvolvimento integral, enquanto pessoas e cidadãos, tendo em vista o desenvolvimento sustentável das sociedades e o reforço dos direitos humanos como referencial ético fundamental. Salienta-se que o desenvolvimento sustentável reclama crianças e jovens seguros, saudáveis, educados, participativos e com oportunidades.

Para tal, as organizações internacionais, os governos e os cidadãos têm o dever de suportar e monitorizar políticas públicas e mobilizar recursos adequados. Muito em particular, junto dos países em desenvolvimento, onde se encontra a maioria dos 470 milhões de crianças em situação de pobreza extrema, dos 58 milhões fora do ensino primário e dos milhões de meninos e meninas que são objecto de qualquer tipo de violência ou levados para longe de casa.

É mesmo verdade que as crianças são o nosso futuro e sem que estejam garantidas as condições necessárias para o seu bem-estar e a salvaguarda dos seus direitos fundamentais, o tão desejado desenvolvimento sustentável não será possível.

O Camões é responsável pela execução da Política de Cooperação para o Desenvolvimento em Portugal, a qual actua prioritariamente nos PALOP e em Timor Leste. Quais são as prioridades estratégicas para o futuro nesta matéria?

Portugal continuará a privilegiar a cooperação nos PALOP e em Timor Leste com uma intervenção estruturante não só ao nível da boa governação e Estado de Direito, mas também no desenvolvimento humano de cada país.

O Conceito Estratégico da Cooperação Portuguesa 2014-2020 é o instrumento orientador das prioridades e dos actores nacionais em matéria de cooperação para o desenvolvimento, num quadro que constitui um desafio para todos, mas também uma janela de oportunidade para o que consideramos ser um investimento de carácter nacional.

Enquanto entidade coordenadora do AED para Portugal, que expectativas têm quanto ao impacto desta iniciativa nos cidadãos, que revelam ser dos mais solidários da Europa, no que toca a aumentar a APD?

O AED tem como um dos seus objectivos dar a conhecer os resultados da Ajuda Pública ao Desenvolvimento, pelo que constitui uma oportunidade para informar os cidadãos quanto aos benefícios em apoiar os países que, por vicissitudes várias, ainda não atingiram o patamar de desenvolvimento necessário. A criação de bem-estar nas populações respeitando os direitos humanos, proporcionando-lhes o acesso a serviços básicos como a educação ou a saúde, é um dever, no sentido de que devemos ser solidários porque a dependência é, cada vez mais, uma questão que toca a todos e não apenas aos mais pobres.

Assim, o AED servirá também para dar a conhecer como é utilizado o dinheiro dos contribuintes no âmbito da APD. Os dados são públicos e é possível saber onde investimos e que benefícios já foram alcançados, fruto das apostas que Portugal fez nos diversos países.

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Jornalista