“Um projecto único no mundo”, uma “Europa cada vez mais isolacionista e vegetariana” e uma “integração que não faz perder os interesses nacionais” constituem, de um modo geral, as principais visões de Maria João Rodrigues, João Marques de Almeida e António Vitorino, no plenário de abertura de mais uma conferência da FFMS, face ao papel de Portugal na Europa e desta última no mundo
POR HELENA OLIVEIRA

© Fundação Francisco Manuel dos Santos

Questionar os caminhos de Portugal enquanto país europeu e europeizado constituiu o mote para o 2º Encontro Presente no Futuro, com tanto ou mais sucesso do que aquele que teve lugar o ano passado no CCB. O encontro deste ano, no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, e subordinado ao tema “Portugal europeu. E agora?” demonstra o que toda a gente parecia adivinhar: as grandes conferências, com temáticas de interesse e oradores de peso, não servem apenas para agradar a audiências compostas por grupos restritos ou elitistas, mas também a uma sociedade civil que, até agora, tem vindo a ser caracterizada como pouco participativa. Na verdade, a diversidade de participantes no evento em causa prova, ao invés, que se tiverem oportunidade para tal, jovens, adultos e seniores estão prontos para ouvir, e intervir, nas questões que realmente interessam para a (re)construção de um outro país, mais envolvido e preocupado, com novos valores de cidadania emergentes e que parece cansado de ser um mero receptor de imposições externas.

Com três temas principais em debate – Comunidade Política, a Europa no Mundo e Portugal na Europa – divididos em plenários, debates e conversas mais restritas, vários deles em simultâneo, a única dificuldade foi a escolha. O VER aborda, neste artigo, o enquadramento dos três temas centrais, respectivamente realizados pela ex-ministra do Emprego e consultora da União Europeia, Maria João Rodrigues, por João Marques de Almeida, ex-assessor do Presidente da Comissão Europeia e por António Vitorino, ex-comissário europeu.

A Europa enquanto comunidade política
“Um projecto único no mundo que vale a pena prosseguir”
Foi com algumas questões que Maria João Rodrigues deu início à sua visão pessoal do “estado de arte” da Europa do presente. É a Europa uma verdadeira comunidade política? Quer a Europa ser uma verdadeira comunidade política? Para ser uma comunidade política, é necessário que tenha não só um propósito e projecto comuns, mas também uma identidade que seja comum a todos os seus Estados-membros?

Reafirmando a encruzilhada na qual a Europa do século XXI se encontra, a braços com uma crise económica, financeira e também social, mas considerando que a União Europeia (UE) continua a ser “um projecto único na história mundial”, a ex-ministra do Emprego focou as divisões evidentes que existem no seu interior – de que são exemplo as posições face à Síria, às novas democracias, a parcerias estratégicas, entre outras – ao mesmo tempo que relembrou a “boa ideia de uma Europa” que tinha uma agenda comum de crescimento e de desenvolvimento sustentável , que alcançou também um dos seus objectivos com a criação da moeda única mas que, actualmente, não goza de consenso estratégico, em particular devido a dois problemas por excelência: a já estafada crise da zona euro – com responsabilidades de todos os Estados-membros –  e  a União Económica Monetária (UEM) que, a seu ver, não está “nem completa nem calibrada, faltando-lhe instrumentos comuns para gerir a dívida ou para dar resposta os diferentes choques financeiros”.

“A hierarquização interna dos Estados-membros ultrapassa aquilo que é aceitável”

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A consultora da União Europeia expôs igualmente três caminhos que, a seu ver, a Europa pode vir a seguir: a resposta minimalista (actual) e que mais uvas não dará, na melhor das hipóteses,  a não ser um crescimento cronicamente débil, um processo organizado de desactivação do euro com todos os riscos que lhe são inerentes ou, a rota que defende, “uma verdadeira vontade política de a UEM com esforços reais de cada Estado-membro para resolver os seus problemas, com a implementação de instrumentos comuns que podem passar pelos eurobonds ou pela criação de um orçamento específico para a zona euro”. Todavia, tal implica necessariamente um acordo político no que respeita à soberania, ou seja, a possibilidade de quem emitir dívida a poder controlar e saber, exactamente, o que é feito com ela, algo que não acontece hoje devido às profundas divisões existentes no Conselho Europeu.

Para Maria João Rodrigues, “a hierarquização interna dos Estados-membros ultrapassa aquilo que é aceitável”, na medida em que o parlamento de um determinado país pode ter mais força ou poder para decidir o futuro de um outro país do que o seu próprio parlamento”, afirmando também que a recuperação da soberania nacional é algo extremamente difícil pois obrigaria a “uma desmontagem da UEM e da sua interdependência”.

Assim, resta uma terceira opção, a da já mencionada construção de uma verdadeira união política, com repercussões sobre o poder executivo – a começar no próprio Conselho Europeu (cuja ideia de uma cimeira regular com os países da zona euro é salutar, mas não suficiente), com um Governo escolhido pelo Presidente (que deverá ter igualmente o poder de escolher a sua própria equipa) que responda perante o Parlamento Europeu o qual deverá, também, admitir a diferença para lidar com as especificidades da UE.

Maria João Rodrigues chama ainda a atenção de que esta ideia só poderá vingar se existir uma alteração do que significa “ser cidadão europeu”, na medida em que actualmente existe uma “enorme fragilidade no espaço público europeu”, com a inexistência, por exemplo, de media verdadeiramente europeus, pouca massa crítica e poucas “personalidades” europeias. Para a consolidação deste significado, a consultora da UE defende, a título de exemplo, uma maior aposta no programa Erasmus, importantíssimo para os jovens e um serviço público de televisão europeu.

Em suma, a ex-ministra do Emprego afirma que, “face à crise muito grave que atravessamos, estamos também cientes de que esta pode ser uma oportunidade”, mas que para não a perdermos é essencial que a nível de projecto comum se complete a UEM, que em termos de governação a UE seja dotada de uma união política e da urgência em fazer emergir uma verdadeira identidade europeia. “É preciso que cada um de nós escolha o que quer ser enquanto cidadão europeu e o que cada um de nós quer dar à Europa”, rematou.

A Europa no mundo
Europa isolacionista e “vegetariana”
A dependência da Europa face aos Estados Unidos, o impacto da emergência dos BRIC e o também impacto da crise europeia no relacionamento com as demais potências foram os temas escolhidos por João Marques de Almeida, ex-assessor de Durão Barroso, no que respeita à sua visão sobre a política externa da União Europeia.

“Se é muito bom que nenhum Estado-membro queira sair da Europa, parece que a Europa quer sair do mundo”. Foi com esta tirada irónica que o actual professor na London School of Economics deu início à sua caracterização de uma Europa que considera isolacionista. Este isolacionismo tem algumas razões que o suportam – uma percepção geral do declínio europeu face às economias emergentes, uma fadiga dos europeus no que respeita às questões externas, nomeadamente as guerras no Iraque ou no Afeganistão e, talvez mais importante que tudo, a crise geral europeia e interna de alguns países em particular que “não deixam” os cidadãos europeus pensarem no que se passa no resto do mundo.

João Marques de Almeida afirma compreender este isolacionismo, mas chama atenção para os perigos que encerra, tanto para a própria Europa, como para o resto do mundo, afirmando todavia que “apesar de tudo, a Europa tem fortes convicções e valores políticos salutares”.

Todavia e no que ao mencionado isolacionismo diz respeito, Marques de Almeida identifica três grandes perigos.

“A democracia europeia não pode ser indiferente aos valores não democráticos exteriores”

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O primeiro, que denominou de “cinismo político”, e que poderia advir da incapacidade que a Europa tem em afirmar-se politicamente, está mais enraizado, a seu ver, na enorme indiferença existente quanto às lutas relativamente a valores que consideramos essenciais, apesar de, a nível diplomático, estas serem muito difíceis de travar. Um exemplo? A Rússia. Se é impossível negar os relacionamentos e interesses europeus face a esta potência, por outro lado “não é possível ignorar o que por lá se passa”. Para o professor, a indiferença não pode ser o caminho face à defesa destes valores – existe uma tendência marcadamente europeia de os considerar como intrínsecos, a qual não é real -, sendo necessário relembrar as ervas daninhas que continuam a persistir numa Europa dita democrática.  Ou, como encerra este ponto em particular, “a democracia europeia não pode ser indiferente aos valores não democráticos exteriores”.

O segundo grande perigo do isolacionismo levou o orador a citar uma frase escrita no Financial Times e que afirmava que “a Alemanha é um país vegetariano no meio de carnívoros”, algo que para Marques de Almeida, pode acontecer à Europa face ao resto do mundo. E este vegetarianismo europeu está profundamente relacionado com a sua capacidade militar e de defesa. “Se a União Europeia começou com o objectivo salutar de ser um projecto de paz, tal não significa que não deva reconhecer as ameaças que a afectam”, referiu.

Se no mundo inteiro existe uma corrida real no que respeita a capacitação militar, ao armamento, nomeadamente da parte dos BRIC – com particular enfoque para a Rússia e a China -, temos, por outro lado, vizinhos e regimes que estão a reforçar o seu poder militar e que não têm problema algum em o vir a utilizar. E se a vizinhança europeia se está a tornar crescentemente perigosa, em conjunto com a incapacidade europeia para o reforço militar, a sua relutância estratégica e a tendência crescente para recusar o instrumento militar, também não é solução, de acordo com o orador, continuar a manter a dependência face aos Estados Unidos. “A Europa tem de ser capaz de se defender a si própria”, defende Marques de Almeida.

Por último, o terceiro perigo identificado prende-se com a existência de uma permanente neutralidade estratégica que conduz a um clima de hesitação, por parte da Europa, no que respeita a decidir quem são os seus principais aliados e adversários, bem como as suas principais ameaças e interesses. “Se não existir resposta a estas perguntas, também não há política externa”, acrescenta.

Para o ex-assessor do Presidente da Comissão Europeia, a solidariedade na UE não pode ser apenas económica, mas também política e diplomática. “Existe uma tendência generalizada por parte dos países europeus para uma espécie de realpolitik económica”, rematou.

Portugal na Europa
“A integração não faz desaparecer os interesses nacionais, antes os enquadra”
O ex-comissário europeu António Vitorino afirmou sem reservas que em 27 anos de integração, Portugal construiu um perfil europeu, tanto a nível interno como externo. “Bom aluno, empenhado e previsível, este perfil de Portugal permitiu a adesão à então CEE e o combate à sua periferia, foi sendo progressivamente consolidado com a adesão ao Acordo de Schengen e depois ao euro”. Mais a mais, e com excepção do Partido Comunista, esta adesão reuniu igualmente um consenso nacional e partidário, acrescenta. “Assim, e perante a transformação em curso da União Europeia, manter-se-á válido este perfil de Portugal na Europa?”, questionou o orador. A resposta é “sim, mas há que adaptá-lo à luz da própria Europa e ter em mente que Portugal é hoje muito diferente face há 27 anos”, afirma, citando o relatório de Augusto Mateus “25 anos de Portugal Europeu: a economia, a sociedade e os fundos estruturais”realizado para a Fundação Francisco Manuel dos Santos. “A integração europeia não faz desaparecer os interesses nacionais, antes os enquadra”, defende o ex-comissário europeu.

“A Europa não pode ser blindada nem sofrer do complexo do declínio europeu”

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Assim, e defendendo que a adesão à Europa constituiu “uma apólice de seguro” para a consolidação da democracia portuguesa, bem como para a gestão complexa da relação com a vizinha Espanha, António Vitorino reafirma o interesse total da manutenção de Portugal na União Europeia, e no euro, apesar de todos os desafios enfrentados, sendo esta condição, para o orador, essencial para que “Portugal possa recuperar e vencer”.

“Mas como defender os interesses nacionais na Europa do futuro?”, questiona o ex-comissário. Para o orador, este desafio será crescentemente complexo, com o alargamento para 28 Estados-membros, com a pressão da globalização e da lógica proteccionista. “A Europa não pode ser blindada nem sofrer do complexo do declínio europeu e Portugal tem de assumir o espaço lusófono como um activo”, salientou ainda. Identificando ainda os principais desafios actuais com os quais a Europa se confronta, nomeadamente a crise do euro e as divergências económicas, o afastamento que se tem vindo a dar no equilíbrio entre a França e a Alemanha e a crescente pressão centrífuga do Reino Unido, António Vitorino realça as fases de mutação, extremamente voláteis, que a Europa atravessa, questionando se estas dinâmicas se estabilizarão.

Assim, o ex-comissário europeu considera que Portugal tem de saber escolher bem as alianças que melhor defendem os seus interesses, realçando que se o Reino Unido saísse da UE, tal iria significar uma enorme perda para o nosso país. Sair do euro, independentemente do país é causa não é mais, de acordo com o orador, do que uma quick-fix, sendo fundamental a permanência de Portugal no mesmo para a sua recuperação.

Recordando a má aplicação de muitos dos fundos que chegaram a Portugal – dos quais “já não somos beneficiários líquidos”, António Vitorino fez também um “apelo” relativamente aos que temos ainda a receber, com a introdução do anunciado princípio da concorrência no acesso às verbas em causa, realçando a aposta no seu acompanhamento e uma fiscalização rigorosa na sua aplicação.

Nova agenda europeia e a incapacidade da Alemanha se afirmar como líder

A apresentação da futura agenda europeia, tendo em conta a evolução dos grandes indicadores macroeconómicos entre 2007 e 2012, esteve a cargo do editor associado e colunista económico do Financial Times (FT), Wolfgang Münchau, tendo sido posteriormente comentada pelo eurodeputado Paulo Rangel e pelo economista José Manuel Félix Ribeiro.

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© DR
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Os sinais promissores – em particular no que respeita à evolução das exportações e do excedente da conta corrente – não são ainda suficientemente convincentes para afirmar que a Europa está em condições de ultrapassar a crise. Esta é a visão geral de Münchau, depois de ter apresentado os valores relativos ao PIB, Emprego, Investimento, Consumo Privado e Produção Industrial da Europa ao longo dos últimos cinco anos. Para o especialista do FT, a economia europeia continuará sob os níveis de pressão a que tem vindo a estar sujeita, enquanto não se proceder a resolução de três problemas em particular: a ausência de instrumentos de gestão macroeconómica, a subcapitalização dos sistemas bancários e as relações entre banca e dívida soberana com efeitos tóxicos para a união monetária. Se a nova agenda europeia pretende realizar uma revisão do quadro de governança da Europa, considerando, pelo menos em teoria, novos sistemas anticrise e de estabilidade, não se prevê que o resultado seja o de uma verdadeira união económica – ou seja, e de acordo com Münchau, uma organização central que seja capaz de levar a cabo uma política de estabilização da Zona Euro e a aplicação de medidas específicas e de liquidez onde elas são mais necessárias. Apesar de esta constituir a melhor forma, de acordo com o editor do FT, para a salvação da União Europeia. Münchau alertou ainda para as dificuldades de coordenação de políticas fiscais, tendo a crise servido também para demonstrar – se é que ainda existiam dúvidas – que não existe vontade política para o estabelecimento destas necessárias politicas fiscais comuns. Assim, e como remata o especialista, a Europa, na ausência de estes mecanismos centralizados, continuará a reger-se pelas metas impostas pela Alemanha, que são impossíveis de serem seguidas por todos e que poderão conduzir a um desmembramento da União.

Sem ir tão longe, mas reconhecendo que a União Europeia, tal como a conhecemos, pode realmente acabar, Paulo Rangel acrescenta, à questão económica, outros riscos, políticos e geopolíticos, que urge considerar, nomeadamente a emergência de movimentos independentistas que se reforçaram com a crise (de que são exemplo a Espanha e o Reino Unido) e de confrontos directos (Hungria e Eslováquia), que só não se tornaram mais sérios exactamente porque vivemos numa União Europeia. O eurodeputado é, contudo, mais optimista do que Münchau no que respeita aos sinais positivos, ainda que escassos, de recuperação económica da Europa. “Pode ser um momento político para mudanças no centro governativo”, afirma. Considerando a perda de soberania uma falsa questão – “não vamos perder soberania, porque já a perdemos e ‘todos’” – há que repensar a legitimação democrática e decidir se queremos ser passivos ou activos nesta deslocalização e desterritorialização do poder, afirma. Não acreditando que estejam reunidas as condições para se encontrar uma solução mais centralizada, Paulo Rangel defende ainda que “apesar de votarmos em Portugal, a verdade é que muitas das coisas já não se decidem a nível nacional. “Há um desajustamento entre os círculos eleitorais e os círculos de poder, o que impede de manter a visão tradicional de soberania nacional”, diz. E remata: “essa soberania já não existe!”

Central ao discurso de José Manuel Félix Ribeiro foi a Alemanha e o lugar que ocupa enquanto centro decisor no espaço económico europeu. Todavia, as suas características estruturais impedem-na de liderar realmente a Europa, nomeadamente o facto de pensar e comportar-se como uma pequena economia aberta, com um conjunto de regras e metas económicas, a par de uma obsessão pelas finanças públicas, que a faz esquecer ou ignorar que a sua receita não pode, de todo, a aplicar-se aos demais países. Para o economista, a abertura da UE ao leste europeu, em conjunto com a globalização, tem contribuído sobremaneira para o crescimento da economia alemã, sendo que estes mesmos factores contribuíram significativamente para a queda da economia portuguesa, por volta do ano 2000: a saber, a abertura de novos mercados desviou o investimento de Portugal e provocou a deslocalização da sua indústria e, por outro lado, a inundação do mercado por produtos baratos, provenientes de mercados emergentes, condicionou fortemente a produção portuguesa, o que resultou no facto de “Portugal ter perdido o seu emprego n economia mundial”.

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