POR HELENA OLIVEIRA
Escrever que vivemos na era da complexidade, da incerteza, da imprevisibilidade, caracterizada por ciclos curtos e por uma complexa teia de interacções entre eventos que colocam desafios, de ordem variada e à escala local, nacional, europeia e mundial é ser testemunha do mundo, e da sua história, nas últimas décadas. Mas e em particular nos últimos 20 anos, com a globalização, a par do aumento da conectividade e da mobilidade humana, e com os inúmeros desafios planetários a que estamos sujeitos, esta complexidade, e pese embora o pleonasmo, tem-se vindo a complexificar. Assim e sem surpresas, as diversas problemáticas sociais não escapam a este emaranhado de multicasualidades e múltiplos constrangimentos, onde a um problema em concreto não corresponde, de todo, uma solução específica.
Perante este cenário com faces diversas, os modelos habitualmente seguidos de análise e, nos casos mais optimistas, de resolução de problemas, comprovam ser obsoletos e, por conseguinte, ineficazes, na medida em que nada é linear e que a sociedade mecanicista, previsível q.b. deixou, pura e simplesmente de existir.
Assim, foi para enfrentar esta ineficácia e ausência de respostas “lineares” que se começou a ponderar uma nova abordagem aos modelos organizacionais prevalecentes, comprovadamente desadequados, apostando-se no que se designa de “governação integrada”, a qual visa, essencialmente a “construção, manutenção e desenvolvimento de relações interorganizacionais, assentes na colaboração, para a gestão dos problemas sociais complexos, com maior eficiência e eficácia”.
Quem o afirmou foi Rui Marques, responsável pelo Instituto P. António Vieira e coordenador executivo do Fórum para a Governação Integrada (GovInt), na abertura da conferência internacional sobre esta temática e que trouxe a Portugal um conjunto de oradores prestigiados com experiência comprovada neste modelo (ainda) inovador de governação, assente na colaboração, na transversalidade e em parcerias que envolvem o Estado e os diferentes actores da sociedade civil.
O encontro, que ocorreu a 15 e 16 de Outubro último, teve lugar na Fundação Calouste Gulbenkian, uma das entidades fundadoras/promotoras do Fórum já mencionado, através do seu Programa de Desenvolvimento Humano, e juntou não só as demais instituições promotoras do projecto – a Santa Casa da Misericórdia, a Fundação Montepio, as Câmaras Municipais de Lisboa e Braga e o GRACE – como também vários parceiros nacionais que tentam já abordar, na prática, os vários desafios que este modelo traz para Portugal, partilhando as suas experiências no que respeita a um conjunto “eleito” de problemas sociais complexos (e “velhos”) tão díspares como os denominados territórios vulneráveis, as crianças e jovens em risco, o desemprego jovem e de longa duração, o isolamento na velhice, as pessoas em situação de sem-abrigo e, last but not least, o desafio desta governação integrada na administração pública, com a presença do INA – Direcção Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas, co-organizador da conferência.
No evento foi, aliás, distribuído o livro “Governação Integrada e Administração Pública”, editado pelo próprio INA, feito em colaboração com vários autores, tendo Rui Marques e David Ferraz como organizadores, no qual se faz o enquadramento teórico deste modelo, em conjunto com a sua abordagem prática a partir de casos exemplificativos de países como o Reino Unido, a Holanda, a Nova Zelândia e a Austrália. Os casos portugueses de governação integrada são igualmente abordados na obra em causa.
O encontro representou também o culminar de dois anos de trabalho do GovInt, que nasceu como uma “rede colaborativa informal de instituições públicas e privadas que resolveram cooperar, não só na reflexão, mas também na acção, no âmbito da resolução de problemas sociais complexos [acima identificados], através de modelos de governação integrada, que permitam maior eficácia e eficiência”, como se pode ler no site da iniciativa e que, de acordo com Rui Marques, “apesar de haver já muito para celebrar, muito há também ainda para andar”. O projecto conta ainda com o apoio do Ministério Adjunto e do Desenvolvimento Regional representado, nesta conferência, por Miguel Poiares Maduro, que encerrou o primeiro dia de trabalhos, sublinhando a importância deste tipo de governação para a administração pública, não só no presente mas, e em particular, para todas as reformas públicas que se seguirem.
Dos modelos estruturados em torno de silos à abordagem colaborativa e holística
Num breve revisitar da resolução dos problemas lineares que caracterizaram o século XX – os quais obedeciam a um processo sequencial e ordenado, com a análise da informação sobre o problema, formulação e implementação da solução – Rui Marques alertou que “os modelos estruturais em torno de silos” (bem como as políticas públicas) deixaram de ser possíveis num ambiente de extrema volatilidade, incertezas crescentes e de múltiplas interdependências. Apesar de “a nossa herança organizacional, em particular no Estado, ser ainda, no essencial, fruto do modelo burocrático, adequado à realidade social vigente na transição do século XIX para o XX, hoje choca frontalmente com a natureza e as condicionantes do século XXI”, escreve Rui Marques no capítulo 1 do livro acima citado.
“Fingir que se resolvem problemas como se bastasse pintar as faces do cubo Rubrik “– o simbolismo daquele que é também conhecido como cubo mágico, o quebra-cabeça tridimensional, inventado pelo húngaro Ernő Rubik em 1974 e que serve de imagem alusiva à temática da conferência -, “não é aceitável, na medida em que vivemos tempos imprevisíveis, nos quais somos obrigados a um ajustamento permanente às circunstâncias em mutação constante”, afirmou também o coordenador executivo do GovInt, sublinhando ainda a obrigatoriedade a uma adaptação e flexibilidade contínuas.
Escolhendo a actual crise dos refugiados, a qual ilustra, na perfeição, um verdadeiro “problema complexo” ou até “super-complexo” como Rui Marques o apelidou, a verdade é que estamos perante uma dificuldade transnacional, em conjunto com a inexistência de uma entidade única que a possa resolver. Neste caso em particular, a abordagem através de um bom modelo de governação integrada, que aproveitasse as sinergias entre múltiplos actores – desde a sociedade civil, à administração central e sem colocar em causa as políticas públicas – e integrasse estas mesmas políticas no tempo e no espaço “foi algo que a União Europeia ainda não teve capacidade para resolver no que respeita às suas políticas de intervenção nestas matérias”, sublinhou ainda. É que não basta acolher os refugiados numa resposta de curto prazo. Imprescindível é compatibilizar o curto prazo, com o médio e o longo prazo – ou seja, numa abordagem integrada – que tome em consideração aspectos tão diferentes como, por exemplo, o seu acesso ao mercado de trabalho, aos cuidados de saúde, à aprendizagem da (nova) língua, numa aposta própria da governação integrada que visa reduzir as redundâncias e resolver as lacunas. E é nesta tendência de um modelo holístico e sistémico que se inclui a governação integrada.
“Wicked problems” e as regras de funcionamento da GovInt
Recordando que na análise de problemas sociais emergiu, há já cerca de 40 anos, uma categoria definida como “wicked problems”, Rui Marques apontou também alguns traços comuns que os unem: a dificuldade significativa em os definir; a inexistência de uma solução circunscrita ou de um conjunto hermético de soluções, o facto de cada um deles poder ser compreendido como sintoma de um outro; a sua interdependência e multicasualidade e o facto de os mesmos “atravessarem várias áreas disciplinares, bem como um conjunto diversificado de fronteiras organizacionais”. Todos estes predicados transformam-se em desafios gigantescos para os modelos organizacionais vigentes, conferindo uma complexidade ainda maior às possíveis respostas oriundas das políticas públicas.
Como já referido anteriormente, o Fórum para a Governação Integrada elegeu um conjunto de grandes problemas complexos como objectivos principais da sua área de acção, mas existem vários outros que cabem igualmente nesta categoria. A pobreza é, por excelência, o exemplo mais comum quando se pretende falar desta complexidade. Todavia, e ainda no foro social, também o são – fora os já acima mencionados – a integração de imigrantes ou a violência doméstica ou, a nível ambiental, as alterações climáticas ou a desertificação. A nível global, o mesmo acontece com questões como o terrorismo ou o cibercrime, por exemplo.
A definição utilizada por Rui Marques na caracterização da governação integrada é bem desenvolvida no livro já mencionado. E porque o conceito não está ainda suficientemente disseminado, vale a pena explorar um pouco melhor os “três pilares desta proposta conceptual”.
- Construir, manter e desenvolver relações interorganizacionais de colaboração:
Sendo um processo relacional e dinâmico, parte-se do pressuposto que as relações são mais importantes que os recursos; defende-se também que este modelo de relacionamento entre organizações tenha como base a colaboração e que possa acontecer sustentadamente, quer no tempo, quer nos recursos alocados;
A governação integrada está particularmente vocacionada para os problemas complexos, não sendo contudo e obviamente, uma varinha mágica, mas uma inegável vantagem competitiva como modelo organizacional. Importante é igualmente ter em mente que, na maioria dos casos, os problemas sociais complexos não têm uma solução definitiva, sendo necessário segui-los num continuum;
A questão da dupla “eficácia e eficiência” parte da convicção – e consequentes provas – de que este modelo é o mais adequado para a gestão destes problemas, obtendo-se melhores resultados na prevenção e reparação das suas consequências (eficácia), ao mesmo tempo que, através da optimização e redução do desperdício, consegue ser mais eficiente na utilização dos recursos, aumentado também o retorno do impacto social do investimento realizado.
- Colaboração é fulcral na GovInt
Sem ela não existe o modelo em causa. E se é saudável as diferentes partes interessadas terem perspectivas diferentes sobre os problemas, partindo destas para a construção de soluções construtivas e mutuamente benéficas, também há que ter em conta que os processos colaborativos podem ser difíceis, morosos, sujeitos a avanços e recuos, o que exige grandes doses de paciência, persistência e resiliência.
- Liderança, participação, comunicação e avaliação
Sendo a cooperação e a colaboração o centro da GovInt, à sua volta gravitam outros factores críticos essenciais. No que à liderança diz respeito, sublinha-se o contraste entre o modelo hierárquico da burocracia face ao da governação integrada, este último menos centralizado e com maior dispersão da autoridade através de departamentos e pessoas, no interior e exterior das organizações. Todavia, o mesmo não dispensa, de todo, uma liderança forte e determinada como forma de combater a inércia das organizações.
A participação, factor-chave da colaboração interorganizacional, é dividida em quatro eixos por excelência: efectiva, pois pressupõe um processo de participação real; eficaz, no qual se espera que cada instituição da rede acrescente valor “real” para a resolução do problema; eficiente, no que à boa utilização dos recursos diz respeito (via combate ao desperdício ou via optimização dos mesmos) e afectiva, na medida em que “obriga” a uma apropriação por parte dos membros da rede, para que cada um deles a sinta como algo que é “seu”.
A (boa) comunicação é também crucial neste processo, tendo de ser permanente, multidireccional e mediada por todos os canais e parceiros envolvidos. Apesar de as TIC serem preciosas para viabilizarem níveis superiores de comunicação, por si só não garantem a governação integrada.
Por último a questão da monitorização/avaliação, pilar vital da governação integrada e crucial para verificar a adequabilidade das políticas integradas. Os processos de avaliação deverão ser adaptáveis, flexíveis e interactivos e capazes de descrever todo o sistema, suas relações e interdependências, bem como os impactos e resultados provenientes desta visão holística.
FONTE: “Governação Integrada e Administração Pública”, INA Editora
As 10 regras de ouro para o eficaz funcionamento da GovInt
No final da sua apresentação, Rui Marques apresentou ainda aquelas que considera ser as principais regras para o funcionamento do modelo da governação integrada
- Coordenação e determinação política forte e empenhada, sem contradição com a liderança colaborativa;
- Identificar e escolher bem as prioridades para os grandes projectos de GovInt (exemplos: numa situação de catástrofe, privilegia-se uma governação integrada de largo espectro mas em curto período de tempo; já no que respeita à pobreza, a intervenção deverá ser realizada a longo prazo);
- Desenvolvimento de um sentido partilhado e urgente de “missão”;
- Foco no aumento da eficiência e, sobretudo, da eficácia das políticas públicas desenvolvidas de acordo com este modelo;
- Atenuar os incentivos à competição e aumentar os incentivos à cooperação;
- Dedicar recursos adequados (humanos, financeiros, etc.) para suportar as iniciativas integradas prioritárias;
- Compatibilizar objectivos de curto e longo prazo
- Agir em quatro dimensões: trabalhar para o interior da organização através da cultura colaborativa, formar parcerias, desenvolver modelos de monitorização, avaliação e gestão de performance e, para o exterior da organização, apostar em boas formas de comunicar e trabalhar com os cidadãos;
- Mobilizar as instituições adequadas para cada problema, detectando potenciais aliados e construindo alianças estáveis;
- Reconhecer êxitos e celebrar vitórias, na medida em que a governação integrada não é, de todo, um modelo fácil, exigindo paciência e persistência.
NOTA: Os diferentes painéis da conferência “Governação Integrada: a experiência internacional e desafios para Portugal” estão disponíveis aqui.
Editora Executiva