Pela 42ª vez, 2600 líderes mundiais juntaram-se em Davos para mais uma maratona de debates sobre o estado do planeta. A “reforma do capitalismo” constituiu o principal tema desta reunião, com a crise da zona euro, a Primavera Árabe, o desemprego e a crescente desigualdade entre ricos e pobres a figurarem como os problemas globais mais prementes da actualidade. Mas se Davos já foi uma verdadeira incubadora de ideias, a opinião geral é a de que a “cimeira dos ricos e poderosos” se está a tornar anacrónica. As perguntas certas foram feitas. Mas não parece haver coragem para implementar as possíveis respostas POR HELENA OLIVEIRA
Todos os anos, a pequena cidade de Davos, situada nos Alpes suíços recebe, por entre os flocos de neve que ali caem, uma super-elite de líderes globais, na qual se inserem políticos, executivos de topo, pensadores, representantes de organizações não governamentais e ainda personalidades de várias áreas da cultura. O Fórum Económico Mundial (FEM), que celebra este ano a sua 42ª edição, tem servido, como alguns o denominam, como uma “festa do pensamento”, na qual se discutem os problemas globais do planeta e se tenta, por entre centenas de debates, painéis, workshops e um sem número de banquetes e festas privadas, alcançar soluções para os mesmos. Todavia e desde que deflagrou a Grande Recessão em 2008, esta reunião de poderosos parece, e de forma crescente, estar a perder a sua identidade. Não porque não se debatam realmente os desafios globais que o mundo enfrenta, mas porque, passados os cinco habituais dias para tal, os cerca de 2600 convidados do Fórum regressam tranquilamente às suas vidas e na bagagem parecem não levar mais do que muitos cartões-de-visita, potenciais vistos de entrada para novos negócios. Esta é, pelo menos, a impressão deixada pelos vários jornalistas conceituados (de meios de comunicação social com prestigio e dinheiro suficiente para os enviar para os Alpes suíços) que este ano fizeram a cobertura do evento. O VER, que acompanha (à distância) desde há quatro anos esta reunião elitista regista, neste artigo, um sentimento comum expresso pela escrita dos enviados da Time, do The Guardian, do Financial Times, da The Atlantic, da BBC ou da CNN: numa altura em que o mundo está coberto por uma desigualdade crescente – a mais significativa desde os anos de 1930 – esta reunião de ricos e poderosos poderá parecer anacrónica. Não é a primeira vez que Davos recebe criticas – aliás, são comuns episódios recorrentes de grupos vários que se insurgem com as mordomias ali presentes, “mascaradas”, a seu ver, pelo desejo de mudar o mundo – mas este ano o clima parece ter esfriado mais do que até aqui. Uma das questões que se colocam perante a relevância deste Fórum Económico Mundial é exactamente o facto de grande parte das personalidades convidadas para debater os problemas do planeta serem, em simultâneo, acusados de os terem causado. É o que afirma, à CNN, David Roth, presidente da juventude socialista da Suíça e um dos responsáveis pelo movimento “Occupy Davos”, um acampamento de igloos montado nas estradas circundantes do perímetro bem guardado que alberga os participantes: “esta é uma reunião não democrática”, afirma. “É uma reunião organizada para aqueles que criaram a crise e que continuam a clamar que são eles que têm a solução para a crise. E nunca sairemos do mesmo, porque são sempre as mesmas pessoas, não democráticas, que tomam as decisões”. Mais ainda, o problema de imagem de Davos é, para vários analistas, fácil de quantificar: constitui a um refúgio, ainda por cima de luxo, para a elite capitalista mundial numa altura em que os media sociais conseguiram estimular os movimentos populares para exigirem uma melhor democracia e um repensar profundo dos sistemas financeiros responsáveis pela crise global. Como afirmou Mark Malloch-Brown, um antigo responsável da Nações Unidas e actual conselheiro de Davos, “este não é, certamente, um dos ambientes mais favoráveis para Davos, na medida em que estamos perante uma incerteza económica significativa, a par de um enorme ressentimento contra os banqueiros e os líderes de negócios em geral”. Críticas à parte, os organizadores de Davos não estão cegos e surdos relativamente ao estado do mundo. E o facto do grande tema em discussão ser “A Grande Transformação: dar forma a novos modelos”, com críticas implícitas ao “capitalismo que não está a saber dar resposta aos desafios globais” constituiu, ao menos, um bom mote de discussão. Para além de incluir os grandes temas que sacudiram o mundo em 2011, e que continuam a fazê-lo, como a Primavera Árabe e a crise da zona euro. O VER resume de seguida as principais temáticas debatidas. A mistura tóxica de desemprego e desigualdade No mesmo dia, foi distribuído aos participantes um relatório sobre os riscos a enfrentar pelo mundo em 2012, com o título “The Seeds of Dystopia“. Para o apelidado Dr.Doom, o economista “catastrófico” Nouriel Roubini, que foi dos poucos que previu a crise financeira de 2008, a palavra distopia (o oposto de utopia) caracteriza de forma precisa o mundo em que vivemos na actualidade. Presente no painel que discutiu o relatório, Roubini, em conjunto com o responsável da Amnistia Internacional e com algumas outras organizações sem fins lucrativos, o reconhecido professor afirmou que os distúrbios sociais estão directamente relacionados com a incerteza económica. “O que é comum ao mundo inteiro na actualidade é a incerteza económica e financeira, o aumento da desigualdade de rendimentos e riqueza, os grandes desafios da pobreza e os efeitos do desemprego provocado pela crise financeira”, disse, acrescentando ainda que a crise das dívidas soberanas europeias, em conjunto com os cortes orçamentais, está a piorar sobremaneira a recessão, principalmente na Europa. “Estamos a viver um ciclo vicioso e a austeridade fiscal para resolver o problema da dívida só está a tornar tudo pior”, acrescentou o economista.
Em ambos os debates, não foi possível deixar para trás os números da vergonha: o planeta conta agora com mais de 225 milhões de desempregados, uma em cada três pessoas é pobre, 1% das famílias em todo o mundo carrega no bolso 40% de toda a riqueza existente, os salários, enquanto percentagem do PIB, estão em mínimos históricos e os lucros empresariais, enquanto percentagem do PIB, nos máximos igualmente históricos. Não é preciso, portanto, ser um professor de economia para nos apercebermos que todos os indicadores económicos e sociais apontam para uma direcção errada. Nem nos surpreendermos com o facto de 40% dos participantes no debate terem concordado que o capitalismo está a fracassar, contra 20% que afirmam o contrário. Mas se as boas notícias vindas de Davos afirmam que as perguntas certas estão a ser formuladas, no que toca a respostas, o apetite para possíveis reformas não parece ser nenhum. No painel que discutia a necessidade de se reinventar o capitalismo, apenas a secretária-geral da International Trade Union Confederation, Sharan Burrow, apontou o dedo ao excessivo poder das empresas, afirmando que o capitalismo se estava a comer a si próprio através das elevadas taxas de desemprego e dos mais elevados níveis de desigualdade desde a grande Depressão de 1930. “O capitalismo tem de fornecer empregos seguros e distribuir a riqueza de forma igualitária, contribuindo assim para o bem comum”, afirmou Burrow. Mas leitura diferente foi a de Ben Verwaayen, CEO da Alcatel-Lucent que contrapôs e garantiu que as empresas têm é muito pouco poder e que a chave para o futuro reside na inovação e na criação de emprego, e não na ideia de emprego seguro. O CEO acrescentou ainda que já não existe lugar para a nostalgia num mundo que desapareceu e que não regressará. Já David Rubinstein, director geral da firma de investimento privado Carlyle, parafraseou Churchill afirmando que não existe “pior sistema sem ser o capitalismo, se não contarmos com todos os outros”. Em conclusão e para o editor do The Guardian, aqueles que gerem a economia global sabem que existe um problema mas, desde que este não os afecte pessoalmente, não existem incentivos alguns para fazer algo para o combater. Uma visão ligeiramente mais optimista tem a Time, que moderou igualmente o debate sobre se um sistema que vingou no século XX pode continuar a satisfazer as necessidades do novo século. Apesar de a visão da prestigiada revista ser a de que alguns fracassos no capitalismo estão a ser reconhecidos, mas que este continua a ser a melhor alternativa, o facto de existir este reconhecimento é, por si só, um sinal de que algo pode estar prestes a mudar. A revista chamou também a atenção para o facto de, para além deste painel exclusivamente dedicado ao tema, terem existido pelo menos mais três painéis que devotaram as suas discussões a variações sobre como “consertar o capitalismo” ou como o “remodelar”. Mas e em termos práticos, o que significaria dotar o capitalismo global do século XXI de novas ferramentas, questiona a Time. Mais regulação? Menos? Adoptar o capitalismo de Estado, como aquele que é praticado na China, na Rússia e em vários países do Médio Oriente? Não, ninguém sabe a resposta. Mas, para a revista, já é positivo existir a pergunta. Uma visão mais holística dos problemas mundiais Todavia, e apesar da crise europeia ter dominado os debates e reuniões entre líderes políticos e de negócios, pela primeira vez, a questão da desigualdade crescente esteve presente na esmagadora maioria dos debates ocorridos. No que respeita à crise que grassa no Velho Continente (com alguns rasgos de optimismo pouco convincentes), Christine Lagarde alertou para o facto de que os problemas que afectam a zona euro não serem exclusivos desta. “É uma crise que poderá ter efeitos colaterais, de contágio, em todo o mundo”, afirmou à Associated Press. “Por aquilo que tenho visto e pelo que o FMI tem observado em números e previsões, não existe nenhum país que esteja imune e toda a gente deveria estar interessada em assegurar que esta crise seja resolvida de forma adequada”. Se a responsável do Fundo Monetário Internacional aproveitou a deixa para enviar algum recado a alguém, não se sabe a quem serviu a carapuça. Mas e em Davos, europeus e norte-americanos optaram por apontar dedos entre si, cada um culpando o outro. Como reporta a Time, “os europeus queixam-se de que nada disto teria acontecido se os americanos não tivessem sobrecarregado o sistema financeiro global quando a sua bolha imobiliária rebentou. Ao que os americanos contra-atacam dizendo que tal até poderá ser verdade, mas clamando ao mesmo tempo que eles conseguiram colocar a casa em ordem e que a única coisa que impede a economia americana de crescer é a incerteza europeia”. Culpas à parte, se existe algo que constitui preocupação comum para americanos e europeus é a questão do desemprego, principalmente o que afecta os jovens. Para Lee Howell, um dos responsáveis do FEM e também co-autor do relatórios sobre os principais riscos globais para 2012, “pela primeira vez em muitas gerações, muitas pessoas já não acreditam que os seus filhos irão crescer e gozar de um nível de vida mais elevado do que aquele vivido por eles”.
Dados os preocupantes níveis de crescimento do desemprego juvenil – que em Portugal já ascende aos 30% e em Espanha aos 45% – , tornam-se urgentes (tal como ficou decidido na cimeira europeia que teve lugar esta semana, imediatamente a seguir ao Fórum) novos modelos de criação de emprego. A chave para evitar a catástrofe defendida por Klaus Schwab num paper que escreveu para a cimeira de Davos, seria a de “oferecer aos jovens a capacidade de criarem os seus próprios empregos: de nos movermos do conceito puro de emprego para o conceito de micro-empreendedorismo”. Também a propósito da crise do emprego, Vikram Pandit, CEO do banco global CitiGroup Inc., afirmou que a crise do euro “nos está a custar cerca de 1% do PIB em todo o mundo”. “Façam as contas”, desafiou, questionando: “quantos empregos é que tal representa? Quantas pessoas não estão a trabalhar por causa disso [da crise do euro]?O que podemos fazer para irmos atrás da principal questão que temos de combater esta década e que é o emprego?”. Pandit referiu ainda que o mundo precisa de 400 milhões de novos empregos até ao final da década, sem contar com os 200 milhões perdidos nos últimos quatro anos para se voltar ao emprego total, “o que deve constituir a nossa prioridade número um”. Este ano e pela primeira vez, o fórum convidou cerca de 60 “criadores globais” – jovens líderes com menos de 30 anos – com o objectivo de debater as principais questões com as quais se confronta a geração que irá liderar o mundo nas décadas vindouras. Em termos gerais, a visão da maioria dos presentes em Davos e apesar de todos concordarem que a cimeira de este ano ficou aquém das que a precederam, assenta num ponto em comum: em todas as grandes temáticas debatidas, existiu um esforço de se incluir os vários problemas transversais que assolam o planeta. Os líderes parecem ter compreendido, finalmente, que num mundo globalizado, já não existem acções isoladas. E, apesar de Davos não ser exactamente um espaço de negociação, continua a ser, pelo menos, uma enorme oportunidade para se trocar ideias. Fica a faltar a vontade de as implementar. |
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Editora Executiva